Sem firulas

Resenha do livro "O homem magro", de Dashiell Hammet
Dashiell Hammet, autor de “O homem magro”
01/05/2002

Quem enrola muito tem pouco a dizer. Com raras exceções, o autor que recheia seu texto com adjetivos, advérbios, citações, inferências externas, não tem uma idéia própria. Transforma seu texto em um desfile de erudição, muitas vezes inútil. Inútil porque um texto sem conteúdo será sempre um texto sem conteúdo, não importa a moldura. E eles abundam (e muito) por aí. Infelizmente.

Não é o caso de Dashiell Hammet. Este americano, um dos ícones do romance policial, não tinha papas na língua, muito menos propensão a rechear seu texto com palavras desnecessárias. Hammet não desperdiça o seu tempo, nem o de seu leitor. Vai direto ao ponto, sem rodeios. E isso não quer dizer que seja ruim. Pelo contrário, seu jeito curto e grosso de escrever é bom, muito bom. Não por outra razão seus romances estão aí, sendo lidos e relidos, 70 anos depois de serem escritos. E continuam inspirando novos autores.

Veja por exemplo o último relançamento de Hammet no Brasil, O homem magro, escrito originalmente em 1933. A história se passa na Nova York de 1930, logo após o crash da bolsa de 1929, e nos anos da Lei Seca. Nick e Nora Charles, casal, ele ex-detetive, estão na cidade para passar as festas de fim de ano. São daqueles que conseguiram manter um bom capital apesar da crise ao redor. E conseguem sempre manter o copo cheio apesar da Lei Seca.

Nick volta à cidade logo depois do desaparecimento de um de seus antigos clientes, Clyde Miller Wynant, inventor meio maluco, detentor de uma patente de fusão de metais e de um bom patrimônio financeiro. Nick chega também depois do assassinato misterioso de Julia Wolf, secretária de Wynant. Suas ligações com a família do inventor, em especial com a ex-mulher, Mimi, e com os filhos Gilbert e Dorothy, o acabam envolvendo a contra-gosto na investigação do crime.

Característica principal da prosa de Hammet, não há espaço para elucubrações mentais. Sua pena serve para descrever o que Nick e Nora fazem, e como isto pode levá-los à solução do crime. Suspeitos há em profusão, inclusive Nick. Maus sujeitos também. Ninguém é bonzinho. Nem mesmo Nick, que nos padrões de hoje seria considerado um alcoólatra. Afinal, quem toma um uísque duplo antes do café da manhã sem levar este selo na cara?

Apesar de toda a cachaça, Nick e Nora são elegantes, quase invejáveis. Eles são loucos um pelo outro, e esta relação parece impedir que a sujeira ao redor respingue neles. Mas Nick já esteve em meio à sujeira, e traz todos os trejeitos do submundo da época. Nick não dá nunca respostas conclusivas. Não é nunca direto quando responde, mas apenas quando pergunta. E sabe se defender, com palavras ou com os punhos, quando necessário. O romance é muito mais recheado de diálogos que de pensamentos ou descrições de cenários. As palavras de Hammet não parecem ter saído de um dicionário, ou ainda de seminários pseudo-intelectuais sobre o crime ou as relações humanas. As personagens de Hammet são vivas, reais. Por isso, é um bom livro.

O homem magro é também um belo retrato da Nova York dos anos 30. Uma cidade onde as coisas aconteciam, de uma maneira ou de outra. Uma cidade onde os policiais também fazem parte de um grande esquema, e apesar da Lei Seca bebem, e bebem muito. Onde os clubes reúnem tanto a fina flor da sociedade quanto os assim rotulados bandidos, todos atrás de uma bebida mais ou menos honesta — na qualidade, não na fabricação. Talvez, como reparo ao livro, falte jazz na história. Mas esta é um pequena falta que o leitor pode consertar, sem dúvida. A conclusão do romance pouco importa, pois como diz Nora no final, apesar do fim do mistério, “tudo é tão insatisfatório”.

E se você também está insatisfeito, não deixe por menos. Aproveite que a Companhia das Letras adotou Hammet, e pegue seu livro anterior, escrito originalmente em 1932, talvez o romance policial mais famoso de todos, e com certeza um dos melhores livros que existem. (Alguns críticos torcerão o nariz, mas danem-se, literatura é prazer, e este livro é um gozo só). O falcão maltês (2001, Companhia das Letras, 296 págs.) é um clássico. E se podemos definir os clássicos pela inovação que eles trazem, não podemos deixar O falcão maltês de lado.

Em que este livro foi inovador? Em primeiro lugar, sua linguagem. Aqui Hammet traz para o papel os diálogos verdadeiros, das ruas. Claro, pode-se argumentar que há uma adaptação. Mas, pelo menos, não corremos o risco de ver frase como “o amor que sinto por ti é como o azul do céu a preencher os espaços vazios de minh’alma”. Ninguém diz isso na vida real! Hammet corta estas firulas, estas frases insensatas, e mete todas as suas personagens no caldeirão das ruas e da vida, com sangue correndo pelas veias (algumas vezes pelo rosto e pelas mãos, também).

Em segundo lugar, não temos certeza alguma da moral do suposto mocinho do livro. Sam Spade, detetive particular, é o protagonista deste romance. Achamos que ele buscará a verdade para que o bem vença o mal. Mas, logo que começamos o romance, não temos tanta certeza da nobreza de caráter de Spade. Ele joga sujo. Ele mente. Ele usa as pessoas para alcançar seu objetivo. E mesmo o bem e o mal parecem relativos depois de um tempo. Spade está querendo justiça ou vingança? Se pensarmos na nossa polícia de hoje em dia, conseguimos mesmo saber quem é o mocinho e quem é o bandido?

(Note bem que qualquer comentário a respeito deste livro parecerá imbecil. Desde 1941, quando John Houston filmou A relíquia macabra, a história é mais do que conhecida. Fica difícil imaginar algo novo para falar sobre ele, ou tentar dar dicas sobre os cenários e ambientes da época. Não conseguimos imaginar outro que não Humphrey Bogart interpretando detetive durão, cínico e conquistador. E também não conseguimos imaginar os personagens que não em preto-e-branco)

Em poucas palavras, Spade e seu sócio, Miles Archer, são contratados por uma certa Miss Wonderly para encontrar sua irmã mais nova, que se supõe ter sido raptada por um sujeito em San Francisco. Archer e o suspeito seqüestrador são mortos. Em busca de vingança, Spade se mete em uma encrenca maior, em torno de uma relíquia medieval valiosíssima. Até alcançar seu objetivo, Spade andará nos limites da lei, disposto a fazer valer a sua verdade.

Novamente, torça o nariz quem quiser, mas é literatura de altíssimo nível. Diversão garantida. Hammet sabe como entreter o leitor, como segurá-lo na cadeira para que ele queira chegar ao final do livro com a solução do problema. Hammet sabe em que ponto colocar as guinadas no roteiro, para confundir o leitor mais um pouco. E ele sabe ser verossímil. Claro, muito do charme de Hammet e outros autores que inspiraram os filmes noir vem do fato que imaginamos as personagens em um tempo distante, com a ótica imposta pelos filmes feitos a partir dos livros. Os bandidos de lá são sempre mais charmosos que os de cá. Quem sabe não seja este o motivo para ainda estarmos começando a gostar de romances policiais feitos no Brasil?

Entre os méritos de Hammet está o de saber ter aproveitado a sua experiência pessoal para servir de matéria-prima para seus livros. Nascido em 1894, ele abandonou a escola aos catorze anos e, depois de diversos trabalhos temporários, conseguiu emprego em uma agência de detetives, a Pinkerton, de Baltimore. Não chegou a ter uma atuação de destaque nesta profissão, mas seus oito anos o colocaram em contato com o universo que retratou em seus livros. Durante a Primeira Guerra Mundial, Hammet serviu no Corpo de Ambulâncias e, voltando para os Estados Unidos com os pulmões afetados, dedicou-se a escrever histórias de detetives. Mas não foram muitas as obras. Além de O falcão maltês e O homem magro, podemos citar ainda as novelas A ceia dos acusados e Estranha maldição. Sua última obra, Tulip, não foi concluída, pois ele morreu de câncer em 1961.

O romance policial foi durante muito tempo relegado a um segundo plano. Muita gente via nos pulp fiction, como o gênero é conhecido nos EUA, sinônimo de má literatura. Claro, nem tudo o que foi feito é bom. Mas ignorar a qualidade de Hammet, ou de seu contemporâneo Raymond Chandler, é ser burro ou pretensamente intelectual. Menos mal que o romance policial vem sendo redescoberto e novos autores de alta qualidade vão aparecendo. Você já leu o italiano Andrea Camilleri? Ou ainda o espanhol Manuel Vázquez Montalbán? A Editora Record já percebeu a atração que o gênero possui, e lançou a Coleção Negra, com diversos autores. E diversos brasileiros vêm se arriscando pelo gênero (sem julgamento de valor, pois não os li ainda): Patrícia Melo, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Tony Bellotto, Rubem Mauro Machado, entre outros.

Portanto, deixe de frescura, viadagem e falsa impostação intelectual e vá ler Hammet! Não perca tempo!

P.S.: Um pouco de cultura inútil. Os romances policiais se chamam pulp fiction nos Estados Unidos, pois eram impressos em papel de qualidade inferior, mais barato, e vendidos em diversos lugares, de bancas de esquina a drugstores. Na Itália, por sua vez, eles se chamam gialli (plural de giallo, amarelo em italiano), pois se as páginas internas eram impressas em papel jornal, as capas eram invariavelmente impressas em papel cartolina amarelo, com uma pequena ilustração no centro. (Este sim é um devido exemplo de desfile de erudição inútil, que estraga um romance!)

O homem magro
Dashiell Hammet
Companhia das Letras
264 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho