Em um dos contos de O sangue dos dias transparentes, Paulo Franchetti narra a fábula do garoto que sobe na jabuticabeira e avista um urubu na cerca. Ele brinca de dar ordens, em pensamento, ao pássaro. Manda que o urubu desça da cerca, e ele o faz, mas pousa na janela de sua casa. O garoto decide então que o animal deve ir embora. Fixa o pensamento até que o animal abre as asas e inicia o vôo. Mas, após um rasante, o urubu sobe e passa rente à jabuticabeira, causando um súbito pavor ao nosso pequeno herói. O garoto desce da árvore às pressas, machuca a perna, e entra em casa gritando pela mãe, para então perceber a covardia. Quase que se desculpando, omite a história completa. Diz apenas que está com medo do urubu. “Mas nada disso importava, na verdade. O pensamento, sim, era uma coisa muito perigosa.”
Crítico literário e professor de literatura, Franchetti só havia publicado obras técnicas e teóricas. Agora, subiu na jabuticabeira e resolveu desafiar os urubus. Mas, diferentemente do garoto, ele soube muito bem controlar seus pensamentos. Estréia na ficção com um livro de contos simples, curtos e diretos, que falam mais sobre o nada do cotidiano do que qualquer outra coisa. Paulo Franchetti fez esta opção e foi muito feliz.
Muitos autores se preocupam em demasia em fazer uma literatura que impressione. Buscam algo que choque, que atinja o leitor como um soco no estômago. A estratégia é uma faca de dois gumes. Há sempre o risco de resvalar para o lugar-comum, como nas duas frases anteriores, ou de errar completamente a estocada. O pior é quando estes autores ignoram a crítica, ou se entusiasmam com a crítica dos “compadres”, e pensam que estão acertando.
Há escritores que até têm um certo talento, mas insistem em querer mostrar seus colhões, como se alguém estivesse interessado em suas bolas murchas. Querem porque querem ser o autor que vomita palavrões, que fala de sexo como se fosse um descendente de Calígula. A teimosia em postergar a autocrítica lhes impede de ver que a melhor coisa que fazem é servir de tema para as charges do Benett, na página 2 deste Rascunho. Já as suas frases chocantes não impressionam mais que as pichações em banheiros de escolas públicas de primeiro grau.
Esta categoria de autores (muitos, repito, com algum talento) poderia produzir livros menos descartáveis se a humildade lhes permitisse olhar para as coisas mais simples da vida, nem que fosse para o nada do dia-a-dia. Sim, porque para a maioria dos mortais a passagem por esta vida é recheada mais de nada do que qualquer outra coisa. Mas mesmo o nada merece ser constatado. Só que fazer esta constatação de maneira pertinente e transformá-la em texto agradável exige paciência e habilidade. Falar sobre o nada, mas com algo a acrescentar, exige um trabalho muito mais laborioso e criativo que o de formar frases virulentas.
A aparente falta de maiores pretensões de Franchetti em O sangue… não impede que se encontre no livro qualidades de um grande autor. São contos de duas, três, no máximo quatro páginas, que se iniciam sem estardalhaço e nunca ensejam um grande final, mas que dão o recado de forma sutil e bem escrita.
Mesmo se arriscando a redigir com constância sobre um tema já amplamente explorado, o relacionamento homem/mulher, Franchetti consegue surpreender. Mostra que pequenos detalhes do relacionamento, quase imperceptíveis, são, para muitos, fatores decisivos e irremediáveis. O grande trunfo do autor é falar do amor sem usar metáforas, aliás, praticamente sem explorar a palavra amor, talvez a grande metáfora desta vida.
Em O sangue…, tudo ocorre sem metáforas. A traição da esposa, em Cabelos, é ocasional, inesperada até para ela, que saíra de casa apenas pensando em pintar o cabelo. Acaba como se nada tivesse acontecido. Não há uma troca de telefones, não há a perspectiva de um novo encontro. A única conclusão da mulher, prestes a voltar aos braços do marido, é que aquele não era um dia comum. (“Voltando para casa, ela logo se enfiou no banho. Quando se enxugava, percebeu que não tinha gostado da cor, afinal. Por isso pintou de novo o cabelo, experimentando a tinta mais escura que alguém lhe dissera que ressaltaria a cor dos olhos.”)
No conto Casal, o maior drama do relacionamento que se acaba é a derradeira ocupação do mesmo espaço. Ele e ela (nomes não importam para Franchetti, é sempre ele e ela) tentam agir com normalidade, enquanto pensam como serão as últimas horas de uma convivência condenada ao fim. Mas é difícil manter a naturalidade enquanto o outro está ali tão próximo. É impossível não acompanhar os movimentos, ouvir os ruídos, tentar adivinhar a ação seguinte. Mas o que nem ele nem ela poderia adivinhar é que acabariam juntos na cama, ou melhor, ali mesmo no sofá da sala, adiando as dúvidas para o despertar do outro dia. (“Quando acordou, já era de manhã. Direto para o banheiro, tomou uma ducha, tentou vomitar, mas não conseguiu. Depois, caminhou para o quarto, pensando no que diria a ela, como recomeçariam tudo e até quando duraria novamente. Quando entrou, viu o guarda-roupa aberto e vazio. Nem um bilhete, nem um recado na secretária. Enquanto se vestia, pensou que não teria conseguido imaginar um jeito melhor.”)
A grande virtude de Franchetti foi dar vez aos ninguéns. Seus personagens não têm nomes, podem ser qualquer um, o que lhes acontece pode acontecer a qualquer um. São pequenas histórias de vidas simples, sem grandes emoções, o mesmo tipo de vida que a maioria das pessoas carrega. Mesmo sem grandes emoções, mesmo parecendo um nada, estas pequenas histórias são os maiores acontecimentos nas vidas destas pessoas. Franchetti faz estes registros com sensibilidade, mas sem exagerar, sem tentar transformá-las em grandes histórias.
Ao contrário do que possa parecer, o caminho escolhido por Franchetti não é o mais fácil. Escrever de forma simples sobre o simples exige não apenas humildade, mas uma boa dose de talento. E isto ele mostrou que tem de sobra em O sangue…
A descrição de uma cena de sexo oral, por exemplo, o autor faz de maneira tão singela que dispensa o uso de palavras pornográficas, tão comumente usadas para chocar o leitor. Nada de pau, caralho, porra, gozar na boca. A intenção não é impressionar o leitor com o erotismo do ato em si, mas mostrar a simplicidade e a cumplicidade do casal numa cena íntima e cotidiana, em que a presença de platéia, ou do leitor, é ignorada. Um beijo no rosto poderia ter sido descrito com o mesmo texto do conto Ponte:
(…)“Olhou para ela. O nariz reto, a pele bem branca, as pequenas veias azuis ao longo dos braços e do pescoço. A sobrancelha fina. Ela continuava, com os olhos fechados, com a luz do sol avermelhando mais ainda os fios finos dos cabelos. Não fazia rápido. Não tinha pressa e parecia agora inteiramente alheia, concentrada…
(…)Olhou novamente para ela e lhe disse, enquanto passava a mão pelos seus cabelos, que já não brilhavam tanto, com o sol se pondo: “Não abra os olhos, ok? Não abra os olhos!”
O sangue… é um livro tão simples que isto pode ser um problema: fazê-lo passar despercebido. No meio de uma literatura que valoriza o grande, o comercial, o produzido, o chocante, Franchetti vai no caminho oposto. Até a edição parece caseira, radicalmente organizada. Contos quase todos do mesmo tamanho, dispostos em ordem alfabética, com títulos de uma só palavra (exceção única para Campo de aviação), excluindo-se até os artigos.
Ao mesmo tempo, esta simplicidade é o grande valor deste livro. No fundo, talvez seja isto mesmo que Franchetti queira dizer. Que a vida sem metáforas também é vida. Que a literatura simples também é literatura, talvez mais que qualquer outra. Danem-se os urubus.