Sem nunca viver

O romance Sul, do mineiro Guilhermino César, traz um protagonista atormentado que se embrenha num caminho de ilusão
Guilhermino César foi um escritor, crítico literário, administrador público, jornalista, professor e historiador brasileiro.
28/01/2019

Guilhermino César fez parte do núcleo responsável pela criação da Revista Verde, em Cataguases, Minas Gerais, no ano de 1927, ao lado de Rosário Fusco, Henrique de Resende, Francisco Inácio Peixoto e Ascânio Lopes. O manifesto que acompanha a revista, sem ditar linha estética clara, pretendia colocar o grupo na contramão das influências europeias seguidas pelos modernistas do eixo Rio-São Paulo, recusando os “pais espirituais”, mas enaltecendo o trabalho de alguns conterrâneos: Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus, Martins Almeida e Emílio Moura. Seguidores de um “objetivismo” mal explicado, a mera “situação topográfica” dos jovens deveria garantir-lhes, segundo a ilusão juvenil, algum tipo de hermético protagonismo. Destacando-se do grupo, Guilhermino César continuará o trabalho de divulgação do ideário modernista no tabloide Leite Criôlo, depois transformado em suplemento do jornal Estado de Minas.

Com uma obra dedicada principalmente à poesia e aos estudos de crítica ou história literária, estes centrados na cultura gaúcha, Guilhermino César deixou também o romance Sul, de 1939, no qual o protagonista, Luciano, surge nas primeiras páginas, no centro da roda de ouvintes sonhadores que se divertem num boteco. Fala com desenvoltura, entregando-se a “planos mirabolantes”, a uma “divagação inocente” que conduz os colegas pelo caminho da ilusão. Seu tema é a quimera que dá título ao romance, o Sul, mais precisamente São Paulo, cujas promessas de enriquecimento ofuscam o juízo desses retirantes vindos do Nordeste: depois de seguirem o rio São Francisco, estacionaram ali, no vilarejo do Morro Velho, para se tornarem empregados da mina de ouro comandada pelos ingleses.

O verboso Luciano esconde, entretanto, uma angústia “vaga, imponderável, que lhe machuca o peito sem fazer cicatriz profunda”. Está sempre pronto a se refestelar na “própria instabilidade de sentimentos e emoções”, mal se equilibrando entre o desejo de permanecer na vila, principalmente se a jovem Margarida mostrar-se receptiva ao seu amor, e o “chamamento misterioso do Sul”.

O desabe de uma das galerias da mina tira a vida do capataz Aquiles, inimigo de Luciano, e condena este a lenta recuperação da saúde, o que aprofunda sua melancolia, carregada de lembranças da infância, quando fora acometido de estranha doença:

Lembrava-se. As lavadeiras haviam saído cedo para a beira do rio e estavam custando a regressar. Luciano, de férias no sítio, foi buscar Gabriela, a irmã caçula que seguira as lavadeiras logo de manhãzinha. (…)

Chegou. Nem vivalma. De súbito, o vento começou a vaiá-lo. Era uma voz fina, estridente. As lufadas ergueram-lhe o peito da camisa. As calças colaram-se-lhe nas pernas, o pó se levantou alto, e Luciano teve medo. Um gavião passou voando, como que perdido, sem direção. As árvores gemiam, as canavieiras cantavam. Todo ele era um feixe de nervos à flor da pele, um molambo de gente arrastado pela carreira do vento.

Mãe Tutinha recolhia a peneira de farinha d’água que secava ao sol, quando o filho entrou em casa com os cabelos revoltos, a face congestionada.

— Olha, gente, essa cara de saci.

— Mãe… Mãe… — não pôde terminar a frase, explicar-se; a voz sumida de angústia aquietou-se na língua emperrada.

Numa comunidade em que o destino pessoal está nas mãos de curandeiros, Luciano afunda na doença inexplicável que o fragiliza para sempre — e cuja descrição é bom exemplo das qualidades estilísticas do autor:

Enrodilhado nuns trapos imundos, Luciano chorava baixinho. O berro da cabra que haviam esquecido amarrada no pastinho dos fundos começou a encher o silêncio da casa onde o menino sofria. Ele era todo um ofego, uma inquietação única, uma respiração ansiada. Ninguém se aproximava do catre, exceto siá Tutinha. E o pequeno arquejava, mostrando no rosto contrafeito os olhos esbugalhados. Uma dor generalizada tomara-lhe conta do corpo, envolvendo-o, atenazando-o. E ele sentiu nitidamente que uma corda se enrolava no seu tronco, para o estrangular.

Fez esforço para ver. E enxergou tudo preto diante dele, e nem viu pai Inácio dobrado ao tamborete, agora com um rosário nas mãos, se bem que ouvisse a canção monótona dos colmos de bambu que estalavam no funda da horta.

À noite seguinte caiu numa prostração funda, agravada pela respiração cada vez mais difícil. Só na semana seguinte a febre começou a baixar, até que seus olhos se abriram (o pessoal dormia, a casa mergulhada num grande silêncio), para ver de verdade a manhã que se insinuava por detrás do morro, e veio vindo, se despejou no telhado, iluminando o chão de terra socada através da telha vã.

A dicotomia dessa personalidade, física e moralmente debilitada, está sempre pronta a assomar, debatendo-se entre “deliquescência” e crises de virilidade, desânimo e entusiasmo, a busca do Sul e a profunda aversão ao falecido Aquiles, que Luciano perpetua, com morbidez, ao seduzir a viúva do capataz, Sebastiana.

Labirinto de frustrações
Capítulo a capítulo, a urdidura do passado do protagonista e a trama do seu cotidiano interpenetram-se para complexificar a narrativa, eliminando qualquer possível tediosa linearidade. Dividido entre o passado irremediável e o futuro pelo qual não luta, Luciano jamais vislumbra a única opção que pode levá-lo à verdade: o presente. Semelhante a todos nós, repete o erro apontado por Pascal:

Nunca ficamos no tempo presente. Lembramos o passado; antecipamos o futuro como lento demais para chegar, como para apressar o seu curso, ou nos lembramos do passado para fazê-lo parar como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos por tempos que não são nossos e não pensamos no único que nos pertence, e tão levianos que pensamos que nada são e escapamos, sem refletir, do único que subsiste. É que, em geral, o presente nos fere. Escondemo-lo de nossas vistas porque nos aflige e, se ele nos é agradável, lamentamos que nos escape. Buscamos mantê-lo mediante o futuro e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder por um tempo ao qual não temos a menor certeza de chegarmos.

Concluir sua vingança na carne de Sebastiana traz novos dissabores a Luciano, derrotado pela memória do inimigo, que ressurge constantemente nas recordações da viúva. Sem nunca se realizar, o ódio espraia-se e atinge o filho de Aquiles, criança indefesa, até a cena paroxística, salto na escuridão moral desse protagonista constrangido entre a “água preta dos resíduos da mina”, o “céu também negro” e a caminhada “às cegas, arrastado por uma força que não conseguia identificar em suas origens”.

Nada é mais palpável do que a impossibilidade, vivida por todos os personagens, de “dissecar seus sentimentos”, mal-estar substancial em Luciano, “bipartido, multiplicado, de sorte que o adolescente e o menino se confundiam com o homem feito, e eram desejos absurdos, sonhos vagos, confusos”. Essa psicologia complexa está presente inclusive nas figuras secundárias, como Teodureto, sonhando com a vida artística, infeliz por obedecer às obrigações diárias, mas cujo único gesto de audácia resume-se à covardia de uma carta anônima.

Nesse labirinto de frustrações, tendo ao fundo os pilões da mina, incansáveis, que trituram a pedra — “Quando os pilões param (…) eles acordam sobressaltados. As crianças chegam mesmo a chorar de medo (…). E quando há silêncio no vale, os operários rolam nos leitos promíscuos, perdem a noção do tempo, acordam cansados como se houvessem passado a noite em vigília” —, Guilhermino César brune a linguagem, como ao descrever o nevoeiro matinal — “animais e pedras se anulavam dentro da cerração baixa” —, atento aos pormenores — “vozes reclamam café, crianças choram, mulheres estendem roupa de cama nos varais. Um par de chinelos de liga, molhados de sereno, ficou ali do lado de fora, perto da porta, ao lado de uns trapos que foram, na véspera, uma boneca de pano, com o desenho dos olhos e da boca feito a carvão”. Certos elementos ganham vida inesperada — os condutores de ar das galerias subterrâneas são comparados a “traqueias cansadas”; a pobreza do operário é denunciada nos pés que correm “magoando as lanchas nas pedras agressivas das ladeiras”. Trata-se do pacto estilístico que o autor firma conosco — sem grandiloquência, sem metáforas rebarbativas, desprezando os contorcionismos verbais, a linguagem obscura ou sucessões de frases telegráficas, mas pronto a iluminar a realidade.

Enquanto o ouro é arrancado das profundezas da terra, também as decisões são tomadas sob a escuridão. Luciano refuta o crime hediondo e assume sua escolha “na solidão da noite” — mas o faz ecoando o veredicto de Pascal: “O passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é o nosso fim. Assim não vivemos nunca, mas esperamos viver e, sempre, nos dispondo a ser felizes, é inevitável que nunca sejamos”. Escolha movida mais pelo acaso do que pelo arbítrio. Escolha tão frágil quanto sua determinação.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Raimundo Moraes e O mirante do Baixo Amazonas.

Guilhermino César da Silva
nasceu no distrito de Eugenópolis (MG), em 1908, e faleceu em Porto Alegre (RS), em 1993. Formado em Direito, atua na imprensa e no serviço público. Dirige a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Minhas Gerais — depois muda-se para o Rio Grande do Sul, onde assume a chefia do Gabinete do interventor federal no Estado. Ocupa ali as funções de ministro do Tribunal de Contas, secretário de Estado da Fazenda e professor de Literatura Brasileira, História do Brasil e Estética da Universidade Federal. Entre 1962 e 1965, leciona Literatura Brasileira na Universidade de Coimbra, que lhe outorga o título de doutor honoris causa. Deixa vários livros de poesia, entre eles, Sistema do imperfeito e outros poemas. Como ensaísta, publicou, dentre outros: O criador do romance no Rio Grande do Sul e História da literatura do Rio Grande do Sul. Também editou a obra integral para teatro de Qorpo Santo.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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