Não é de hoje que o gênero biografia conquistou corações e mentes dos leitores mundo afora. Dito de outra maneira, mas seguindo o mesmo raciocínio: a idéia de um texto que versa sobre a vida de personagens ilustres da história não é recente. Ocorre, todavia, que, de uns tempos para cá, mais e mais trajetórias têm sido alvo preferencial desse tipo de abordagem, no Brasil e fora do Brasil. Os pesquisadores ou mesmo os estudiosos da academia poderiam especular sobre a razão desse fenômeno, cuja explicação fatalmente passaria pela sociedade do espetáculo, tal qual prenunciada por Guy Debord, ou, ainda, pela urgência do grande monde das personalidades, cuja origem também é o espaço que a cultura das mídias ocupa nas vidas das pessoas. Em síntese, se antes apenas fazia sentido Plutarco e suas Vidas paralelas, agora até mesmo o criador de uma plataforma como o Facebook ou uma personalidade como Lady Gaga merecem biografias. E os leitores, mesmo que sabendo quase tudo sobre essas pessoas, aguardam por esse tipo de texto. Grosso modo, portanto, o gênero continua o mesmo, mas agora abriga mais e mais biografados.
Diante do que está escrito acima, por que motivo caberia comentar A medida da vida, de Herbert Marder, a nova biografia de Virginia Woolf? A escritora inglesa, membro do celebrado círculo de Bloomsbury, cuja vida já foi devassada a ponto de não apenas ter merecido biografias, mas, também, novas criações ficcionais a partir de sua vida, como a célebre (e, por isso, curiosamente pouco lida nos dias de hoje) Quem tem medo de Virginia Woolf?, do dramaturgo Edward Albee. Ou, mais recentemente, de As horas, de Michael Cunningham, que mais tarde seria adaptado para o cinema, marcando no imaginário do público médio o avatar interpretado por Nicole Kidman como sendo a Virginia Woolf (deve-se pensar o cinema como a narrativa hegemônica do século 20 em diante). Ora, a pergunta permanece, leitor, por que mais essa biografia, se tantas já foram lançadas, resenhadas e comentadas?
Se efetivamente o leitor fizer essa pergunta, não é uma dúvida banal, até mesmo porque Virginia Woolf deixou para deleite de seus leitores uma seleta de seus diários, que, por sua vez, funcionam como primeira leitura no tocante à vida da autora de Ao farol. O texto de Marder, no entanto, possui o mérito de ultrapassar o óbvio das narrativas jornalísticas e, para além dos meandros da vida pessoal, prefere investir na interpretação de Virginia Woolf de acordo com os textos da autora. Aqui, não se trata de mera reescrita dos textos já produzidos, entremeados com trechos confessionais da escritora. Em A medida da vida, Marder propõe ao leitor uma jornada assaz sofisticada na tentativa de compreender as idiossincrasias de uma das mentes mais criativas do século 20. Sai de cena a conversa sobre a vida ao mesmo tempo que ganha destaque a rica interpretação literária, uma vez que o autor se dedica a reler os diários com o objetivo de extrair ali o sumo da produção literária, o que efetivamente interessa sobre a escritora.
Aqui e ali, alguns biógrafos mais castiços podem torcer o nariz, afirmando que o texto de Marder não passaria de um esboço biográfico, haja vista que no livro há pouca novidade no tocante à revelação dos motivos de seu suicídio, ou ainda a propósito de sua propalada defesa da emancipação feminina. E a resposta não poderia ser mais objetiva, uma vez que a análise literária do biógrafo esboça, a partir dos textos, uma nova relação de causa-e-efeito. Dito de outra forma, é como se o objetivo primeiro de Marder tenha sido não somente a releitura, mas, essencialmente, a tradução desses textos para os interessados na obra de Woolf, algo que mesmo os críticos mais tarimbados encontraram dificuldade em realizar. Assim, existem no livro inúmeras passagens que são claras leituras que promovem a transposição “do texto para a vida”, como o trecho a seguir:
Assim o ato de dar à luz, a ascensão e queda das civilizações e o fluxo de palavras numa frase são tecidos juntos por um ritmo em comum, ligando-se ademais a outros motivos: a revolta de Virginia contra a frase “masculina” e as convenções vitorianas; seu hábito de ir compondo frases durante longas caminhadas diárias; e seu uso do andar, na ficção, como um motivo. Essas imagens e suas associações, secundadas pelo quebrar das ondas e o rio a correr, formam uma tessitura simbólica que nos traz mais perto a própria Virgínia, não por explicar, mas por lhe estabelecer a presença, convidando-nos a ver as coisas como ela via.
Em outra passagem, o autor repara na incidência das aproximações feitas por Virginia em relação à água, salientando que tais imagens se originam de um projeto estético-literário previamente concebido, algo que resultaria no texto de As ondas, sem dúvida um de seus livros mais célebres. Do mesmo modo, mesmo quando se propõe a tratar das questões vinculadas ao estado de ânimo de Virginia Woolf, o autor investe na associação dos textos com a produção literária da escritora. E é curioso perceber que até uma escritora do talento de uma Virginia Woolf se sente insegura diante da recepção da crítica, como ressalta Marder: “Uma crítica negativa era perigosa, ameaçando sua crença no trabalho e seu sistema de sobrevivência. Depois de cada livro, esboçava mentalmente uma planilha, com opiniões favoráveis e desfavoráveis, e começava tudo de novo — a maceração, o ajuntamento de idéias”.
Porta de entrada
Na mesma medida que o texto de Herbert Marder é inovador, Virginia Woolf, a biografia assinada por Alexandra Lemasson, cumpre o papel de apresentar a personalidade literária aos leitores que ainda não conhecem os detalhes ou ainda que não travaram contato de forma mais aprofundada com a obra da escritora inglesa. Embora seja um texto menos ambicioso no tocante à interpretação ensaística, a abordagem proposta por Lemasson é correta ao informar as principais características da autora e da sua obra, ainda que as interpretações sejam demasiadamente taxativas. Em parte, isso se deve ao fato de Lemasson tomar como principal fonte os diários de Woolf. Tal escolha não necessariamente é um problema. Entretanto, a certa altura da leitura das biografias, o leitor não tem dúvida de que, para além dos romances, uma das peças mais formidáveis da pena de Virginia Woolf foi o conjunto de seus diários — que, em português, poderiam ser reeditados. Nesse sentido, para além do relato confessional em primeira pessoa, existe ali material que deve ser lido com a lupa de documento histórico e como peça de ficção do eu, uma vez que ali também existe um narrador sofisticadamente concebido por Virginia Woolf. E é nesse ponto que reside a principal diferença entre os livros de Herbert Marder e Alexandra Lemasson. Enquanto o primeiro se dedica à tarefa de cotejar os textos, entendendo-os como narrativas elaboradas por uma escritora de talento, a obra de Alexandra Lemasson toma os diários como peça-chave para a interpretação da vida de Virginia Woolf, sem efetivamente problematizar esses relatos.
Num momento em que as informações sobre as trajetórias das personagens históricas estão disponíveis para o leitor com alguns cliques de distância na internet, seja nas enciclopédias virtuais, seja nas páginas pessoais que lotam o tráfego na internet, os livros de Herbert Marder e Alexandra Lemasson, em que pesem suas diferentes abordagens, acabam por se complementar, posto que trazem fundamento para a pesquisa sobre a vida e obra de Virginia Woolf — muito embora apenas o livro de Marder responda de forma mais completa à necessidade de mais uma biografia: ou seja, a análise do autor possibilita ao leitor um mergulho mais profundo, e sem medo (!), na densa obra de Virginia Woolf.
Os autores
Herbert Marder
Professor emérito de inglês na Universidade de Illinois, Herbert Marder nasceu em Viena e cresceu em Nova York. Seu interesse por Virginia Woolf remete não apenas a estudos dedicados à escritora, mas, também, no crescente interesse pelo grupo de Bloomsbury. Além de A medida da vida, publicou, em 1968, o livro Feminismo e arte: um estudo de Virginia Woolf.
Alexandra Lemasson
Jornalista da revista francesa Le Magazine Littéraire, Alexandra Lemasson começou sua carreira na revista L’Express e no programa de TV Place au livre. No momento, além da carreira de atriz, fala sobre livros no programa Vol de nuit do canal TF1.