Sem vocação épica

Em "Anônimos", Silviano Santiago vasculha a vida que poderia ter sido
Silviano Santiago, autor de “Anônimos”
01/12/2010

Num estudo ainda hoje referencial para as discussões acerca da representação artística — a Poética clássica —, Aristóteles apontou o lugar dos homens comuns no espaço literário. Num exercício constatador e normativo a um só tempo, o filósofo grego disse que aos simples mortais (para ele “seres inferiores”) cabia uma representação de envergadura menor, naquele caso a comédia.

Tal pensamento manteve-se forte por muito tempo, sendo quebrado, de forma efetivamente sistemática, salvo engano, no século 20. Neste, a ânsia de fazer justiça com as próprias letras levou muitos autores ao inverso, isto é, a elevar o homem comum a uma dimensão heróica (como no caso de Jorge Amado).

Mas não é pela via do rebaixamento nem pela da exaltação que se envereda Anônimos, novo livro de contos do polivalente Silviano Santiago.

Logo de cara, vê-se que a obra não se resume a um volume de narrativas dispersas e reunidas em bloco para publicação. A unidade dos textos — que o sumário divide em “nove contos e uma homenagem” — é percebida até mesmo quando a voz da estória final, justamente por ser sonora, destoa do coro emudecido que caracteriza o corpo geral.

E me parece ser a busca da afinação entre a matéria-prima deste conjunto ficcional (a vida anônima), os personagens (homens anônimos) e o enunciado do narrador (por vezes distanciado, por vezes personagem) o ponto central da obra, a ele dedicando o autor a maior parte de sua concentração. À exceção do texto derradeiro, o assobiado Ceição Ceicim, a dicção narrativa de Anônimos mantém-se sólida por toda a sua extensão, buscando nos personagens dos escanteios da vida (um chama-se Modesto) o tom menor com que fala a respeito deles e para com eles falar. É o que se vê nas confissões de um suicida, de Calendário — “Não há espaço no apartamento para a brincadeira (…). Foi-se o tempo do nosso bate-papo” —, nos sussurros de um jovem paraense, de Dezesseis anos — “Em casa, eu não tinha irmão ou irmã a quem perguntar” — e no relato quase gutural de um aposentado que leva os dias a espionar os vizinhos, em Separação — “Ele escondia a passividade no trato da vida e das pessoas com as palavras e o sorriso amarelo de rapaz bem-educado e fino, no fundo, balconista no comércio carioca”.

Neste último, inclusive, adensa-se o raquitismo dos personagens e situações sem qualquer vocação para o espírito épico. Seu narrador-protagonista é um homem recolhido ao umbigo de seu apartamento, cujos maiores horizontes não extrapolam as janelas da vizinhança: “Levo vida boba e chata, sem percalços. Isso desde o dia em que me aposentei pelo INSS como garçom na praça do Rio de Janeiro”. Descontando algumas caminhadas que faz pelo calçadão de Copacabana, o cotidiano do aposentado é bisbilhotar a vida alheia, em especial a vestida pela morte: “Sou fissurado numa separação, de preferência litigiosa, já disse. A chama viva de minha obsessão foi acesa pela mudança dum jovem casal suburbano para a quitinete ao lado (…). Quando vi marido e mulher juntos pela primeira vez, descobri que a vida boba e chata tinha chegado ao fim”.

A mola propulsora dos animados novos dias do ex-garçom é o conflito que se instaura entre o casal por conta dos cães que criam. Mas isso não ocasiona uma virada do enredo, que se perpetua quase imóvel. Em alguma medida, o texto pode simbolizar a banalização da espionagem que nos tem cercado por todos os lados, com gentis ou cínicos pedidos de sorriso; mas talvez sua verdadeira expressão seja a de uma página do cotidiano completamente desprovida de lirismo ou de teor surpreendente. O homem vive devagar, o casal vive devagar, devagar os cães sequer mordem.

De virtude a vício
Separação não é o único texto de interesse de Anônimos, mas ele age como uma súmula do livro. E importa salientar o poder de observação de que Silviano Santiago dispõe ao retratar um sistema de vida que certamente não é o dele, visto ser o homem letrado e estabilizado que é. Por isso, causa surpresa perceber a intimidade que tem o escritor com uma espécie de submundo cultural, dentro do qual aparecem socialites, novelas da Rede Globo e personalidades da febre midiática: “Descanso a velhice lendo as revistas em cê: Caras, Carinho e Contigo”.

Mas a identidade do livro, marcada pela morosidade dos personagens e das narrativas que os constroem, vai de virtude a vício. Retornando à discussão da representação, ocorre-me o caso do norte-americano Andy Warhol, tido como crítico do consumismo ianque em suas obras. Não creio ser isso verdadeiro, mas ainda que o seja, o fato é que Warhol fez um trabalho repetitivo e tão vazio quanto o que retratava. No caso do livro de Silviano, a fidelidade ao anonimato e à inexpressão das tramas é tão acentuada a ponto de conferir ao livro uma monotonia que o impede de ir além, conforme assinala um trecho que, ironicamente, funciona como uma contra-voz da proposta da obra: “Muito sossego não é de bom aviso”.

Em razão disso, por vezes sente-se falta de maior densidade, tanto no que diz respeito ao desenrolar da narrativa, tanto no que tange ao interior dos anônimos espalhados pelas ruas do Rio e por alguns pontos do Brasil. A perspectiva unitária dos narradores e a psicologia rasa dos personagens distancia em muito esta manifestação do trabalho realizado, com mão de mestre, no estupendo Em liberdade, por exemplo. Não se defende aqui que o autor deve se repetir ao alcançar êxito, mas é inegável que a literatura se fortalece quando aborda mais interna e visceralmente o real, por mais aparentemente fraco que este seja ou pareça.

Por isso o livro ganha quando se separa de si próprio. Como dito antes, encerra o livro o texto Ceição Ceicim, uma nítida homenagem a Guimarães Rosa. Ceição é um menino portador de encantos sertanejos, sejam os da natureza, seja o das palavras: “Para todos era Ceição ou Ceicim, conforme. Não era de longas terras. Era dali das circunjacências. Se do norte ou do sul, se do oeste ou do leste, nenhum orago influenciava”. Como também o anonimato geral não influenciou as asas deste verdejante e ameninado texto que, do baixo de sua meninice camponesa, ensina aos livros a desconfiarem de si próprios.

SILVIANO SANTIAGO NO PAIOL LITERÁRIO

Anônimos
Silviano Santiago
Rocco
192 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho