Sem proselitismo

A resignação diante da vida, sem jamais abdicar da luta pela sobrevivência, é o tema central de Os Corumbas
Ilustração: Tereza Yamashita
13/06/2015

Publicado em 1933, Os Corumbas, de Amando Fontes, teve longa gestação, desde o início da década de 1920, quando o autor, residindo no Rio de Janeiro, participava do grupo de intelectuais reunidos em torno de Jackson de Figueiredo. O romance nasceria só após a Revolução de 30, ao fim de tortuosa trajetória — durante a qual Fontes viveu em três estados: Bahia, Sergipe e Paraná — que terminou, mais uma vez, no Rio de Janeiro, quando o autor chegava aos 34 anos.

Obra da maturidade, portanto — o que talvez explique, parcialmente, as qualidades do livro —, apesar de ser romance de estreia, Os Corumbas reafirma as lições de O quinze, de Rachel de Queiroz, publicado três anos antes: repúdio à linguagem verbosa, nossa conhecida retórica, e ao naturalismo, ao romance de tese — que, ainda em 1928, guiara José Américo de Almeida na redação de A bagaceira.

Realismo
A história da família Corumba tem seu início dois anos antes da terrível seca de 1905, num desses repetidos períodos em que o sertão do Nordeste vive sob tensa expectativa, na qual temor e esperança se digladiam enquanto a natureza não toma sua decisão.

Com as chuvas, o fazendeiro João Piancó precisa cumprir a promessa que fizera e organiza a Festa de São José. Os melhores músicos são convidados, entre eles, Geraldo Corumba, gaitista famoso, que se apaixona pela filha caçula de Piancó, Josefa, a “flor da casa”.

O Geraldo que se apresenta, pronto a responder ao convite do futuro sogro com uma afirmativa jocosa — “Nem que chova canivete, antes das onze eu risco na Urubutinga” — e que encanta Josefa ao chegar à festa “cavalgando um ruço magro e perereca”, não perdurará:

Era moreno-claro, de estatura mediana, corpo delgado e ágil. Estava sem casaco, na sua camisa nova de riscado, calças brancas seguras por um largo cinturão de couro, com vistosas fivelas de metal. À cabeça, um largo chapéu de palha de carnaúba, circulado por uma fita escarlate, quebrado atrás e empinado na frente, emprestava-lhe um ar pimpão e alegre

— diz o narrador sobre o gaitista que, apenas dezenove anos mais tarde, com cinco filhos, sente-se velho e hesita em aceitar o plano da esposa: Josefa sonha com a vida na capital, Aracaju, forma provável de conseguir “emprego decente” para os filhos maiores — Rosenda, Albertina e Pedro — nas fábricas de tecidos e na estrada de ferro.

A gaita é esquecida — e a personalidade do patriarca fecha-se, desde a seca que os obriga a fugir para o engenho da Ribeira, num crescente mutismo.

Seis anos de vida em Aracaju servirão para derrotar o casal. Quando Josefa, certo dia, recorda o aniversário de casamento, Geraldo, agora um claudicante vigia noturno, nada responde e se limita a “balançar a cabeça encanecida”.

Essa resignação diante da vida, sem jamais abdicar da luta pela sobrevivência, é o tema central da narrativa que muitos classificaram como “proletária”, termo que esconde a tentação de sequestrar o romance para a zona turva da literatura ideológica, na qual, aliás, atolaram-se com sucesso os primeiros livros de Jorge Amado, até hoje cultuados pela esquerda.

Os Corumbas é, na verdade, literatura realista. Ou melhor, boa literatura, ficção despojada do olhar cínico, do escárnio machadiano que polui nossa ficção e, também, nosso imaginário, fazendo-nos acreditar que há sempre, necessariamente, por trás de cada gesto, uma segunda intenção malévola.

Como salientou Olívio Montenegro (em O romance brasileiro), as “circunstâncias invisíveis e imponderáveis” formam o grande personagem do livro. Obra, aliás, que Montenegro, como outros, não entendeu, exigindo de Fontes o que este recusa: um narrador onisciente capaz de esmiuçar a alma dos personagens, revelando aos leitores a psicologia de cada um não por meio de suas decisões, de seus atos — como o romancista faz de maneira habilidosa —, mas de elucubrações, comentários e análises morais ou antropológicas.

Montenegro chega ao cúmulo de afirmar que Fontes “enfraqueceu moralmente” e “reduziu a zero a consciência de personalidade” das personagens, “tão vivas nos gestos e palavras, e tão mortas na alma”.

Vibra, no substrato desses comentários, o leitor mal-acostumado, que exige a presença do narrador didático, pronto a revelar “o invisível fundo de verdade que ele descobre por trás do que vê e apalpa”, como o próprio Montenegro afirma. O realismo sóbrio de Fontes não permite, contudo, essas tergiversações, esses julgamentos.

O autor recusa também os estereótipos, o sociologismo — e a tese pessimista, no estilo de Álvares de Azevedo, para quem a degradação moral é regra absoluta da sociedade.

Em relação a esse ponto, Massaud Moisés (em sua História da literatura brasileira) parece não ter compreendido o romance, pois anseia descobrir ali alguma “tese implícita”: ou a de que “não há remédio para o retirante nem para o operário”, ou a rousseauniana, de que a “cidade degenera” o homem do campo, de que as filhas de Geraldo e Josefa teriam sido levadas à prostituição por serem ingênuas.

Ora, Fontes deixa as possibilidades abertas aos personagens. E se há limites, são os enfrentados por todos nós, os da própria realidade, que tentamos sempre superar, com menor ou maior sucesso.

O filho, Pedro, por exemplo, liga-se aos comunistas e, após malsucedida greve, condenado ao degredo, pena comum na época, escolhe continuar no partido. Depois, submete-se, por determinação partidária, a emprego medíocre, de baixíssimo salário, no Rio de Janeiro. Interrompe, assim, por escolha própria, a carreira ascendente.

Quanto à prostituição de três das quatro filhas — uma delas, Bela, morre de tuberculose —, todas são educadas segundo os rígidos valores de Josefa e Geraldo. Sabem, portanto, das consequências, naquele meio e naquela época, para as mulheres que optavam por relações amorosas fora do casamento. Rosenda, a mais velha, é alertada severamente pela mãe, mas utiliza a fuga amorosa como gesto voluntarioso, de libertação. Albertina entrega-se por livre e espontânea vontade ao médico da fábrica e diz: “Faça de mim o que quiser…”. Sua atitude, sempre positiva e alegre, permanece igual quando se vê abandonada: à decisão livre segue-se, sem nenhum drama, a mudança para a rua das prostitutas. Quanto a Caçulinha, seduzida pelo noivo, mostra arrependimento, mas, principalmente, caráter. Diante da fraqueza, da inferioridade do sedutor, age como se afirmasse: “Desvirginizada, sim; desonrada, não”.

O comportamento dos personagens secundários reforça a liberdade das irmãs: outras mulheres seguem caminhos semelhantes, mas algumas casam-se e são felizes. E há, entre as jovens, sejam operárias ou trabalhem no escritório das fábricas, a consciência de como são vistas pelas famílias de outros bairros: podem ser atraentes, educadas e moralmente retas, mas continuam sendo as “moças do tecido”, ou seja, devem procurar maridos na sua própria esfera social.

Há revolta contra os baixos salários, há consciência da injustiça, a impossibilidade de ascender socialmente está colocada de forma inquestionável — mas sem que o narrador discurse em favor dos pobres ou dos ricos, sem que decida edulcorar a realidade com teorias mirabolantes ou, como se costuma dizer hoje, de maneira eufêmica, politicamente corretas.

Escolhas aéticas, censuráveis, ocorrem também entre ricos e poderosos. Veja-se, por exemplo, o interesse político e a corrupção que norteiam as reações do governo estadual à greve das empresas têxteis: quando o governador muda de lado, Celestino, delegado de polícia da capital, a princípio defensor dos comunistas, percebe a fragilidade de sua opção e não hesita em trair os líderes do movimento.

A sociedade baseada no patriarcado e a moral da época não surgem por meio do narrador que decide levantar a voz contra os opressores, mas das reflexões do personagem que se reconhece egoísta e submisso às influências familiares. Entre o amor por Caçulinha e o preconceito familiar, Zeca acaba vencido pelo segundo, sintetizado na fala do avô, antigo senhor de escravos:

— Não, Zeca. Pra você tornar às boas com nós todos e ter a nossa ajuda na vida, precisa tomar juízo de uma vez. Comece por acabar com esse casamento desigual. Essa menina não é digna de você. Lembre-se bem: “Mulher e cão de caça, pela raça”.

A vida, tão somente a vida, pulsa nesse romance, repetindo a lição irrefutável que a maioria se recusa a aprender: escolhas produzem consequências.

Diálogos e descrições
A força do romance manifesta-se também nos diálogos espontâneos e nas descrições que não se perdem numa exatidão cansativa ou no palavreado exuberante.

Veja-se, no Capítulo 3 da Segunda Parte, as falas tensas, a agitação de Josefa:

Tinha a fisionomia carrancuda. De quando em quando engrolava umas palavras de raiva, fazendo os bilros se entrechocarem com força, num estalar ritmado e estridente.

Passava alguns minutos nessa tarefa, os olhos fitos no desenho caprichoso que as linhas iam modelando; mas logo se impacientava e erguia-se para chegar até a janela. Olhava a rua em todos os sentidos. E como não divisasse o que queria, voltava, arrebatadamente, à sua cadeira.

— Ah! — exclamou em dado instante. — Essas meninas estão é tomando sopa comigo! Quem já viu uma coisa dessas? Já passa muito das nove e aquelas duas moças sozinhas pela rua! Qual!… Isso precisa entrar nos eixos…

Soavam dez horas no relógio da Têxtil quando Albertina foi entrando. Sá Josefa descarregou sua cólera sobre ela:

— Não! Eu não criei filhas pra andarem vagabundando até alta noite pelas ruas! Vocês estão se enganando comigo! O que é que ficam fazendo lá por fora? Namoros, com certeza… Muito bonito, isso! Se têm namorados, se eles são sérios, com boas tenções, que venham ver vocês aqui em casa. É melhor! Eu não me importo! O que não me cheira bem são esses passeios até tarde, ninguém sabe por que cantos.

A tensão cresce quando Rosenda finalmente chega:

[…] Sá Josefa caminhou para ela. E as mãos escanchadas nas ilhargas, os olhos fuzilantes, prorrompeu:

— Bonito! Bonito! É mesmo uma beleza! Quero saber onde é que já se viu uma moça donzela ficar sozinha na rua até essas horas! O que é que está pensando? Você cuida que me trepa no cangote. Ah! Ah! Sá Dona! Está enganada comigo! Muito enganada, mesmo!

Num segundo, a cólera havia transtornado as feições da que chegara. Sua respiração tornou-se apressada e sibilante. Achou melhor, porém, não dizer nada. E, num gesto arrebatado, dirigiu-se ao corredor.

Mas Sá Josefa postou-se-lhe na frente:

— Não, não! Não saia! Tem que ouvir tudo! Não pense que é só fazer suas doidices e corres caladinha pro seu canto! Tem que me escutar até o fim, pra ver se toma vergonha nessa cara!

Aí, Rosenda já não pôde mais se conter, e retrucou também gritando:

— Virgem! Mãe está ficando de uma forma, que nem quer que a gente dê um passeinho…

— Eu estou ficando?! Não estou ficando coisa alguma!

E, batendo com a mão espalmada sobre o peito:

— Eu sempre fui a que sou hoje. Vocês, sim, é que mudaram… Quando a gente morava na Ribeira, não havia passeios toda noite, nem amiguinhas, nem namoros. Mas, lá, vocês eram tementes. Aqui, é que engrossaram o pescoço. […]

Será sempre assim, independentemente do estado emocional dos personagens: às falas correspondem gestos, compondo cenas harmônicas, sintéticas, verossímeis, em que nenhum elemento pode ser classificado como exagero.

O tempo é marcado em dois níveis: as sirenas das fábricas assinalam não apenas o começo e o término dos expedientes, mas o início e o fim dos dias. Ditam os horários de descanso, as pausas para refeições, todos os momentos que compõem o cotidiano. Num plano maior, há as festas populares, grandes pausas no trabalho extenuante.

Aos sábados, quando o expediente termina mais cedo e os operários recebem o pagamento, é possível caminhar a esmo, como fazem Caçulinha e Zeca no Capítulo 32 da Segunda Parte. No Cruzeiro de Santo Antônio, veem a cidade “que se desdobrava a seus pés”:

Primeiro, o subúrbio, com as suas casas, ora de palha, ora de telha, espalhadas, quase a esmo, por entre os arbustos ralos da caatinga. Mais adiante, o Cemitério de Santa Isabel, muito branco, fazendo lembrar uma pequena vila, com as ruas, silenciosas e estreitas, de seus túmulos. Vinha, depois, a cidade, que era todo um amontoado de tetos vermelhos, afogados entre o verde dos coqueiros e das árvores que vicejavam nos quintais. Mais longe, depois do casario, o Atlântico, azul e imenso, lançando espumas brancas na areia branca da praia. E lá, quase imperceptível na distância, o vulto esguio da Atalaia Velha, com seu farol rotativo já aceso.

No final, quando Geraldo e Josefa aguardam a partida do trem que os levará de volta ao interior, as chaminés das fábricas fumegam. Mudos, afogados na derrota e na vergonha, ouvem as sirenas que liberam as operárias. A visão das moças em seus tamancos e aventais, conversando alegres, aguça a dor do casal — e o tumulto do vagão, repleto de viajantes, cessa, pouco a pouco, diante do choro dos velhos. Mesmo nesse ponto, quando a certeza de terem perdido tudo cresce e os engolfa, mesmo aí o narrador se recusa ao proselitismo. Diante do leitor, além dos soluços de Josefa e Geraldo há somente o apito do trem e a locomotiva que resfolega. Nada mais — nenhuma concessão à ideologia ou a qualquer tipo de catequese.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Oswald de Andrade e Serafim Ponte Grande.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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