🔓 Sem sair do lugar

"Saudade não viaja bem", de Lu Lacerda, é um romance correto, mas sem grande investimento temático ou estilístico
Lu Lacerda, autora de “Saudade nĂŁo viaja bem” Foto: Bruno Ryfer
01/03/2023

Em interessantes páginas iniciais, a narradora, em primeira pessoa, descreve uma crua cena de aborto forçado em Saudade não viaja bem, romance de estreia de Lu Lacerda. Infelizmente, não vai muito além: um romance feminino correto, sem grande investimento temático ou estilístico.

Eu grávida, sem poder ter o filho. Quando meu namorado foi me buscar, muito cedo ainda, me deixei levar (…) numa espĂ©cie de transe. (..) Minha recordação me leva ao momento em que eu estava deitada, de pernas abertas, num lugar tĂŁo feio e tĂŁo frio. Tudo piorou quando o mĂ©dico mandou que eu abrisse ainda mais as pernas (…)

Seria oportuno desenvolver o tema (ainda pouco tratado na literatura feminina, mas recém-valorizado pela autoficção da francesa Annie Ernaux em O acontecimento). Entretanto, os efeitos emocionais do aborto sobre a narradora-personagem permanecem vagos porque alternados com longos trechos (biográficos?), que relembram sua infância rural na Bahia: deles, emerge a figura altiva do pai, da mãe, das avós na rotina entre o gado e a natureza.

A narradora, ainda sob o efeito da sedação, passa a relembrar a infância na fazenda onde se criou, e, num andamento cronológico regular, estende a lembrança à vida adolescente no Rio de Janeiro, aonde viera estudar.

Não é fácil conectar a memória aos efeitos psicológicos do aborto de um filho que (talvez) não se quisesse perder. Quer dizer, o leitor não encontra ecos de ligação temática entre a infância na roça e o aborto. Talvez seja apenas uma questão de construção, já que os relatos se alternam.

O que sobressai, entretanto — insistente —, é a certeza de que, sobretudo diante das vicissitudes da vida na cidade, a vida na fazenda é sempre melhor e inspiradora. Quando vinha o fotógrafo, a narradora mostra o antagonismo:

Eu e meus irmĂŁos nos arrumávamos tanto que nos transformávamos exatamente naquilo que nĂŁo Ă©ramos. PerdĂ­amos o nosso ar meio rĂşstico, nossa autenticidade, talvez o melhor que tĂ­nhamos. Minha mĂŁe brincava: Hoje Ă© dia de virar criança grĂŁ-fina. (…) Bem ao contrário das galochinhas e das botas do dia a dia, tĂŁo confortáveis, eu me via aprisionada em meus sapatos de festa.

HistĂłrias quase autĂ´nomas
Creio até que se poderia ler esta obra como duas narrativas. A que trata do aborto carrega, na amargura da jovem mulher, a confirmação do peso patriarcal sobre os não apaniguados — no caso, essa moça do sertão, que se pôs a namorar um riquinho carioca. A casa dele, de família rica e proeminente, “era belíssima”, as pessoas usavam “roupas finíssimas”; nas paredes, Tarsilas e Portinaris; e, no pescoço da mãe do moço, um “babador” de diamantes. Assim, diante da nordestina, há um herdeiro que deveria brilhar. Nitidamente, a narradora se vê desconcertada diante de taças de cristal e tanto luxo. Cabe a esse namorado (a quem mais?), apavorado com a reação dos pais, contratar, conduzir e pagar todo o procedimento cirúrgico, que consertará seu futuro:

Ele, o tambĂ©m “dono da gravidez”, sem piedade, estava com o poder nas mĂŁos daquilo que era meu; (…) O que mais me perturbava era saber que eu nĂŁo mandava no meu corpo. (pág. 27) O aborto foi Ă  revelia de meu desejo, mas fiz. NĂŁo queria? E por que consenti? (pág.75.)

Ao leitor fica a impressão de que a personagem, mesmo narrando, subjuga-se por se sentir de fato inferior. Resigna-se (como costuma acontecer com não poderosos na sociedade “cordial” brasileira). A personagem, parece, usará essa frustração (afinal, escreve uma narrativa) para, de maneira um tanto pueril, valorizar a pregressa vida rural.

Assim, não se trata de um romance de formação ou de empoderamento feminino; o leitor infere que nada mudou nem mudará: um aborto compulsório é apenas mais uma das violências urbanas que contrariam o lirismo atávico do campo. Assim, a memória vale só como conforto, não será vingança nem trará poder a quem narra — é apenas um antigo paradoxo campo-cidade.

Na fazenda, depois de crescer, era da cidade; na cidade, mesmo adulta, era da fazenda. “Uma eterna deslocada, sempre na contramão”.

Tom narrativo
A extensa lembrança dos anos traz como tarefa louvar no cenário quase idílico, pai, mãe, avós, bisavós; estes personagens trazem consigo muitas sentenças morais. O leitor terá de construir suas personalidades através dessas sentenças — que se estendem por toda a obra.

Cada um é responsável pela interpretação que dá a seus problemas. Tanta gente ruim para morrer e que morre é o gado. (avó)
 Amizade e lealdade com filho não é virtude, é obrigação. (a mãe)
Um gênio já disse que a vida só deveria ir até onde fosse a dignidade. (bisavó)
— O que é ingênua, pai? [Ser ingênua] é doce ou amargo? — Mais doce que amargo. Gente de boa-fé extrema é ingênua; gente que não percebe nuvens pesadas é ingênua. (o pai)

A filha, extremamente apegada à mãe, relativiza seu alcoolismo (a mãe acordava com as bochechas rosadas). E o pai, mesmo, liderando autoridade patriarcal em todas as esferas (até na altura da barra dos vestidos), parece condescender com isso. A narradora, então, se alonga na tristeza infinita da mãe: talvez a perda de um filho, talvez a frustração de viver enterrada numa fazenda.

Diferentemente do que afirma o editor Rodrigo Lacerda na orelha do romance, mesmo sob “anos e anos de silenciosa depuração desses temas”, não vejo elaboração sólida neste relato. A nostalgia rural é excessiva e, muitas vezes, simplória. Assim, a força do relato sobre o aborto não consentido será diluída por aquele excesso. (Creio que Lacerda, observador arguto, se refere à possibilidade de autoficção). Porém, a primeira pessoa onisciente em memórias não cria autobiografia por si só — que, na terceira pessoa, ganharia mais intensidade.

Correndo o risco de me repetir ao ler tantas obras femininas contemporâneas, lembro que a literatura feita por mulheres foi definida há mais de 50 anos por Gilda de Mello e Souza como uma construção de “olhar míope” — que enxerga com precisão somente o que está perto, incapaz de ver claramente longe da janela. Creio que algumas de nossas escritoras ainda não superaram essa miopia.

Nesta narrativa, por exemplo, os olhos de tudo o que está na fazenda, nos vestidos, nos vestígios, na toalha da mesa remete a uma literatura ainda sem fôlego para seguir em grandes questões. Como se fosse obrigatório, muitas autoras ainda se equilibram na miudeza das descrições:

(…) vestido de linho rosa, o mais bonito que a vi usando a vida toda. Tinha decote quadrado, mangas muito curtinhas e um pouco armadas, o que ficava bem em seus braços magros e longos. Era justo atĂ© a cintura, e a partir dali, algumas pregas bem largas se abriam, indo atĂ© a altura do joelho. Era esse o comprimento mais curto que meu pai permitia.

Caras autoras (e não falo somente sobre Lu Lacerda), descrevam menos decotes e mangas, e alonguem-se nas razões sociais de o comprimento não passar do joelho. Não usem um viés didático na cena, das mais comuns, de como preparar a cocaína — que conheceu (quem mais?) pelas mãos do namorado rico. Tudo fica meio maniqueísta.

Ele tirou o pó branco de um saquinho, pegou um prato, aqueceu, colocou ali a droga e, depois de separá-la com um cartão de crédito, fez as linhas formando meu nome; certamente aquilo para ele significava uma homenagem.

A temática feminina de libertação e poder (ostensiva numa das epígrafes autora: Pela autonomia de todas as mulheres) anula-se quando o comprimento do vestido, o aborto forçado, o tempero da casa, o alcoolismo e a cocaína — tudo emerge nas mãos dos homens. Bisavó, avó, mãe e a própria narradora não conseguem, sem levante nem rebelião, forças para conduzir o próprio destino.

Se a autora pretendeu expor maturidade e autoconhecimento feminino no presente em que narra, talvez não tenha sido, ainda, bem-sucedida. Terminamos de ler a obra e nos perguntamos: será que apenas o registro em livro das vicissitudes do clássico patriarcalismo faz de uma mulher uma fortaleza? Creio que não. “A saudade não viaja bem”, como disse na obra a avó de Maria Clara.

Saudade nĂŁo viaja bem
Lu Lacerda
Record
208 págs.
Lu Lacerda
Nasceu na Bahia e vive no Rio de Janeiro. É jornalista, formada pela Faculdade da Cidade, em 1994. Estudou literatura brasileira na Oficina Literária Ivan Proença. Saudade não viaja bem é seu romance de estreia.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

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