Eu acho — só acho — que os relatos em primeira pessoa e supostamente biográficos, como os livros de Karl Ove Knausgård, estão jogando terra sobre a literatura pós-moderna. Direi o porquê.
Notei minha falta de tato depois de pousar o livro à mesa do almoço. A morte do pai, um indisfarçável calhamaço de 500 páginas com a capa maculada por gotas de, arrisco, Coca-cola e chuva.
Como pude ser tão imbecil?
Ajeitei-me na cadeira e, sem encarar meus pais, comecei a preencher o prato com o que estivesse dentro das tigelas. Meu inconsciente, esse amigo ambíguo, me traía outra vez. Boa tarde, pensei, com duas batidas do garfo sobre o prato a fim de desviar a atenção do objeto de papel. Alguma novidade?
Nem duas semanas antes, meu pai, que agora me encarava por trás de seus óculos de míope, havia recebido o diagnóstico de que estava com grave descompasso na válvula mitral. A consulta fora uma peça trágica. Frente a uma mesa de plástico, as mãos cruzadas no colo, eu e ele assistimos a três médicos discorrerem sobre dezenas, talvez centenas de complexidades cardíacas. Analisamos, pacientes — meu pai mais do que eu, decerto —, diagramas, caricaturas e gráficos feitos colaborativamente por homens de branco que, com rugas na testa, repetiam que o caso não era banal. Era sério, afirmavam. A intervenção, espécie de gíria para abrir caixas torácicas de parentes próximos, devia ser feita o quanto antes.
Saí do hospital com a sensação de alojar um frio caroço entre a espinha e a garganta. Pela primeira vez via meu pai, aquele ser alto e esguio, de aperto de mão avassalador, uma referência de força e virilidade, como alguém frágil. O medo tomou a mim e ao resto da família pelos pés nos dias seguintes. A morte virou nosso assunto invariável. Cada ato prosaico de meu pai, de sonecas no sofá a idas ao mercado, era encarado como um episódio perigoso, derradeiro, histórico. E lá estava eu, como se nada tivesse ocorrido, visitando-os (a Morte e meus pais), mais desleixado que o habitual, de chinelos arrebentados e com ressaca da noite anterior, acompanhado de um livro que poderia ser interpretado como leitura preparatória para a perda ou, pior, uma ameaça do tipo “vá, mas vá logo, meu pai”.
Tratei de explicar: este livro é mais um daqueles estranhos acasos literários, pai. Mãe, continuei, enquanto intercalava o olhar entre um e outro, tempos atrás visitei a livraria e acabei, como sempre, levando mais do que deveria — inclusive o que não queria, afirmei, apontando para o exemplar que repousava ao lado de meu prato. Eu ouvia falar muito de Karl Ove Knausgård, “um fenômeno”, “um rockstar da literatura”, como a contracapa da edição brasileira anunciava, e guardava uma curiosidade desconfiada. Soava-me como má propaganda. Resisti, ouvi elogios de amigos, resenhas de publicações que respeito e, no que julgo ser a definitiva parte da minha aceitação literária, li um capítulo no chão acidentado da única biblioteca do meu bairro. Fui arrebatado. As primeiras páginas do livro, uma descrição de um passeio do autor em família, era uma mistura implacável de ternura e bruta sinceridade, duas qualidades que, soube então, procurava há muito na literatura.
Sem frescura
O livro que me fisgara carregava o título de Um outro amor. Era (é, pois não morreu) o segundo volume de Minha luta, a coleção de relatos supostamente autobiográficos do escritor norueguês — são seis volumes no total; no Brasil, o terceiro sai no meio do ano. Eu estava impressionado por poder iniciar a leitura em um ponto qualquer da gigantesca trama e absorver com naturalidade aquela atmosfera autocrítica, centrada na dúvida e no excesso de detalhes banais. Ao passo que o conteúdo prismático me conquistava, a forma me enfeitiçava. O texto se encaixava no que críticos universitários costumam chamar de “sem frescuras”; um estilo direto, descritivo e sem pompa, que, coincidência ou não, remete também ao fluxo de outro fenômeno literário de anos atrás, o chileno Roberto Bolaño, talvez o rei da falta de melindres formais. O encadeamento entre tempo e memória também beirava à perfeição: soava-me tão simples e efetivo que parecia fácilimo de executar. (Não é, que fique claro.)
Knausgård conta, por meio de narrações detalhadas e digressões, como se apaixona pela segunda esposa; como, oprimido pela falta de esperança, criou — a duras penas, verdade — suas obras literárias e sua família. Para ligar as passagens, brincando de Deus consigo mesmo, o autor estica e espreme o tempo com as mãos: volta à infância, avança décadas, fala de antepassados, de arte barroca, de mitologias locais, evoca santos e regressa ao presente em frente a uma folha em branco ou empurrando um carrinho de bebê nas ruas de Malmö ou Estocolmo, na Suécia. O movimento de sua autoanálise, espiralado e modular, costuma ser finalizado com aforismos e um claro tom ensaístico. Há quase uma obsessão em extrair sentido dos fatos mínimos. As conclusões, claro, nem sempre são revigorantes, mas captam o atenção do leitor pelo humor depreciativo e por suas descrições poéticas.
Era, assumo, tudo o que eu queria em uma obra. Uma espécie de autoajuda. Terminei em poucos dias e, como se fosse acometido por um novo vício fisiológico, fui atrás do primeiro volume. Ergui então o livro em seu estado de quase decomposição para mostrar aos meus familiares. Trata, falei, sobre a relação do autor com seu falecido genitor, um homem distante que abandonou a mulher e os dois filhos adolescentes antes de se afundar no álcool até suas peles e órgãos incharem e apodrecerem. É meio impressionante, concluí, sem jeito.
“Interessante”, minha mãe falou depois de minha explicação, com entonação e olhar que diziam, segundo nossa natural ferramenta de tradução, algo como: “Interessante você ler isso nesse momento e jogar essa merda de título e enredo na nossa cara”.
Naquele almoço marcado pelo silêncio, eu refletia pela primeira vez sobre o que aqueles dois livros autobiográficos me causavam. Marcava-me a percepção de que a maioria das associações entre vida e arte não estão ao nosso alcance — aos místicos, torna-se razão, gozo; aos céticos: humor, coincidência, absurdo. Considerava-me em um limbo. Não era por mal que eu colocava o livro sobre a mesa; mas também era difícil acreditar que tinha sido totalmente sem querer. De certa e contida forma, eu estava em processo de me encontrar com a morte. Não só a de meu pai. Eu me deparava com minha própria finitude.
Não-ficção e morte
Como Knausgård revela com maestria, ao nos aproximarmos da escuridão, nossos pais são percebidos como extensões de nós mesmos. Não importa o quanto você os ame ou odeie. O quanto você se considere diferente, ovelha negra, incompreendido, rejeitado. Quando olhamos para a morte de um pai, lidamos com a nossa. Parte de nós desencarna. E essa sensação de suicídio (não à toa ele menciona em entrevistas que o fato de narrar literariamente sua vida é um tiro na própria cabeça) é tão poderosa no livro de Karl Ove que é impossível não se comover com a falência física e moral de seu pai. Não se trata da aflição de ler romances que têm a decadência e a rejeição à morte como temática, a exemplo do condensado A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. No caso do relato de Karl Ove, há pouco espaço para autoengano, para faz-de-conta, para hipérboles e para ironias, elementos típicos da ficção. Estamos vendo como ele se comporta diante da perda de seu pai, sem máscaras ou disfarces. Testemunhamos o desejo do autor e filho de, ao retratar os passos da morte do pai, limpar a alma — ele passa muitos capítulos narrando como, empunhando panos e esfregões, remove sujeira que o descuidado pai alcoolátra deixou de herança na casa — e se livrar da dor. Se há algo correspondente no mundo das artes, seria, a meu ver, as fotos da norte-americana Annie Leibovitz no livro A photographer’s life, de 2006, em que ela retrata, ao lado de imagens bem produzidas para editoriais da Vanity Fair, os últimos dias de sua companheira Susan Sontag e o seu pai; vemos retratos de corpos marcados pelo câncer e do leito de morte como parte indissociável da história da fotógrafa. Pelas lentes de Annie e pelos textos de Knausgård, público, privado, obra, vida e morte se confundem.
Em seu ensaio Ficções da vida e da morte, o crítico inglês James Wood trata a literatura como uma versão laica do funeral religioso, um momento em que podemos ver princípio e fim de uma existência. Wood, um dos mais respeitos da área, autor de grandes artigos para The New Yoker, cita em mais de dois textos o trecho de O narrador, de Walter Benjamin, em que o alemão afirma que “o modo clássico de contar uma história está estruturado em torno da morte”. Nesse texto do século 19, o filósofo diz que a morte se tornou banal, uma estatística: vemos números de pessoas mortas todos os dias nos rádios e não nos comovemos. “Perdemos a morte”, diria outro filósofo, o francês Maurice Blanchot. Caberia à literatura, então, suprir esse terreno arrasado com boas histórias e reflexões sobre a vida.
Muitos autores o fizeram, é verdade, alguns com mais sucesso do que outros. Mas o que vemos de uns anos para cá é o esgotamento da forma. A ficção pós-moderna cansou de explorar — e sobretudo brincar, jogar — com esse estigma da vulgaridade da vida e da morte. Embora saiam boas obras do gênero ainda hoje, a existência e sua negação já foram exploradas à exaustão pelos norte-americanos Don DeLillo, Thomas Pynchon e David Foster Wallace. A única saída para falar de modo original sobre nossa mortalidade seria um apelo para uma velha novidade: a não-ficção, um olhar atento, sensível e sincero para o que nos escapa a todo instante entre esse amontoado de dados, rostos e informações: o real, o não-dito, o que tentamos esconder por meio de tratamentos de imagens e redes sociais narcísicas.
Conversa franca
O poder do livro de Knausgård está em sua aparente falta de cuidado, na sua velocidade e no seu olhar descontruído. O texto adquire ares de quem se examina no espelho pela manhã — cena bastante recorrente nos livros, diga-se. Ao oferecer um relato autobiográfico, supostamente cru e sincero, o autor quebra, constrangido, todas as paredes para prender nossa atenção e causar identificação e reflexão instantâneas. Tudo o que o narrador ambiciona é ser um autor de fino trato da arte, um ficcionista de respeito. Tomado por crises de consciência e criatividade, afunda-se nesse projeto autobiográfico hiperrealista. Traz o segundo plano, o de sua vida pessoal, para o lugar em que estaria seu romance. Abdica do refinamento: volta à estaca zero da escrita, a semi-informal, sem pirotecnias ou vaidade. É como se puxasse a cadeira para o leitor e dissesse: olha, senta aqui, vamos debater algumas coisas; vejamos, por favor, aqui, se isso é normal. Mais ou menos como eu, sem muito sucesso, descrevo no começo de uma resenha o almoço constrangedor com meus pais. Tenta-se uma conversa franca. Espero, aliás, que você esteja me acompanhando.
Os dilemas do narrador são comuns a todos; suas observações, ainda que germinadas em um cenário nórdico, pertencem ao mesmo mundo que o de qualquer humano angustiado dos anos 2000 — sem hipocrisias, somos todos animais ansiosos; os que dizem não, convenhamos, estão medicados. Karl Ove destrincha com um estetoscópio os buracos de nossa existência: pontes aéreas viram terrenos férteis para longas observações sobre a relação com o irmão; descer a escada do prédio para jogar o lixo e acender o cigarro originam divagações sobre vizinhos, amizades duradouras, autocomiseração e prostituição; pratos, cadarços amarrados, familiares, estranhos na rua, tudo pode ser descrito às minúcias pelo autor e, como faísca, reacender memórias antigas ou servir como combustível para uma narração de fato presente. Chamam essa técnica de autoficção: uma mistura de realidade e ficção. O norueguês parece rejeitar o rótulo, que também não me soa adequado. O que o autor admite fazer é preencher as lacunas da memória com elementos que dão sentido artístico à obra. É sincero sem perder a noção do todo, do, digamos sem medo, produto esculpido.
Alguns críticos reclamam que o norueguês coloca no texto elementos desnecessários à trama e descreve personagens sem importância alguma. A queixa é justa, mas esconde uma má vontade para compreender o aspecto macro da obra: o produto estético de Karl Ove é o universo que o circunda; é esse microcosmo visto pela lupa que torna seus livros poderosos, profundos, belos. O autor não existe sem o meio — de alguma forma ele é o meio: vai se transformando, em termos de linguagem e pensamento, conforme sua posição no globo vai mudando. Os objetos supérfluos e as pessoas que passam por nós todos os dias, sugere o autor, talvez não sejam tão descartáveis quanto pensamos. Assim como a morte, afinal. Como disse a meus pais no fim daquele almoço, a tal da autoficção pode ser um novo fôlego para a literatura, um respiro. E meu pai, sem querer, elevou a discussão com uma dúvida filosófica: será que é bom para dar um sopro no coração? Acho que sim, pai.