Sem restrições

O mais recente romance do inglês Ian McEwan pode ser considerado desde seu lançamento uma obra-prima da literatura universal
Ian McEwan, autor de “Reparação”
01/07/2002

Ao fazermos uma opção, abrimos mão de uma porção de possibilidades. Por mais óbvia que a idéia seja, ela é oportuna, sobretudo depois de um mês em que a Copa do Mundo monopolizou todas as atenções. Devemos ter deixado de lado diversos outros assuntos, alguns certamente mais relevantes que o ziguezague das bolas nos gramados coreanos e japoneses. Recentemente, os cadernos e os suplementos culturais vêem desperdiçando espaço, e os resenhistas, principalmente aqueles que lêem, gastam tempo, por exemplo, com um autor inglês como Nick Hornby, considerado uma sensação ao debutar, mas que a cada novo título se revela um embuste literário. Há outro escritor inglês, brilhante, que acaba de publicar um romance, uma obra-prima. Ele atende por Ian McEwan e seu mais recente livro chama-se Reparação.

A longa narrativa tem início em 1935, em uma pequena cidade inglesa, no momento em que Briony Tallis, 13 anos, pretende encenar Arabella em apuros, texto teatral cuja mensagem era a de que “todo amor que não fosse fundado no bom senso estava fadado ao fracasso”. Logo nos primeiros ensaios, percebe a distância existente entre a idéia e sua concretização. Não foram apenas as péssimas atuações de seus primos gêmeos, literalmente destruindo os diálogos, que fizeram com que ela desistisse de encenar a peça. Pela janela de seu quarto, a distância, visualizou uma cena, em que sua irmã mais velha, Cecília, discutia com o filho da faxineira, Robbie Turner. A pequena artista decidiu abandonar a dramaturgia ao ter visto sua irmã mergulhar nas águas de uma fonte, apenas com as roupas de baixo, voltando com os restos de um vaso, uma relíquia familiar, que se partiu durante a discussão. Briony sentiu que houve uma revelação ali. Mais tarde, ficaria perturbada ao ler uma palavra desconhecida, para ela, em um bilhete que Robbie escreveu para Cecília. Susto maior foi ter flagrado, horas depois, Robbie fazendo amor com Cecília na biblioteca. Houve mais incidentes naquela noite, mas um depoimento de Briony seria o grande fato, responsável por uma reviravolta.

O livro é dividido em três partes, e, na primeira, cada capítulo revelará aspectos e visão de mundo de cada um dos personagens. No entanto, o que sobressai é a capacidade do autor em esmiuçar o tempo, valorizando cada segundo, mostrando como situações que ocorrem em um único minuto podem ter grandes dimensões. Em várias ocasiões, tem-se a impressão, mas somente ao final confirma-se que é Briony quem conduz a narrativa. E, realmente, da maneira como o texto foi composto, apenas algum dos personagens envolvido na trama poderia apontar que determinado fato passado repercutiria no futuro e que uma situação presente é resultado de uma ação pretérita.

Toda a segunda parte simboliza uma espécie de provação para os personagens centrais. O depoimento de Briony fez com que Robbie Turner fosse condenado por um crime que ele não cometeu. Depois de uma temporada detido, ele estaria em território francês, em meio a Segunda Guerra Mundial. Cecília e Robbie se apaixonaram, e o que motivava este personagem era a esperança de reencontrar sua amada. Ele se prendia a uma carta dela, que tinha o seguinte desfecho: “Você é meu amor, a razão de minha vida”. E as recordações amorosas se resumiam àquele encontro na biblioteca e outro momento passado em uma casa de chá. Tudo era pouco, mínimo, mas suficiente para fazê-lo seguir em frente.

Havia a possibilidade de que Briony mudasse o depoimento, fazendo com que ele deixasse de ser um criminoso — e isto também animava Robbie. Mas ao caminhar pelo continente europeu destroçado pelos bombardeios e bombas, que, ou provocavam mortes violentas ou mutilavam seres humanos, ele se questiona até que ponto seria realmente culpado, ainda mais sendo inocente. “Passamos o dia inteiro um testemunhando os crimes do outro. Você não matou ninguém hoje?”. McEwan poderia ter ambientado o enredo em qualquer outro período da história, mas ao usar, justamente, a Segunda Grande Guerra como cenário para este drama, a noção de culpa ganha nova dimensão — são detalhes como este que fazem com que o autor mereça ser apontado como brilhante.

Depois que Robbie fora preso, Cecília abandonou a família, tornando-se enfermeira. Briony abraçou a mesma profissão — eis a terceira parte — devido a outras motivações. “Por mais que se esfalfasse em trabalhos braçais e nas tarefas mais humildes da enfermagem, por melhores e mais intensos que fossem seus esforços, por mais que houvesse aberto mão dos conhecimentos que lhe proporcionaria o estudo, da oportunidade de viver no campus de uma universidade, ela jamais poderia desfazer o mal que causara. Ela não tinha perdão”. Um dia, ela ruma em direção do local em Cecília reside, encontrando, além da irmã, Robbie. E um quarto de pensão seria o cenário em que eles se enfrentariam, liberando todas as emoções contidas, ressentimentos, palavras não-ditas até então. Briony sairia dali disposta a reparar seu erro, e muito mais do que retirar sua falsa acusação, escreveria uma longa narrativa revelando tudo que sabia.

O inglês Ian McEwan, nascido na cidade de Aldershot em 1948, autor, entre outros, dos romances A criança no tempo, O jardim de cimento, Amor para sempre e Amsterdam (Prêmio Booker Prize 1998), está, também, propondo uma discussão sobre o fazer literário. A personagem Briony Tallis tinha, sentia necessidade de transformar sua experiência de vida em literatura, tendo escrito a primeira versão em janeiro de 1940 e apresentando o texto final em março de 1999. Foram 59 anos até acertar a mão. E, no decorrer desse tempo todo, soube dar ouvidos para sugestões, acatando o que era conveniente. No início da década de 1940, havia enviado o esboço do então Dois vultos junto a uma fonte para a redação de uma revista literária, e recebeu uma longa, e esclarecedora, resposta. Na carta, a editora comentava as qualidades e os problemas da obra de uma jovem autora que, muito mais do que apenas publicar, desejava revolucionar a literatura universal, produzindo algo que até então jamais havia sido feito. Em seu delírio juvenil e vanguardista, havia se esquecido de que, acima de tudo, o texto precisa(va) de uma espinha dorsal. Ela construiu uma carreira literária, publicando outros títulos, mas o enredo de sua vida levaria tempo ainda antes de se transformar em livro impresso.

Os personagens criados por McEwan são realmente complexos. Nenhum deles é apenas bom ou mau, inocente ou culpado, e suas atitudes resultam de vários fatores. Briony pode ser apontada, a princípio, como culpada devido à sua acusação que tanto mal causou a Robbie, mas ao ter decidido reparar, reconhecendo seu erro, sua culpa pode ser revista. E Robbie também não é apenas um coitadinho. São muitas as qualidades de Reparação, assim como é imenso o talento de Ian McEwan, que imprimiu tensão do começo ao fim do texto, tendo construído um enredo que em nenhum momento pode ser tachado de previsível. Impressionante mesmo é não poder fazer nenhuma restrição a este livro, que parece ser uma obra-prima da literatura universal.

Reparação
Ian McEwan
Companhia das Letras
446 págs.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho