Sem prazo de validade

"Melhores crônicas" de Ignácio de Loyola Brandão desafiam o tempo e têm vida própria fora das páginas do jornal
Ignácio de Loyola Brandão tem um olhar apurado sobre o que vê e viu
01/07/2004

(Pensei em um ótimo nariz de cera para começar esta resenha. Falaria da crônica, que é um gênero tipicamente brasileiro, que ela deve falar do instantâneo do cotidiano, que normalmente ela perde o viço depois de um tempo, que dificilmente ela consegue sair de suas fronteiras para alcançar o mundo, blablablá… Mas tudo isso já foi dito muito melhor, por tanta gente diferente, que preferi apenas empurrar esse parêntese para vocês.)

Não adianta. Quando um escritor é bom, a maior parte de sua obra, mesmo que seja uma matéria de jornal, resistirá ao tempo e aos deslocamentos temporais. Porque o bom escritor, ou melhor dizendo, o bom observador da natureza humana, mesmo que inventada, consegue pinçar do que vê ou imagina ver aspectos perenes. Em uma matéria sobre um crime cometido por um marido traído, por exemplo, vê-se a diferença entre o repórter e o jornalista. O primeiro dirá que Mário matou Maria às seis da tarde de ontem, pois descobriu que ela o traía. O segundo já usará Mário e Maria para comentar sobre as dores de corno da humanidade, além de relatar a notícia, é claro.

Por isso, é uma alegria poder ter em mãos as Melhores crônicas de Ignácio de Loyola Brandão, selecionadas por Cecília Almeida Salles. O escritor e jornalista tem aqui reunidas as crônicas escritas de 1993 a 2004 em O Estado de S. Paulo, e mostra que o bom tema bem narrado não tem data de validade, nem espaço geográfico confinado.

E para confirmar essa tese, Cecília faz a seleção de crônicas sem se basear na ordem cronológica em que elas foram publicadas, mas agrupadas em temas. Presente da memória, Araraquara como foi, Nas ruas de São Paulo, Um modo de olhar, Acasos do cotidiano, Inteiramente pessoal, De um caderno de anotações, Alguns personagens, Ficção ou quase e Cortes são os títulos dados por Cecília para as divisões aplicadas por ela às crônicas de Brandão.

Da leitura das Melhores crônicas, pode-se perceber que Brandão tem um olhar apurado sobre o que vê e viu. São detalhes que a maioria das pessoas considera prosaicos, mas que para o escritor tomam vida e forma de uma maneira diferente. Brandão consegue assim transformar a sua Araraquara natal em cidade universal, a sua adolescência e início da juventude em experiência comum, e a vinda à cidade grande, São Paulo, em paralelo com as lutas de todos por uma vida melhor.

Cecília, no prefácio do livro, diz que Brandão tem dois eixos narrativos principais, cidade e memória. São três as cidades de que Brandão fala na maior parte dos casos: além das citadas Araraquara e São Paulo, entra também Berlim, onde o escritor morou por um período. As crônicas falam das memórias dessas cidades e das pessoas que cruzaram a vida do escritor. Mas, longe de ser um saudosista, Brandão utiliza a memória para falar de como as coisas eram boas e como elas podem ser boas de novo, sem que para isso seja necessário o regresso ao passado, impossível regresso, como bem sabe o escritor. O passado a que se refere Brandão é a base para a crítica do presente. Falar da falta de segurança na grande cidade remete ao tempo em que havia segurança. Falar das calçadas caóticas é lembrar do tempo em que as ruas eram civilizadas, espaço de convívio social.

Há casos em que a memória não tem a função de crítica dos tempos modernos, mas uma necessidade do escritor em contar o que lembra. Talvez por isso tenha achado as crônicas sobre as personagens do cinema brasileiro as menos interessantes do livro, por tratar de um universo não tão conhecido e de características muito particulares. Figuras humanas interessantes sim, mas não tão atraentes para quem não conheceu o cinema brasileiro dos anos 50 e 60, mesmo que aborde a era de ouro da Vera Cruz e das pessoas que fizeram a sua história. Esse pedaço é parte da vida de Brandão, e ele quer nos contar isso. Se não há empatia, nada a fazer.

Mas as crônicas restantes são diferentes. Quando ele fala do homem comum, ou seja, de nós mesmos, estamos próximos ao tema da crônica, e fica difícil não gostar do que está escrito. Como quando Brandão comenta sobre o sorriso de sua mulher, e como ele é o farol em sua vida. Ou de quando ele narra os encontros inusitados com personagens mais inusitadas ainda, e da aparente loucura que acomete essas pessoas.

O ponto alto do livro é a seção Ficção ou quase, no qual o cronista em tese deixa de lado o compromisso com o real, e parte para o imaginário, em alguns casos beirando o surreal. Mas apenas em tese há esse distanciamento entre o real e o imaginário. As situações criadas por Brandão aparentemente são loucas, mas se notarmos bem o que está escrito, não há nada de incoerente. A neurose urbana produz seres desequilibrados, que perdem muitas vezes a noção de lógica. Daí que as situações fictícias têm um quê de realidade forte.

Por exemplo, o que há de errado com o homem que quer saber onde fica qualquer lugar, ou aquele que quer saber onde é o lá, pois acha impossível existir uma rua que vem de lá ou vai para lá. Apenas duas situações de duas crônicas diferentes, uma invenção que parece palpável, real e existente.

Para encerrar, vale notar a auto-ironia de Brandão em seus textos, quando ele comenta a própria idade utilizando para isso as expressões da língua portuguesa em desuso. A lembrança de pixixês (sic), palpos de aranha, “valha-me Deus!”, socapas e outras tantas, longe de parecer uma autolouvação aos dotes lingüísticos, serve para reforçar a importância da memória e para enfatizar o contraponto entre o que foi e o que é.

Melhores crônicas
Ignácio de Loyola Brandão
Global
416 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho