Sem concessões

Em “Tarde”, o poeta Paulo Henriques Britto opta pela escolha da palavra certa e da imaginação
Paulo Henriques Britto: sua obra não resvala no nonsense comum da poesia atual.
01/10/2007

Em entrevista concedida ao programa Umas palavras, do Canal Futura, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto fez uma constatação bastante pertinente no que se refere ao status quo da leitura no país. Dizia Britto à Bia Correa do Lago, apresentadora da atração, que uma das razões para a literatura não mais ocupar o centro das atenções no tempo livre das pessoas é o fato de ela ter sido praticamente substituída por outras produções — a meu ver, de menor qualidade — nos dias atuais. Para ser mais específico e fiel à fala do entrevistado, ele afirmava que a literatura foi substituída pelo folhetim televisivo, do mesmo modo que a poesia havia sido substituída pela música popular — para alguns, música popular de qualidade, conforme gostam de assinalar.

Alguns anos depois e no momento em que esta resenha é escrita, boa parte do público comenta, respira e transpira as intrigas e tramóias elaboradas pelo novelista Gilberto Braga em uma dos folhetins da Rede Globo. Braga é um nome bastante comentado justamente por dar um tom realista ao traçar o perfil do brasileiro médio em suas produções. A propósito, há quem diga que ele é o Balzac dos trópicos, sobretudo por arrebatar tantos telespectadores em todas as noites. Seguindo essa mesma premissa, não falta quem diga que as letras de Caetano Veloso e Chico Buarque estão eivadas da mais perfeita tradição poética.

De fato, é possível notar que o fenômeno de substituição já foi feito por parte do público (agora, ex-leitores). Entretanto, isso não necessariamente ocorre de maneira tão definitiva assim. Ou, por outra: se é verdade que as pessoas não mais prestam atenção na poesia graças à música popular, é certo afirmar que essa troca não é tão precisa assim. De um lado, porque a leitura de poesia demanda uma outra atenção por parte do leitor, algo intimista, a ponto de fazer com que o leitor trave um contato solitário com os versos, o que é absolutamente contrário à música, que, em linhas gerais, faz com que os versos sejam um tanto mais populares que herméticos, sem mencionar o aspecto harmônico, com ritmo. Por outro lado, os leitores de poesia são atraídos não só pela rima dos versos, mas também pela construção gramatical de seus paralelismos; pela natural arbitrariedade da escolha das palavras; e pela riqueza do verso que suspende os sentidos do público. A poesia pode não existir para as massas, como a TV ou a música popular, mas, ainda assim, é uma peça a ser contemplada separadamente no universo da literatura. É dentro dessa perspectiva que se lê Tarde, de Paulo Henriques Britto.

Tradutor e professor de literatura, Britto mostra que entender do fazer literário para além do aspecto conceitual. Melhor, até: conhecendo os principais elementos da poesia — como a eufonia e a sedução pela palavra —, o autor se destaca pela obra que não resvala no nonsense comum da poesia atual. Desse modo, em vez de apelar a palavrões e a outros subterfúgios, Britto prefere esmerar-se na escolha pela palavra certa, pela imaginação em vez da temática social — ainda que a primeira não exclua necessariamente a segunda. Exemplo disso está na seleta Cinco Sonetetos Grotescos: “Dorme a família. Este ser (ou objeto)/ surge na sala, num surto (ou cio)/ rola no chão, nas paredes, no teto,/ senhor da noite e do espaço vazio”. A propósito, este é um dos destaques do livro. Existe uma relação bastante interessante entre os poemas em si e a organização elaborada pelo autor. Com base nessa organização, lê-se que do início ao fim os poemas obedecem a uma ordem prévia, como se o poeta tivesse pedido que o livro fosse lido de maneira linear.

É evidente que essa hipótese pode ser totalmente estapafúrdia; afinal de contas, não há qualquer indicação no prefácio que anuncie isso. Muito ao contrário. Não há qualquer aviso do gênero. Henriques Britto prefere a poesia desde o início. É em verso, e não em prosa, que ele apresenta seus poemas, como se vê a seguir: “No poema moderno, é sempre nítida/ uma tensão entre a necessidade/ de exprimir-se uma subjetividade/ numa personalíssima voz lírica”. Depois disso, há uma seqüência que não se desfaz nem do ponto de vista temático, tampouco do ponto de vista da qualidade do que está escrito. Assim, nos Balanços, o autor salienta o momento das renúncias e das decisões, para, então, perguntar: “Como saber sem tentar?/ Como tentar se é tão fácil/ conformar-se de saída/ com a idéia de fracasso”. A idéia de fracasso é sustentada com a mesma veemência, com a mesma intensidade, que o Natal é observado. Em poucos versos, o autor questiona a proposta da comemoração. Segundo as palavras dele, “idolatrar o que criamos à nossa imagem e semelhança”.

Esse ceticismo prossegue no livro, mas sem assumir um tom grave ou sério. O poeta se assume como tal na prática de sua escrita, nada além disso. Nesse sentido, muito embora Henriques Britto esteja num ritmo de publicação constante nos últimos tempos, como bem notou Julio Daio Borges no site Digestivo Cultural, não só pela erudição, como também pelo requinte daquilo que escreve, o poeta está acima da média produzida pela poesia brasileira contemporânea, tomando por base aqui os poetas publicados e resenhados nos cadernos de cultura. A despeito da poética (e política) cultural de nossa época, nota-se uma ação entre amigos, onde os poetas da nova geração se assumiram de tal maneira dotados de um saber literário que, solenemente, ignora-se toda e qualquer produção que não faça referência aos nomes consagrados pelos críticos da moda. Um exemplo singular: Bruno Tolentino morreu recentemente e boa parte da mídia preferiu dedicar suas páginas a louvar o suposto talento da nova geração de escritoras; do mesmo modo como era mais fácil encontrar textos incensando um trocadilho alçado à poesia contemporânea. Dentro desse cenário, a publicação de um livro como Tarde, em que a poesia é despretensiosamente levada a sério, torna-se um alento.

Com isso, até mesmo quando o poeta baixa a guarda no tocante à carga dramática, o riso não vem do escárnio, mas da rima inusitada e com sentido, como o trecho a seguir: “My thoughts won’t go into verse/ my verse refuses to rhyme (…) My poetry is on the ropes/ My life isn’t any better”. A leitura de poesia demanda mais atenção; assim, a proposta é que o texto envolva mais o leitor à medida que este se propuser a não trocar substância por adereço; linguagem por batucada; poesia por letra de música. Paulo Henriques Britto, autor de Tarde, parece saber disso. Por isso, sua poesia não faz concessões — a não ser para a boa literatura.

Tarde
Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
92 págs.
Paulo Henriques Britto
Professor universitário, poeta e tradutor. Traduziu, entre outros, Henry James, Thomas Pynchon e Philip Roth. Como poeta, publicou Macau, Trovar claro, Liturgia da matéria e Mínima lírica. Também é autor do livro de contos Paraísos artificiais.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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