Sem improvisos, por favor

Nos contos de "Antes que seque", de Marta Barcellos, é das mulheres a voz de comando
Marta Barcellos, autora de “Antes que seque”
17/04/2016

Neste livro quase inteiramente contado por mulheres inábeis em lidar com o improviso, que fazem os cálculos de suas vidas ensaiadas — “improvisar dá errado”, como diz uma delas –, é curiosa a inserção de um dos poucos homens na coletânea. No conto Bodas de porcelana, por exemplo. O restaurante está vazio. O marido fica no meio do caminho. Como assim? — pergunta a esposa. Afinal, há 20 anos, ela prefere as mesinhas de canto. “Não é possível que ele não saiba disso”, pensa. Mas o problema é a parede, sua única paisagem. O homem aceitou ficar de costas para o salão — sempre calado. Contabilizou paredes de restaurantes e torções de pescoço para um dia — hoje, quando notou a calvície no espelho — jogar tudo na cara dela. O silêncio de anos.

Ela, por sua vez, acredita que, se ele não cede ao desejo da mulher, não a ama. Ao fim da discussão, ambos retornam ao ritual mecânico e tedioso do jantar — a ordem estabelecida. Ele mais feliz porque conseguiu sentar-se no meio do salão; ela, contrariada duplamente. O marido ainda por cima não aceitou dividir a sobremesa.

A passagem dos homens é, contudo, rápida. É das mulheres a voz de comando. Falam para si mesmas, afobadas, ansiosas. Querem que a vida dê certo, somando estratégias para fugir dos desvios de rota, ou, quando chegam à velhice, fazem a retrospectiva das escolhas erradas. O que é, afinal, “dar certo”, nem elas sabem. Nada de agradável acontece espontaneamente. Os calendários, as listas, as planilhas e os ponteiros estão a postos para evitar que a programação do destino fuja ao controle. As velas precisam combinar com os enfeites, as simpatias só se abrem com o efeito do álcool, e o noivo nunca pode se esquecer de enxugar, com o lenço, a lágrima da noiva no altar.

Há uma solução de continuidade entre os contos que, embora irregulares — alguns muito bem realizados, outros nem tanto — forma quase uma única história, com personagens que discorrem sobre rotinas, regras de felicidade e confissões em diversas fases da vida. Por vezes, o excesso de pensamento, que se faz ecoar na oralidade exagerada de personagens-narradoras, causa certo cansaço à leitura. O ritmo é recuperado em outros contos que recusam o mesmo excesso.

Algumas dessas mulheres desejam desesperadamente ter um filho e, portanto, vivem amarradas à maquinaria dos ciclos. A ideia do título, Antes que seque, fala primeiro e obviamente da pressa em se providenciar logo a filharada, pois a biologia não espera. Antes que seque o tempo que resta de juventude do corpo. “Cuidadosamente, abriu a caixa de madeira pousada sobre a prateleira (…) e acomodou os frascos de óleo junto aos 27 testes de gravidez dobrados um sobre o outro, em ordem cronológica” — organiza a mulher do conto À moda antiga, a esposa fiel e esperançosa prestes a contar a novidade ao casal de amigos.

Entre padrões, cobranças, sacrifícios em nome da tradição e papéis que precisam ser cumpridos, as mulheres não trocam surpresas por apreensões, sobressaltos por ensaios. A espontaneidade é uma invenção dos bons fotógrafos. Porque é assim que tem que ser: filhos são complementos ao pacote de mulher realizada. Sem eles, não se tem uma “família de verdade”.

O casamento é uma instituição, não precisa estar conectado ao amor. Muito menos à paixão. As cerimônias meticulosamente organizadas, sejam jantares ou altares, são a parte mais visível destas existências calculadas: “Mas sem improvisos, por favor. Padrinhos engraçados são ótimos depois das duas da madrugada, para animar a festa, mas não na hora dos cumprimentos”, como está em Os momentos mais importantes da vida.

O excesso de pensamento, que se faz ecoar na oralidade exagerada de personagens-narradoras, causa certo cansaço à leitura. O ritmo é recuperado em outros contos que recusam o mesmo excesso.

Malditas
Outras mulheres são malditas, porque rejeitam seus filhos. Em Questão de preferência, um dos mais bem elaborados, a senhora que se apaixonou na juventude, largou por um tempo o filho que apareceu desta paixão, e depois voltou para o casamento “sólido”, conta suas mazelas e renúncias. Da receita da ambrosia perfeita, ela precisava manter a ciência, escondendo gostos secretos.

Muita gente acha que o segredo da ambrosia é usar leite azedo. Puro engano. O leite tem que ser usado em estado perfeito. Depois, é saber cuidar do ponto certo do açúcar e deixar cozinhar o doce o tempo inteiro sem mexer. Eu gostava que ficasse queimadinha, já o Paulo preferia amarela, por isso eu fazia do jeito dele. Porque o gosto da cozinheira é o que menos importa, com o tempo já nem sabemos a nossa preferência, tanta é a vontade de agradar.

Má também é a mulher do conto À revelia, que não consegue dormir com os berros do bebê e, louca para se livrar dos filhos, não vê a hora de sumir. Nem que seja para o inferno. Mas é preciso ter cuidado: Deus castiga, ela pondera.

Os gestos de rebeldia, ainda que raros, são um aceno crítico, metáfora da possibilidade de tomar um desvio para algum outro caminho além dos padrões. Como em Às avessas. Os planos são pequenos e não precisam de grandes estratégias. O desejo é claro para a vendedora que se cansou do emprego e vai mudar a rota: “Só não quero desvirar roupa. Nem preciso mais, depois de ter tirado o pensamento do avesso e descoberto que vou morrer, mas que ainda dá pra viver, mesmo que não sejam cem anos”. Vontades simples, como a “rebeldia” de não se aborrecer por uma noite inteira, socando a cara em uma parede verde e sem quadros. No entanto, até para os pequenos desejos há que se desviar da rota. O problema, daí, são as colisões. Melhor não?

A dúvida paira em alguns destinos, como na vida da mulher em crise, a Norma (o nome não por acaso), no ótimo Depois do natal. O casal esperaria o dia seguinte à ceia para contar o pensamento novo da separação. Mas, pensa a mulher, ela bem poderia acordar e perceber que, depois de um combate interno à esperança, tudo não passou de um mal-entendido.

E se aquela fosse uma noite feliz? “Se ela ficasse realmente bonita de vermelho e ele reparasse?” Um pensamento-relâmpago que, de fato, só existe em nome da tradição. Pois, de verdade, no deserto empoeirado que a cidade virara, fazendo sumir os aniversários filmados e fotografados, fazendo voltar a asma da infância e a asfixia, o segredo bom é a rua.

Atraía-a a ideia de ser notada por um rosto estranho, espreitando-a na esquina (mas quem?). Daquela noite, a última noite, queria levar um embrulho, uma caixa de laço de fitas, a recordação de ser amada numa cidade edificada, e ela livre do cheiro talhado que a impregnava neste exato instante.

Se ela conseguirá fazer o desvio da rota e correr o risco das colisões, só a madrugada dirá. Ou não.

Antes que seque
Marta Barcellos
Record
192 págs.
Marta Barcellos
É jornalista e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Trabalhou nos jornais O Globo, Gazeta Mercantil e Valor Econômico. É colunista da revista Capital Aberto e do site Digestivo Cultural. Dois de seus contos foram publicados na antologia Sábado na estação (org. Luiz Ruffato). Este é seu primeiro livro de ficção.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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