Selva devoradora

Em "Pistas falsas", de José Eduardo Gonçalves, muita gente desaparece ou se perde de vista em contos em franco diálogo com o realismo mágico
José Eduardo Gonçalves, autor de “Pistas falsas”
01/01/2024

Na trilha do ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário (1979), no qual Carlo Ginzburg compara o historiador de arte Giovanni Morelli e o psicanalista Sigmund Freud ao detetive Sherlock Holmes, o título Pistas falsas, do mineiro José Eduardo Gonçalves, convida-nos a ocupar o lugar de leitores-detetives, porém fadados ao fracasso: nossas análises e interpretações — conto a conto, peça por peça — não resolvem seu suposto quebra-cabeça, que nos devora feito uma esfinge. Na página final do livro — fonte branca sobre fundo negro, a sugerir mistério ou segredo e a demarcar a voz do próprio autor —, ele afirma que “estamos perdidos. Não há pistas confiáveis, sinais por onde ir sem se machucar, alertas de precipícios ou de inimigos inesperados”.

Deduz-se da declaração — misto de confissão e visão de mundo — de José Eduardo que as “pistas falsas” são “os jogos de engano, as ofertas falsas de brilho” (inclusive as oriundas dos “habitantes de um inferno particular”), as quais nos conduzem aonde menos esperamos, de onde às vezes não saímos ilesos. “Tudo é e não é assim!”, anuncia uma das epígrafes, extraída de novela russa O processo do tenente Ieláguin, de Ivan Búnin.

Pistas falsas (título colhido de um verso da canção Luz e mistério, de Beto Guedes e Caetano Veloso) possui 53 contos e divide-se nas seis seções que se seguem comentadas (antes de devorar o instigante livro, o miolo do exemplar deste crítico descolou). Maria Esther Maciel assina o texto da orelha; Milton Hatoum, o da quarta capa — dois indícios favoráveis.

Vidas em desalinho
Já no primeiro conto do livro, A casa, temos um prodígio. Será que Luísa, a mãe desaparecida “sem explicação — nenhum recado, nenhuma pista, nenhum contato posterior —”, sequestrou os próprios filhos da casa do pai? Não. Eles sumiram num passe de mágica ocultista infantil. Nas entrelinhas, está o tema do abandono, da separação, da solidão e da chamada “síndrome do ninho vazio”.

Mentiras, confissão de uma voz feminina (aqui e em outros contos, o autor assemelha-se a Chico Buarque em Folhetim e tantas outras canções, tamanha sua sensibilidade para o sexo oposto), é um exercício de autoanálise ou escrita terapêutica. Trata do fim do amor e do luto através de um ritual simbólico. “Corto os meus cabelos porque talvez assim eu consiga dizer a ele que não o amo mais”, diz ela.

Hora que oculta e revela, “entre a dormência e a lucidez”, o Crepúsculo é um símbolo do erótico e do transcendente (“os buracos negros que sugam todos os desejos”).

Encerrando a seção, A carta não é exatamente “de amor”; além disso, inverte o chavão: “E quando ela chegar em suas mãos, acredite, eu estarei vivo”.

Só garotos
No conto O pai, o filho, os sapatos do primeiro adquirem valor de herança afetivo para o segundo (“o legado das ninharias”). Na Praia, outro pai, entretido com um “livro ruim”, no instante em que perde de vista seu menino, este quase se afoga no mar. Por fim, quando o garoto Davi desaparece em um shopping (com três capítulos e dois pontos de vista, este conto de seis páginas mais parece um esboço de novela), são policiais que encontram “algumas pistas. Até então, todas falsas”.

Estética e projeto
A própria prosa de José Eduardo oferece pistas sobre sua estética e seu projeto literário em Pistas falsas. Desde já vamos analisá-las, a fim de ensaiarmos uma classificação ou filiação do autor, antes de prosseguirmos com os comentários, de modo mais claro e enfocado — ao modo de um explorador que encontra, a meio caminho, uma lanterna no fundo de uma caverna ou selva escura, que lhe revela sinais até então invisíveis, ilumina seus passos cegos e o guia até seu destino final.

Em Pistas falsas, os contos são breves (três páginas, em média); os parágrafos, longos (efeito de fluxo da consciência). O estilo é culto, médio; o foco ou ponto de vista, a primeira pessoa; o tom, confessional ou memorialístico; a voz, às vezes, feminina; os desfechos, desconcertantes, marcados por reviravoltas.

Os temas são o cotidiano (“os textos podem ser lidos como contos ou crônicas”, segundo Hatoum); as relações familiares ou relacionamentos amorosos; os sumiços e desaparecimentos misteriosos (“situações inesperadas e imprevistas”, de acordo com Maciel).

Entre as influências literárias citadas, direta ou indiretamente, estão Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião e Clarice Lispector; Kafka, Hemingway e Borges.

Intuímos ou pressentimos aqui um caso particular de realismo mágico ou maravilhoso — classificação inesperada, arriscada e instigante (“Não sei se me filio a alguma tradição”, declarou José Eduardo em entrevista ao jornal Estado de Minas, em junho de 2023. “Mas eu não seria nada sem Cortázar e Kafka, autores da minha vida inteira.”)

O tigre e outros bichos
O tigre é uma releitura do conto O búfalo, de Clarice Lispector (Laços de família). Estes animais selvagens, quando enjaulados no zoológico ou “solto[s] […] em meio à folhagem densa de uma mata qualquer”, são como um espelho e uma esfinge para quem os contempla, ainda quando no sonho das feras: “Uma folha se mexe, percebo que já não o vejo mais. Então, ele me devora”.

Espantos
Drones é ambíguo. IA, sim, mas qual: invasão alienígena ou inteligência artificial?

O tema do “duplo” faz-se presente em A festa, conto ferino, hilariante, intrigante. “Sou conhecido por minhas opiniões francas, incisivas, mas nunca enquanto desfruto da hospitalidade alheia”, diz o narrador. “Minha acidez está reservada para as notas que destilo em minha coluna.” A tese implícita é de que o escritor é aquele que se divide em dois: um que experimenta, vivencia; outro que escuta, observa e toma nota. “Quem poderá, de fato e ao final, narrar o que se passou?”, questiona-se ele, retoricamente.

Discurso de um morto (como Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo), O condenado também lembra O processo e O estrangeiro, de Kafka e Camus, respectivamente, na medida em que trata de um condenado à morte — a pena inexiste no Brasil — por uma sentença injusta, absurda mesmo: o réu diz que roubou para comer e dar de comer à família faminta (não vamos nos esquecer ainda de Um artista da fome). A descrição de seu caminho rumo à execução é dilacerante: “Dei a todos um dia de festa e júbilo”, ele comenta, com mordacidade.

Nocautes
Seção reservada a cinco microcontos que, apesar do nome, não dão “nocautes”; na melhor das hipóteses, fazem cosquinhas ou deixam uma pulga atrás da orelha.

Pistas falsas
A última seção dá título ao livro e contém A selva, conto que inspirou a ilustração da capa: um relato de viagem — memória e testemunho — de um repórter, enviado especial a África, “lugar inóspito e incompreensível, ardilosamente silencioso, habitado por predadores famintos”. Os pigmeus brincam com ele em um balanço, tomam-lhe o relógio “que brilhava esquisito” e não sorriem para as fotos.

A África surge como um símbolo de selva, do selvagem — uma alegoria para o instinto, a pulsão e o inconsciente. Diz o homem, no conto:

Por essa razão, tenho visitado a África com frequência. Não aquela, a da mata espessa e de gente miúda que abria o caminho a machadadas, mas esta que ainda resiste em mim, na qual me sinto balançar de um lado a outro em uma certa tarde cinzenta, a selva que se adensa em mim, que não deixa entrever e nem nunca se revela, esta sim, incompreensível.

Tomando de empréstimo as palavras do crítico Luis Leal (El realismo mágico en la literatura hispanoamericana), esse narrador-testemunha “enfrenta a realidade e nela trata de desentranhar, de descobrir o que há de misterioso nas coisas, na vida, nas ações humanas”. [Tradução livre] Nesse sentido, “o realismo mágico é, antes de mais nada, uma atitude ante a realidade. […] o principal não é a criação de seres ou mundos imaginados, mas sim o descobrimento da misteriosa relação que existe entre o homem e sua circunstância”.

Na última página de Pistas falsas — aquela de fonte branca sobre fundo negro —, José Eduardo dá sua definição para a vida e a escrita, e aproxima ambas. “Escrever é um ato selvagem, radical”, defende ele (como Marguerite Duras ou Clarice Lispector, por sinal). “A vida insana, é o que se escreve quando se enfrenta a selva.”

Pistas falsas
José Eduardo Gonçalves
Patuá
172 págs.
José Eduardo Gonçalves
Nascido em 1957, em São João del-Rei (MG), o jornalista, escritor e editor José Eduardo Gonçalves é autor do livro de contos Cartas do Paraíso (Mazza, 1998) e do romance Vertigem (Record, 2003), além de organizador do volume Ofício da palavra (Autêntica, 2014), premiado na categoria Melhor Livro Teórico pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) em 2015.
Adriano Cirino

É jornalista graduado pela UFMG. Foi repórter trainee do Estadão e colabora com a revista piauí.

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