Sem tambor nem trombeta

Otavio Linhares aposta na transgressão da linguagem: às vezes, ganha; às vezes, perde
Otávio Linhares, autor de “O esculpidor de nuvens”
15/10/2015

Literatura de invenção é o sobrenome da editora Encrenca, que publicou O esculpidor de nuvens. Otavio Linhares, o autor do livro, é um dos idealizadores do selo curitibano, por onde também publicou seu primeiro livro. Como se tivesse feito uma declaração (arriscada) de intenções literárias, seus textos nessa obra sugerem uma busca pela forma, mais do que contar histórias. São textos de impressões sobre a vida, em tempo presente, impressões trabalhadas em prosas poéticas, poemas incidentais e aforismos. Sobretudo é um livro de memórias, em que os contos não são exatamente independentes, mas vão construindo o dono da voz, o narrador de cada uma das duas partes.

O esculpidor de nuvens é a primeira parte, com um narrador em primeira pessoa que é um menino dividindo suas impressões desde os primeiros dias até a adolescência, pelo que se percebe; O cão mentecapto, a segunda parte, de um velho maldizendo o fim da vida, desintegrando-se, observando a morte trabalhar duro nele. Mas isso é no começo, porque nessa parte final do livro entram contos mais independentes e com vozes menos identificáveis e repetidas.

Nessa busca pela forma, Linhares tomou a decisão de abrir mão das letras maiúsculas. Essa escolha abrange todos os textos.

O exercício parece ser o de transformar o que parece mais comum na vida das pessoas — vivências de família, escola, primeiras experiências sexuais — em tempestades. As tormentas mentais do dia a dia são a matéria-prima do autor. Ainda que soem a tempestades em copos d’água algumas vezes.

No conto o natal as turbulências em torno do menino-narrador ficam mais evidentes:

cunhado não importa. cunhado não é família. porque você não vai passar o natal com a sua família? grita o avô. o patriarca. o alicerce da tradição. o cume da montanha. o velho touro olhos fundos semblante militar sentado no sofá com o radinho de pilha grudado na orelha e a caneca metálica de café pra disfarçar o conhaque.

Pode-se tentar tirar alguma dor dessas sensações que vão sendo construídas sobre o mundo particular do narrador, alguma profundidade. Mas não é algo que esteja realmente ressaltado pelo texto. Parece que faltou ferida para essa casca, o que tende a distanciar o leitor do drama que parece estar sendo descrito, ainda que por metáforas e sensações criadas pelas palavras. Na contracapa, Roberto Alvim talvez se refira a isso quando escreveu: “cabe a nós aceitarmos seu convite e trilharmos as veredas desconhecidas que sua linguagem nos sugere, sem esperança — nem medo”.

Curto e fino
Destacam-se, pela boa surpresa que provocam, os textos menores que estão salpicados pelo livro. Aliás, ele termina assim, sob o título o cotidiano: “um pouquinho todo dia a gente morre ou se mata?”.

Outro, a saudade, pode-se dizer que é um poema, porque tem um corte de versos que remete à poesia, um deslocamento de sentidos, e até mesmo ritmo:

dizem por aí que o lugar que mais dói uma saudade é no
coração. besteira.
é na mandíbula.

a memória é mais um aforismo. Dos bons:

a memória é um chute no saco que dura a vida inteira.

Mutilação
A velhice é tratada como uma mutilação em vida pelo narrador mais presente em o cão mentecapto. Será esse homem o menino da primeira parte? Ele é incomodado pelo corpo que não tem elasticidade. Aí vai se livrando do que acha que não funciona o suficiente.

os ombros magros levemente caídos dão um tom de cão mentecapto. talvez fique com eles. refletem algo de verdadeiro. o pescoço não. nem a cabeça. não servem pra nada. é torta demais. de parto feito a fórceps. deve ser a causa das enxaquecas. mas isso não importa. ela será retirada amanhã.

No conto seguinte, eu e o cão, mais mutilação.

esqueci de relatar que só há um olho. o da direita. o da esquerda comi. tinha fome e já me doía ver tudo. comi só a metade. o outro pedaço dei pro cão que me acompanha. somos dois mentecaptos à espreita. eu e o cão.

Título é um problema
A frase é de Affonso Romano de Sant’Anna, na crônica A título de títulos, no livro Entre autor e leitor (Rocco, 2015). E o texto começa com uma piada, que é assim: Um autor termina o romance, não consegue dar um título e pede ajuda a um amigo.

— Seu romance fala de trombeta?
— Não.
— Seu romance fala de tambor?
— Também não.
— Então coloque o título Sem tambor nem trombeta.

No caso de O esculpidor de nuvens, o título é tirado de um conto com esse título, da primeira parte do livro que também se chama O esculpidor de nuvens. O livro poderia se chamar O cão mentecapto, que é a segunda parte. O escolhido dá um ar mais lírico à obra. Se a escolha tivesse sido O cão mentecapto, a embalagem sugeriria conteúdo mais pesado. Mas nenhum dos dois sintetiza de verdade conteúdo.

Se Otavio Linhares tivesse perguntado a um amigo qual poderia ser o título de seu livro, e esse amigo fosse semelhante ao da piada, um diálogo possível seria:

— Seus contos têm mortes?
— Não exatamente.
— Seus contos têm guerras?
— Guerra de verdade, não.
— Então coloque o título Sem mortos nem feridos.

(sem contar que no conto serial killer o narrador pode ter ajudado um assassino a se safar)

O esculpidor de nuvens

Otavio Linhares
Encrenca
112 págs.
Otavio Linhares
É editor da revista curitibana de Literatura Jandique. É também um dos idealizadores da editora Encrenca – Literatura de invenção, por onde publicou O esculpidor de nuvens e Pancrácio.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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