Sem salto alto

"Xadrez" revela um olhar descontraído e coloquial sobre o cotidiano de uma mulher contemporânea e independente
Ana Elisa Ribeiro, autora de “Xadrez”
31/10/2016

A metáfora do jogo de xadrez já foi muito utilizada na literatura, por ser o xadrez um jogo que ultrapassa os limites da competição. Associado à inteligência e a estratégia, o “rei dos jogos” é digno do engendramento lúdico e articulado de toda boa literatura, em especial da poesia; a rigor, do poema.

O jogo simula o conflito entre dois exércitos (um preto e um branco), cada qual com suas peças (16 pretas e 16 brancas) que se movimentam em tabuleiro subdividido em 64 casas (32 pretas e 32 brancas). Não creio que seja apenas uma coincidência numérica com os 64 hexagramas do I-Ching. É muito preto no branco.

Já foi referido como uma alegoria do comportamento humano, ou até como modelo de uma certa “moralidade” que destacava a relação intrínseca de causa e efeito nas ações humanas.

Na poesia, a imagem já tematizou o duplo, o enigma, o quebra-cabeça, a loucura, o exílio, a própria linguagem. Poetas tão distintos como Omar Khayyam e Fernando Pessoa, ou Dante e Maiakovski, já o abordaram ou utilizaram-no como metáfora em suas composições.

Só para completar a enumeração prolixa que me permito fazer nesta introdução, não poderia deixar de mencionar o poeta e crítico Ezra Pound com seu poema O jogo de xadrez e Borges com seus luminosos versos finais do poema Xadrez, que cito aqui em tradução preciosa de nosso poeta-tradutor maior, Augusto de Campos:

[…]
Quando os rivais já se tiverem ido,
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

Este último verso de Borges poderia ser a epígrafe do livro recente da mineira Ana Elisa Ribeiro, Xadrez. Ana preferiu como epígrafe a frase lapidar de Michel de Certeau em sua A invenção do cotidiano: “A memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez”.

Ana Elisa revela-nos logo em seu primeiro lance que, como no xadrez, como na vida, a poesia se tece com os fios da memória. Aqueles fios que ainda vibram porque foram tangidos com a sutileza devastadora das paixões.

Xadrez é o quinto livro de poemas de Ana Elisa e está estruturado de forma triádica: Parte 1, Peças; Parte 2, Tabuleiro; e Parte 3, Jogadas. A poeta dispõe suas peças em um tabuleiro tecido com uma poesia lírica-erótica e com jogadas repletas de coloquialidade e ironia.

Como sucintamente aponta na quarta capa do livro a escritora e ensaísta Maria Esther Maciel, “o viés lírico-erótico, materializado num constante jogo amoroso entre o eu e o outro, é a tônica mais evidente do livro”.

Tônica que já se podia notar em outros escritos e livros seus. Por exemplo, em seu terceiro livro, Fresta por onde olhar, Elisa já dialogava com a articulação destes jogos no tabuleiro do texto:

O corpo inteiro
é um tabuleiro
de jogar jogos de azar
As costas quadriculadas
As coxas quadriculadas
A boca quadriculada
Onde eu me finjo
de dama

O rito a que se refere Borges em seu poema, dois jogadores a reger suas peças, o encontro e o desencontro com o outro (e consigo mesmo), não cessa nunca e Ana Elisa sabe muito bem disso, transpondo-o com seu texto sem afetação e longe da pieguice amorosa; e, ao mesmo tempo, com muita consciência do uso da linguagem, o que faz jus a todo bom poeta.

Letra
Pareceu-me importante
conhecer-lhe a letra
mais do que a própria mãe;
mais do que o tino, os dentes,
os hábitos, a palma da mão;

pareceu-me fundamental
conhecer-lhe a curva do ‘a’
e a barriga do ‘g’,
antes mesmo do pau
e de algum outro pormenor.

Pormenor, sim,
embora eu pudesse reconhecer nele
o efeito de salto em queda livre.

Direto ao sumo
A poesia de Ana Elisa é direta e reta. Reta no melhor sentido da palavra, a que vai direto ao sumo do assunto, o menor caminho entre o querer e o dizer; mas por ser poesia é sinuosa, sedutora, melíflua (doce porque vive a dor do existir tingindo-a com a cor humanista do humor). Mas o leitor menos habituado às características da poesia, nos perguntaria: “Mas como é possível ser as duas coisas? Ou isto ou aquilo!”. Nós responderíamos que a boa poesia é assim, é isto e aquilo ao mesmo tempo, “apagacende” como pirilampos.

[…]
Paro, cansada,
na varanda
de casa
pra olhar
meu tapete
de desventuras.

Um Ulisses
até dava pra esperar,
fazendo uma colcha
de finas desesperanças.

Mas este entra e sai
pouco solene
— apagacende a pira —
me transforma
em uma insistente
amazona
de péssima
mira.

O xadrez da existência também pode significar uma prisão. Só a poética vivência dos absurdos da vida, poderia nos possibilitar lances dignos do movimento em “ele” que perfaz a peça cavalo no jogo de xadrez.

Game over
Era pra fazer uma coisa.
Fiz outra.
Vou vivendo
em xadrez.

Pode-se sugerir uma aproximação da poesia de Ana Elisa com a de Leminski ou mesmo com a poesia de Ana Cristina Cesar. Com Leminski, uma possível esperteza no dizer as coisas de forma rápida, coloquial e sintética, sempre de olho no falar da própria linguagem e de como ela soará em voz alta. Com Ana Cristina Cesar, o olhar e o tom que baila entre o confessional e a ficção. No entanto, o que podemos afirmar com a quase certeza de uma leitura não acadêmica de sua produção é a dicção acostumada e formada no contato com a poesia de Drummond, Oswald de Andrade e dos poetas marginais da década de 1970.

Poesia
não dá
em cacho
nem brota
pula ou
espouca.
poesia
não atende
pelo nome.
poesia
não pinta
nem pousa.
poesia
não quica
na área.
poesia
não cresce
não rega.
poesia
não
é parida.
poesia
é coisa
distraída.

É coisa distraída, de olhar em paralaxe. Mas, para contrariar Leminski, nem sempre distraído venceremos. Na real, o olhar do poeta é atencioso. A atenção é sua forma de oração. Ele só parece distraído, porque não olha diretamente, olha ao revés para ver o essencial.

Luxo
Veja que luxo
namorar uma moça
cuja casa tem uma roseira na entrada.
Só por isso
não podes mais abandoná-la.
Onde mais vais ver algo assim
Uma roseira verdadeira!
Cabe perguntar à moça
se é ela mesma quem cuida,
rega e drena.
Se for, não podes largá-la,
se vês a roseira plena.

A poesia de Ana Elisa vem para revigorar o olhar feminino na poesia contemporânea brasileira. Precisamos dessa leveza despudorada. A barriguinha do amado não escapa. A relação com o filho, também não. O amor ao pai, muito menos. Nem a possibilidade de se tornar uma poeta famosa escapa: quando eu for/ poeta famosa/ podem/ me internar/ num/ frontispício.

O convite ao jogo foi feito. O leitor pode/deve articular cada poema do livro a seu bel prazer. O eu lírico e amoroso que nos conduz pelo tabuleiro do livro nos brinda sempre com a irreverência do olhar poético. Nosso anseio de se livrar de um cotidiano demasiadamente administrado agradece comovido.

Xadrez
Ana Elisa Ribeiro
Scriptum
71 págs.
Ana Elisa Ribeiro
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É professora doutora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Escreve contos e crônicas, além de poesia. Em poesia tem os livros publicados Poesinha (1997); Perversa (2002); Fresta por onde olhar (2008); e Anzol de pescar infernos (2013), semifinalista do prêmio Portugal Telecom 2014. Publica, junto com o poeta Bruno Brum, a coleção Leve um livro, que espalha poesia pela capital mineira.
Edson Cruz

E poeta e editor do site Musa Rara.

Rascunho