A edição original de Negrinha, publicada em 1920, era composta de seis narrativas: além da que serve como título, As fitas da vida, O drama da geada, Bugio moqueado, O jardineiro Timóteo e, fechando a obra, O colocador de pronomes. A escassez de histórias, contudo, não diminui o valor da obra.
Na verdade, se uma hecatombe assolasse o país e restassem apenas, no gigantesco monturo que substituiria a Biblioteca Nacional, as vinte e oito páginas finais do livrinho, os raros sobreviventes, se alfabetizados, poderiam revivificar nossa literatura, então libertada do pessimismo machadiano, dos ressentimentos de Lima Barreto, do pansexualismo de Aluísio Azevedo, do romantismo sentimentalóide de Alencar e da retórica enfadonha de Raul Pompéia. E começariam seu trabalho fazendo o que há de mais prazeroso no destino da humanidade: rir, pois O colocador de pronomes é exemplo do melhor humor, dessa “centelha divina que descobre o mundo na sua ambigüidade moral e o homem em sua profunda incompetência para julgar os outros”, como resumiu Milan Kundera no belo ensaio de Os testamentos traídos, O dia em que Panurge não mais fará rir.
A primeira frase de O colocador de pronomes já é um encanto de insanidade: “Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática”. Esse começo inesperadíssimo captura o leitor — e os três parágrafos seguintes o acorrentam, obrigam-no a se surpreender mais uma vez:
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no Itaoquense, com bastante sucesso.
Em poucas linhas, frases curtas, temos o tipo completo, de espantosa mediocridade. E, logo a seguir, a descrição de seu carrasco, o Coronel Triburtino. Neste caso, a linguagem lobatiana trabalha, de forma irônica, com lugares-comuns e expressões coloquiais. Estas, como “tutu da terra”, utilizadas raramente na atualidade, concedem tempero adicional à leitura:
Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
“Sarna filológica”, “pronominúria”, “furúnculo filológico”, “pronomorréia” — não há limites para concretizar a loucura do personagem cuja vida “foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos”, estudioso que “escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de narrar”. Lobato abusa da linguagem ornamentada exatamente para espicaçar a retórica, para denunciar a patologia dos mestres da eloqüência nacional — no fim do conto, não por acaso, presta sutil homenagem a Rui Barbosa.
A obsessão de Aldrovando — protagonista, não por acaso, de nome bombástico — leva-o a se apartar da realidade:
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apóstrofes:
— Salta fora, regionalismo de má sonância!
Panfletário, médico, engenheiro e, finalmente, “apóstolo”, o amante dos pronomes vagueia, incapaz de encontrar quem aceite suas críticas, seus conselhos. O diálogo com o ferreiro da esquina é antológico; e a justificativa do profissional para o erro da tabuleta que anuncia seus serviços — “Ferra-se cavalos” — leva o nonsense ao paroxismo:
— Vossa senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: “Serafim ferra cavalos — Ferra Serafim cavalos”. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: “Ferra Se (rafim) cavalos”. — Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
O crescente desespero de Aldrovando desemboca no capítulo central de seu livro, “Do método automático de bem colocar os pronomes”, promessa não apenas de solução gramatical, mas primeiro passo rumo ao fármaco infalível, o “Pronominol Cantagalo”. É pena que a utopia tenha tropeçado no tipógrafo que, certamente movido por boas intenções, transforma o herói no “primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”.
Fracos e fortes
Ainda que esse conto formidável diminua o brilho das outras histórias, todas, em maior ou menor grau, merecem elogios.
Negrinha tem uma de suas melhores partes na quebra do estereótipo de maldade que Dona Inácia representa: a matrona se torna verossímil quando permite à órfã brincar com as sobrinhas. Até esse ponto, a narrativa, apesar de ser um libelo contra o racismo, não convence. O segundo trecho importante é o final — e não me refiro à morte da protagonista, mas aos dois comentários insensíveis que formam a lápide da menina.
O drama da geada se desequilibra entre o beletrismo de certos trechos, algumas boas descrições, o dom de Lobato para captar falas coloquiais e um final trágico, que faz a leitura valer a pena.
A estrutura de Bugio moqueado é perfeita. Depois de um começo informal, carregado de gírias, o narrador vai sobrepondo camadas de mistério, a fim de consolidar o tom soturno. Há certo exagero, principalmente na descrição da mulher, mas o desvio, pouco antes do fim, e a conclusão repulsiva acabam submetendo o leitor.
Triste lição sobre a impermanência das coisas, O jardineiro Timóteo é metáfora da tradição destruída por modismos. Apesar do final óbvio, merece atenção a semiótica das flores que o jardineiro elabora para dialogar com a realidade e torná-la suportável. Quando acreditamos que Lobato não conseguirá criar novos devaneios, ele surpreende. Serve com perfeição à estrutura da narrativa o desabafo que antecede o triste final.
As fitas da vida apresenta um dos pontos fortes de Lobato, os diálogos. Primeiro, entre o funcionário da Hospedaria dos Imigrantes e o cego; a seguir, deste com o major: as vozes intercalam-se de forma ágil; as falas do ex-soldado constroem o núcleo da narrativa, pleno de honradez e lealdade. Nenhum comportamento é estereotipado — e temos certeza de estar frente a emoções genuínas quando o pobre cego esmorece, fraco e desprotegido, incapaz de reagir aos insistentes ultrajes do major. Toda a trama se resolve com a revelação que oferece esperança ao sofredor. Trata-se de um conto moral, edificante, raro na literatura brasileira — e, infelizmente, ainda mais difícil de encontrar nos dias de hoje.
Desequilíbrio
As narrativas incluídas nas edições posteriores de Negrinha criaram um todo mais desigual. Há historinhas divertidas, como A policitemia de Dona Lindoca e Sorte grande; uma tentativa frustrada de censura à avareza (“Herdeiro de si mesmo”); duas narrativas híbridas, que não se decidem entre o conto e a crônica (O fisco e Quero ajudar o Brasil); o inocente Uma narrativa de mil anos, espécie de Un cœur simple quase esquemático, apesar do início sugestivo; Barba Azul, de tema interessantíssimo mas sem dramaticidade; e Os pequeninos, que soma duas histórias curiosas, principalmente a segunda, em que o protagonista é derrotado por inimigos insólitos.
Restam, no entanto, três ótimos contos.
Gótico
Os negros revisita o velho tema dos viajantes obrigados a passar a noite numa casa mal-assombrada. O que Afonso Arinos realizou, de forma capenga, em Assombramento, Lobato eleva à condição de narrativa gótica, com os elementos característicos: tempestade inesperada, propriedade em decadência, ambiente lúgubre, amor impossível e cena trágica — além, claro, da alma penada.
Na dupla de viajantes, formada pelo narrador e seu amigo, Jonas, será este — zombeteiro e racista — o alvo do espírito de um subalterno da fazenda, jovem português que cometera o erro de se apaixonar pela filha do latifundiário, o capitão Aleixo. A história é contextualizada por meio de diálogos desembaraçados, nos quais ressalta a figura do hospitaleiro Tio Bento. Há boas falas, em que Lobato transmite de maneira perfeita as inflexões coloquiais, e esta figura impressionante, síntese do horror do tráfico negreiro: “Aportamos em África para recolher pretos de Angola, metidos nos porões como fardos de couro suado com carne viva por dentro. Pobres pretos!”.
Saliente-se o cuidado de Lobato ao criar uma voz sobrenatural que, apesar de editada, como o próprio narrador explica, ganha características peculiares. Outro aspecto positivo é não se apelar ao grotesco no final, mas oferecer rápida visão do local da morte, certa parede sinistra.
Sarcasmo
Lobato exercita sua ironia em A facada imortal, cujo título, escolhido com perspicácia, causa boa confusão no leitor, intensificada pelos dois primeiros parágrafos, em que se passa do enxadrismo ao faquista Indalício Ararigbóia. Logo percebemos tratar-se de um compêndio de escroqueria, técnica que o protagonista exerce com refinado academicismo:
[…] O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua, se lhe der forma estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de pedir? Quando lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a vítima não me dá o seu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração técnica com que o tonteio. Paga-me a facada do mesmo modo que o amador de pintura paga o arranjo de tintas que o pintor faz sobre uma estopa, um quadrado de papelão, uma relíssima tábua. O faquista comum, notem, nada dá em troca do miserável dinheirinho que tira. Eu dou emoções gratíssimas à sensibilidade das criaturas finas. Minha vítima tem de ser fina. O simples fato da minha escolha já é um honroso diploma, porque nunca me desonrei em esfaquear criaturas vulgares, de alma grosseira. Só procuro gente na altura de compreender as sutilezas das paisagens de Corot ou dos versos de Verlaine.
Em suas reflexões, o delicado anti-herói tece, inclusive, laivos de teoria literária:
— E eu, que caço? — perguntei.
— Antíteses — respondeu de pronto Indalício. — Fazes contos, e que é o conto senão uma antítese estilizada?
A morte banal desse especialista em “caçar otários com a espingarda da psicologia” arremata o exercício de sarcasmo.
Sintaxe e humor
Dona Expedita, narrado com naturalidade e humor impressionantes, demonstra também o controle de Lobato sobre a sintaxe. Vejam como o narrador apresenta, de forma oblíqua e irônica, a verdadeira idade da protagonista:
E, como só tem trinta e seis anos, veste-se à moda dessa idade, um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores claras, ruges e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos trinta e seis, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de sessenta…
Autores contemporâneos optariam por um discurso sem rodeios, destituído de sutilezas, para relatar o mesmo fato — e justificariam a pobreza de seu estilo alegando obediência a supostas teorias estéticas ou sociolingüísticas…
O longo diálogo que encerra o conto — e, gradativamente, inverte as expectativas das interlocutoras — é peça sugestiva, tem humor, fluidez, precisão.
Pré-modernista?
Referindo-se a Urupês, Edgard Cavalheiro resumiu as qualidades da contística lobatiana: “Nada de falsa literatice tão em moda, da superafetação bombástica, do palavreado vazio, e sim literatura da boa, fonte não somente de emoção e sabedoria, mas também de humanidade […]”. O justo elogio pode se estender a outros livros de Lobato — e basta O colocador de pronomes para implodir a esdrúxula periodização da nossa literatura. Encarcerar Lobato num caótico e liquefeito pré-modernismo ou condená-lo por meio de avaliações superficiais só diminui esse autor de narrativas clássicas; e exatamente por isso, sempre contemporâneas.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Amadeu Amaral e A pulseira de ferro.