Ler jornal hoje é como ver o diário de um Circo de Horrores. Os crimes são cada vez mais bárbaros, a Terra convulsiona devido à poluição, os políticos continuam roubando e se fazendo de inocentes, a corrupção grassa. Enfim, não há notícias alvissareiras no front. Quer dizer, até há, mas são tão pequenas que passam despercebidas ante o dilúvio de desgraças. E como todo dia temos novas barbaridades, vamos até nos acostumando um pouco.
Por isso, como a realidade já é demasiado pesada, o romance de estréia da escritora Olívia Maia, Desumano, perde um pouco do seu impacto. Não que ele seja um livro ruim, pelo contrário, é uma boa estréia, em que a escritora mostra que pode melhorar e muito o seu trabalho. Mas um livro bem escrito, com uma trama relativamente fraca e previsível, apesar de correta, e com um tema que já foi superado pela realidade inúmeras vezes, acaba sendo apenas mais uma estréia promissora.
Olívia começa a trama sem rodeios. Márcio, o jovem paulistano protagonista de Desumano, volta à consciência na sala de sua casa tendo à sua frente o corpo da mãe ensangüentado. Ele não se lembra do que aconteceu, mas tem nas mãos e nas roupas muito sangue, além de uma ferida na cabeça provocada pelo golpe de algum objeto. Ele se pergunta se fora um ladrão. Ele chama um tio distante, este aciona a polícia, os investigadores chegam e concluem que Márcio é o único suspeito da história. Márcio foge.
Em um determinado local de São Paulo, Márcio encontra Luisa, uma menina-mulher, de profissão incerta, em um ponto de ônibus. O encontro rende uma conversa que rende um convite que rende um lugar para Márcio passar a noite. Márcio conta a Luisa a sua história. Ela acredita em sua inocência A partir daí, o livro passa a ser uma mistura entre o presente de Márcio e sua condição de fugitivo e a volta da sua memória, que vai nos esclarecendo detalhes de sua personalidade.
Até aí, tudo bem. O que pode haver de tão terrível em um crime hediondo, mais um dos tantos que acontecem diariamente neste país? Olívia dá o tom hediondo ao abordar a violência como se fosse algo banal, que acontece normalmente. É a normalidade da violência, é a banalidade do sangue correndo de maneira gratuita, sem aparente razão. É a ausência de limites para o que um ser humano pode fazer com o seu semelhante. O horror, o horror, como já disse Conrad (e Coppola, na voz de Marlon Brando posteriormente).
Neste ponto, Olívia acaba até pegando leve ao abordar os aspectos mais horríveis da psique humana. Ela não entra em detalhes sórdidos, não aborda os medos que todos temos, nem as travas que criamos para não dar vazão à violência que é inerente a todos nós. Talvez este receio em ir a fundo seja um dos pontos que torne o livro bom, mas não muito. Existe até alguma superficialidade no tratamento que Olívia dá ao tema. Como se fosse um pudor em tratar algo que está ao redor de nós, mas que temos medo de falar abertamente sobre.
Outro aspecto de Desumano que causa um certo incômodo ao leitor é a pressa de Olívia em fazer com que Márcio resolva logo o seu problema. As coisas são até relativamente aceleradas para que o romance chegue ao seu fim. Mas como Olívia tem talento, criamos uma empatia com Márcio, empatia negativa, é importante frisar, pois ficamos com raiva de um menininho mimado, um paulista filhinho de papai que não sabe exatamente o que quer da vida e vive às custas da mãe. Talvez até a escritora tenha essa sensação e queira dar cabo ao suspense.
Mas a estrutura do romance está bem montada, e mesmo com estes pontos que tiram a atratividade do trabalho de estréia de Olívia, Desumano mostra um bom caminho a ser seguido. Claro, deve-se levar em consideração que Olívia é muito nova, tem apenas 22 anos, e tem bastante tempo pela frente para lapidar o seu talento. Esperemos que ela perca o pudor ao falar de temas espinhosos e assim possa construir trabalhos ainda melhores e mais impactantes. Mas já fica o mérito de conseguir escrever um romance policial sem um tiro ou um revólver.