Sem graça e igual a muitos

“Não feche seus olhos esta noite”, de Maira Parula, é apenas um exercício formal ao desprezar o discurso linear e subverter o modelo tradicional
Maira Parula: escrita de uma secura incomum e necessária.
01/09/2006

Buscar obsessivamente o novo implica em tolerar ou se acostumar com certos descalabros. Um deles é aceitar e louvar tudo o que aparente novidade, sem ao menos examinar a possibilidade de estar diante de um mero disfarce.

Crescemos ouvindo falar de vanguarda, mas de vanguarda mesmo ainda não vimos nada. A famosa semana de 1922 é para onde todos olhamos quando algum conhecedor do assunto se refere à vanguarda artística. Fora isso é pura especulação. Jogar um balde de tinta sobre o corpo não é arte e muito menos vanguarda. No entanto, nossa capacidade para suportar tolices não tem medida. E num país com Lula et caterva no comando, não seria a educação matéria prioritária. Resultado: comemos gato por lebre e daqui a pouco já é carnaval outra vez.

No palco da literatura, a banda toca exatamente no mesmo ritmo. Ainda estou convencido da existência de uma vanguarda nas letras. De modo que, excetuando Oswald e Mário de Andrade, é aconselhável que mudemos de assunto. Mudemos de assunto, mas não tanto, pois acaba de ser lançado Não feche seus olhos esta noite, de Maira Parula. É um livro perigoso, mix de prováveis referências e coisas que, apesar de bravo esforço e gigantesca boa vontade, clamam por esquecimento, referências pops à exaustão, das mais nefastas até as desculpáveis. Não chega a ser daqueles livros que exigem a presença de um psicólogo para nos fazer entender “o que o escritor quis dizer”. O grande atrativo ou o grande truque da obra é a forma. Mas quando um livro apresenta tal aspecto como elemento catalisador dos debates acende-se a luz amarela. A vermelha brilha no fundo do abismo. Importante chamar atenção para a infeliz tentativa de despistar uma das mais fortes influências: “Era uma frase idiota que poderia ter sido dita por qualquer idiota, mas tinha dono. Mário de Andrade”. Desnecessário, grosseiro, para dizer o mínimo.

Não feche seus olhos esta noite despreza o discurso linear, subverte o modelo tradicional, opta pela estética do quebra-cabeça, a matéria-prima de seus textos é a cena cotidiana em suas metáforas nada corriqueiras.

Infelizmente, insisto, o que mais chama atenção na obra de Maira é a forma, No entanto, aquilo que talvez tenha sido pensado como grande virtude se revela o grande defeito. A autora apresenta vários textos, dos mais diversos tamanhos, que podem ser lidos sem preocupação cronológica, embora eles possuam um fio condutor. Pode parecer estranho, mas há ordem nesse aparente caos, ou quem sabe, várias ordens. E aproveitando a oportunidade é recomendável lembrar o que disse Walter Benjamin: “Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do abismo”. Uma dessas possibilidades é encará-lo como um diário a nos revelar as angústias, as indecisões e a sombra da mãe em permanente perseguição à narradora. Outra é imaginá-lo um filme, degustá-lo cena a cena, prestando atenção nos gritos das diversas mulheres sempre no limite das suas angústias. No frigir dos ovos, Maira não brinca em serviço, sua escrita é de uma secura incomum e necessária capaz de fazer corar o mais alienado consumidor dos nefastos livros/arapucas de suposta ajuda (me recuso a dizer auto-ajuda). Mas a autora priorizou a forma e desviou o foco das atenções. Infelizmente!

Porém não podemos esquecer que a forma tão somente não basta para configurar um poema ou atestar uma inovação. O fato é que a poesia de Maira está escondida em sua prosa.

Eu, presente, aluna do colégio das almas, trago sempre comigo meu caderno onde desenho, faço e anoto coisas de poetas que são poetas e de poetas que não acreditam nisso. Sentada no último banco do ônibus escolar, sem que ninguém me veja, passo a borracha no céu e a noite fica banguela. Sem que ninguém ouça, atiro as estrelas pela janela junto com o papel de bombom.

Inexplicável — a forma outra vez — a insistência em produzir e repetir textos utilizando apenas letras minúsculas. Não há justificativa para isso, a não ser a tentativa em parecer diferente ou fazer graça. Engraçado não é, e diferente muito menos. Aqui no Rio de Janeiro isso já é praga, não escolhe vítimas, ataca desde aqueles que produzem seus próprios livros à custa de suas vaidades às grandes editoras como a Rocco.

Resultado: a leitura de Não feche seus olhos esta noite teve o poder de me fazer viajar no tempo e voltar ao distante, não tão distante para alguns como podemos ver, 1924 e reler Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. Aqui sim ocorreram quebra de regras e uma inovação formal na montagem do romance, uma montagem cinematográfica.

Não, eu não disse que estamos comemorando um atraso de 82 anos. Nada disso. Na verdade, o que vemos hoje já era corriqueiro para Glauber Rocha. Procurem assistir à A idade da terra, o filme é de 1980. Não, eu não disse que estamos comemorando um atraso de 26 anos. Longe de mim.

Também não estou comparando Maira com Oswald. Se me atenho a apontar alguns despropósitos de Não feche…, é porque os mesmos conseguiram ofuscar as inúmeras qualidades daquilo que mais interessa num livro, o seu conteúdo, o que ele tem a dizer. Em última instância, o tal do “a que veio”.

Tem mais. Maira, assim como Oswald, prioriza a narração na primeira pessoa. Ele faz uso de seu anarquismo deliberado para satirizar a sociedade burguesa, não se restringe ao universo pessoal; ela, por sua vez, opta pela repetição, o pesadelo recorrente culminando com um impasse ou com uma indagação. Faz uso com precisão do tom jocoso para amenizar as angústias, os mistérios, as desilusões e a morte.

A fala diante da mãe é de uma crueldade cortante e ao mesmo tempo patética. Um dos pontos altos de um livro rico que resolveu se apresentar em andrajos.

Será que vou ficar assim também? Suas mãos são tão macias, você sempre cuidou muito bem delas, não é mesmo? Na verdade elas sempre foram muito bonitas, embora eu sempre as tivesse visto de longe, você nunca me tocava muito, não é, mamãe? Então eu as admirava de longe, quando você penteava os cabelos, arrumava os talheres sobre a mesa, adoçava o café, segurava o telefone, pintava os lábios, puxava as meias finas até as coxas e as alisava para esticar os fios, que mãos lindas, lindas se comparadas com as minhas, não acha?

Na forma, paciente leitor, a referência é Oswald. Mas insisto, a forma é secundária. No caso de Maira, a grande influência é Fernando Pessoa, na tentativa de ser original em seu sofrimento, em sua revolta frente aos castigos do mundo.

Não feche seus olhos esta noite é um livro perigoso como devem ser os livros que nos fazem voltar a eles, como Memórias sentimentais de João Miramar, como Dom Quixote, como O lobo atrás do espelho, como O tempo e o vento, como Os ratos, como Ulisses, como Pergunte ao pó… Sem esquecer que Maira armou a própria arapuca e isso quase põe tudo a perder. Quase.

Resumo da ópera: Maira fez a opção pela forma, equivocadamente diante da complexidade do conteúdo, a dor de existir, o questionamento da existência de Deus, a mulher que morre de vergonha, a garota que se corta na esperança de esvaziar, de emagrecer.Tudo é dor, genuína dor, a lembrar Cioran: “Não é Deus, mas a Dor, quem desfruta das vantagens da ubiqüidade”. No entanto, se o que vale é a forma, então o significado ainda está por ser descoberto, o sintoma chama a atenção. A autora, desse modo, não desmente Jung: “o sintoma é o sofrimento que ainda não encontrou seu significado”.

Mas você, paciente leitor, também tem a opção de desprezar as ranhetices do crítico e optar pelo que a autora diz à página 29.

Há certas coisas que não adianta querer explicar quando as noites são longas demais e você fica dando voltas pela casa se perguntando em voz baixa como tudo começou.

Agora, sim, para encerrar: vale a pena ler Não feche seus olhos esta noite e depois reler Oswald e procurar um filme de Glauber, qualquer um.

E não sai de minha cabeça a frase de Oswald de Andrade na introdução de Serafim Ponte Grande: “Voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para frente. A História também”.

Não feche os olhos esta noite
Maira Parula
Rocco
204 págs.
Maira Parula
Nasceu em Porto Alegre e cresceu no Rio de Janeiro, onde se formou em Letras pela UFRJ. É tradutora, editora de textos e webmaster. Atualmente, vive em Minas Gerais.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho