Existem diversas formas de contar uma história. Este é um adágio que, grosso modo, persegue os jornalistas e todas as pessoas que se metem a escrever com o objetivo de contar histórias reais, trazer os fatos à tona, revelar segredos escondidos ou, ainda, descrever os acontecimentos de um determinado período em ordem mais ou menos cronológica. Em que pese o árduo ofício que se impõe ao historiador e ao jornalista, é notório que algumas narrativas se tornam mais legíveis e, acima de tudo, agradáveis não tanto pela temática escolhida pelo narrador em questão, mas, principalmente, pela forma como contam essas histórias. Em linhas gerais, o período anterior sintetiza a natureza e a importância de Rumo à estação Finlândia, escrito pelo jornalista e escritor Edmund Wilson.
A obra foi o primeiro livro lançado pela Companhia das Letras em 1986, quando o mercado editorial era incipiente e quando os livros de História tinham de ser sisudos e repletos de um academicismo rebuscado. O livro de Wilson, relançado agora em edição de bolso, rompeu com esses dois modelos então vigentes. Para a surpresa de muitos, a obra é até hoje um dos grandes sucessos de venda e, de certa maneira, iniciou uma nova tendência na forma de os intelectuais se dirigirem ao grande público com uma prosa, a um só tempo, sofisticada e bastante acessível. Crítico literário e profundo conhecedor de temas como política e história, Edmund Wilson pode ser considerado um dos mestres do ensaísmo, essa difícil modalidade da prosa que, feita com a devida presteza, é um deleite para os leitores. É com esse tom ensaístico que o autor conduz os leitores em uma das passagens mais complexas da política e da história mundial, catalisadora de acalorados debates até hoje (o título do livro, para quem desconhece a história da Revolução Russa, está explicado no final da obra).
Para contar a história da Revolução Russa, ocorrida em 1917, Wilson toma o leitor pelos sentidos e pela razão e o leva até o século 19. É lá que o autor inicia a narrativa a partir de uma espécie de perfil intelectual de Jules Michelet, um jovem e inquieto professor preocupado com as questões históricas, assim como com o momento em que vive. Desse modo, e justamente por ser tão óbvio, o jornalista realiza algo que parece um ultraje às histórias malcontadas das guerras e dos conflitos armados de nosso tempo. Edmund Wilson contextualiza e constrói um cenário a fim de ambientar o leitor em um período distinto do presente e com suas particularidades. É interessante observar que o jornalista, a despeito da contextualização, não busca exemplos simples ou rasteiros para apresentar sua narrativa. Longe de ser descaso, trata-se, muito mais, de uma opção de estilo e, sobretudo, de uma questão de princípios. Sua homenagem ao “respeitável público” se dava no âmbito da escrita, sempre elegante, como se fosse um atleta em plena forma, jogando com a cabeça erguida (Wilson jamais recorreria a uma metáfora como essa, mas, enfim, este resenhista não é Wilson…). Assim, antes de ser burocrático, o autor opta por um gênero mais derramado e informal, sem se despreocupar com a pesquisa e com a estrutura temática bem encadeada.
A propósito dessa estrutura, cumpre assinalar a maneira como o jornalista recompõe os fatos em ordem cronológica, mas, ao mesmo tempo, subverte a lógica ao contar as respectivas histórias de uma forma pouco ortodoxa. Em outras palavras, as fontes e a pesquisa bibliográfica são respeitadas, porém não existe uma espécie de proibição, muito comum hoje em dia: o politicamente correto. Não que Wilson não seja polido ou, como se costuma dizer, “isento”, mas isso se expressava a partir de sua escrita cristalina demais para assuntos tão demasiadamente complexos. Talvez isso fique tão claro justamente porque o autor escolheu abordar a história como se fosse mais um caso jornalístico. Ou seja, sempre à sua maneira, um estilista refinado da palavra, Wilson investe na leitura dos livros e na sua interpretação como se fossem essas as fontes documentais de seu trabalho. Já no que se refere ao testemunho e aos depoimentos, nada melhor do que reproduzi-los, e isso ressalta, no livro, a capacidade de o autor costurar as mais diversas idéias e correntes ideológicas em um discurso bastante articulado.
Amplo painel
Rumo à estação Finlândia, portanto, busca nos bastidores das revoluções, a começar pela Revolução Francesa, uma explicação da conjuntura da sociedade, com o objetivo de trazer um amplo painel do estado de coisas daquela época. Assim, quando os personagens têm seu perfil traçado, descobre-se, por tabela, a importância de suas respectivas idéias para todo o contexto da época (e da história). Nesse aspecto, é curioso observar a forma como Wilson expõe as análises dos personagens. Um belo exemplo se dá no capítulo 5, quando ele escreve acerca das classes sociais. Operários, empregados, comerciantes, funcionários públicos e, claro, os burgueses ociosos. A disputa “clássica” ali está posta, as outras teorizações ficam de fora, até porque o jornalista conta uma história e não se prende às divagações sem sentido. Adiante, quando fala de Karl Marx, ele é, no mínimo, perspicaz ao descrever seu gênio. Diz, entre outras coisas, que o autor de O capital é o “poeta das mercadorias” e que a força de sua grande obra se deve não só pela capacidade literária, mas também à combinação de várias técnicas de pensamento distintas. É nesse aspecto que ele ressalta o fato de Engels e Marx terem criado uma obra pertence ao socialismo científico, um passo adiante do chamado socialismo utópico, que também é analisado no livro.
Em outras palavras, é bastante correto afirmar que Edmund Wilson não foge da teoria para contar a história, contudo, ao contrário do que se poderia imaginar, ele não usa a teoria como escudo para uma eventual narrativa árida e sem sabor. Em vez disso, segue uma máxima: o saber tem sabor. E é com sabor que apresenta nomes e autores tão variados quanto interessantes. Pela ordem, Vico, Michelet, Renan, Taine, Anatole France. Em seguida, Saint Simon, Engels, Marx, Lassalle. E, por fim, Lenin e Trotsky. Fala-se muito das personagens, mas os livros abundam nesse estudo sobre a história. E os leitores absorvem a informação como se fosse um romance. Nota-se, a propósito, que o próprio autor compara o estilo de Michelet ao que, anos mais tarde, Proust desenvolveria em seus romances. Com efeito, é Edmund Wilson que dá continuidade à sua obra com uma fluência que procura alçar a narrativa histórica à categoria de melhor prosa romanesca. Em certa medida, não é absurdo afirmar seu êxito.
Certamente, um livro como Rumo à estação Finlândia não se encerra em si mesmo. Melhor dizendo, não se trata de uma leitura definitiva sobre as teorias revolucionárias. Antes disso, pode-se afirmar que a obra pretende, e nesse aspecto cumpre muito bem seu papel, ser um livro de história para não-iniciados. Nem por isso, contudo, o livro faz concessões didáticas, a fim de tornar o conteúdo mais explicativo — não há fotos, desenhos, infográficos, quadros (aliás, a edição de bolso mereceria ser um pouco mais caprichada). Ainda assim, o texto de Edmund Wilson supera essas vicissitudes e atinge um quilate literário que poucas obras do gênero conseguiriam — muito tempo antes que outro grande historiador, Eric J. Hobsbawm, dissecar o século 20, com o também monumental Era dos extremos. Por tudo isso, ao final do livro, a única dúvida que permanece é a seguinte: como uma obra desse porte pôde ficar tanto tempo esquecida, a despeito do seu sucesso de vendas. Escrevo “esquecida” porque poucos, na academia e fora dela, citam Edmund Wilson e seu Rumo à estação Finlândia com o devido mérito. Talvez seja o fato de seu trabalho como crítico literário também ter sido de grande valor, talvez seja o fato de a academia não reconhecer seu trabalho intelectual, posto que era, “apenas”, jornalista. De todo o modo, o registro deve ficar: há várias formas de se contar uma história, porém nem todos têm talento e discernimento para contar os detalhes que fazem a história. Edmund Wilson é uma dessas exceções.