Cinco anos de Rascunho. Cinco anos bastante movimentados no mercado editorial brasileiro, afinal nunca se publicou tanto. Quantidade significa necessariamente qualidade? Difícil dizer. Para destacar o que realmente vale a pena ser lido, elaboramos esta enquête. Pedimos a dez especialistas (ficcionistas, poetas e críticos literários) que indicassem os cinco melhores títulos brasileiros publicados nos últimos cinco anos. Dos milhares de romances, coletâneas de contos, de poemas e de ensaios lançados, as dez listas destacam os seguintes livros:
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Alberto Mussa
1. HOMO BRASILIS, organizado por Sérgio Danilo Pena (FUNPEC, 2002). Ouso dizer que este é o livro brasileiro mais importante dos últimos cinco anos. Em função do artigo Retrato molecular do Brasil, assinado pelo organizador. Nesse estudo revolucionário, Sérgio revela que a imensa maioria dos brasileiros, desde os mais brancos aos mais negros, é toda mestiça. Pode vir a ser uma poderosa arma ideológica contra o racismo e a favor da auto-estima.
2. FACA, de Ronaldo Correia de Brito (CosacNaify, 2003). Autor de concisão e precisão borgianas, Ronaldo recria no Nordeste — com uma tragicidade muito sua, muito particular — o universo gaúcho de Sérgio Faraco, de Mário Arregui e do próprio Borges (não o da Biblioteca de Babel, mas o do Martín Fierro). O livro quase inteiro é composto de obras-primas da narrativa curta.
3. HÓSPEDE SECRETO, de Miguel Sanches Neto (Record, 2004). Raro exemplo de prosador lírico não-sentimental, Miguel retoma uma tradição há muito ausente das nossas letras: a das melodias simultaneamente serenas e perturbadoras, como as de Otto Lara Resende. Peças como O bom filho e No centro de algo são excelentes.
4. GERAÇÃO 90: MANUSCRITOS DE COMPUTADOR, antologia organizada por Nelson de Oliveira (Boitempo, 2001). Embora esteticamente desigual, a coletânea identificou com propriedade a tendência dominante da literatura brasileira contemporânea: urbanidade, indignação, ruptura. O grande defeito do livro é destacar apenas o nome de um dos dois principais regentes dessa orquestra: o de Luiz Ruffato. O de Nelson de Oliveira ficou de fora, talvez por ser homônimo do organizador. Lamentável.
5.RELIGIÃO COMO TRADUÇÃO: MISSIONÁRIOS, TUPI E TAPUIA NO BRASIL COLONIAL, de Cristina Pompa (EDUCS e ANPOCS, 2003). Talvez o que me tenha provocado maior emoção foi ver demonstrado que a cultura brasileira, com base no exemplo da religiosidade, decorre de uma reinvenção original e autóctone dos modelos culturais dos muitos povos e etnias que entraram em contato uns com os outros. E não uma mera justaposição de contribuições isoladas, como quer aquela antiga lengalenga de que o português deu a língua; o negro, a macumba; o índio, a farinha.
Alberto Mussa (RJ) é ficcionista. Publicou O enigma de Qaf (romance, Record), entre outros.
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Ana Elisa Ribeiro
1. ARQUITETURA DO ARCO-ÍRIS, de Cíntia Moscovich (Record, 2004). A primeira senhoura que me vem à cabeça é a gaúcha Cíntia Moscovich, especialmente com esse livro de contos. Leitora de Clarice Lispector e escritora como quase nenhuma das poucas que têm vindo à luz.
2. FALO DE MULHER, de Ivana Arruda Leite (Ateliê, 2002). Esse é um livro de contos que mexeu no meu cânone de contistas e não achou classificação até hoje. Se Cíntia é de uma prosa harmônica e lenta, Ivana é ao mesmo tempo doce e cínica, breve e cheia de espantos — pequenos espantos —, que é do que essas mulheres intensas vivem. Ela sabe mesmo como escrever pequenos grandes contos.
3. ENCARNIÇADO, de João Filho (Baleia, 2004). Indo para a lista dos machos, o primeiro a me subir à mente é esse baiano, João Filho, com seu livro de estréia. Impossível não lembrar de outro João, o Rosa, que abafou tudo o que veio depois, mas ainda sobrou espaço para esses talentos emburacados pelo país, longe da lengalenga metida e beatnik dos esporradores de plantão. João Filho alinhava a fúria do poeta com o encadeamento do prosador. Beira a criatividade divina.
4. GEOGRAFIA ÍNTIMA DO DESERTO, de Micheliny Verunschk (Landy, 2004). A poesia aerada de Micheliny também foi importante para que se achasse novamente a pista da criação poética. Vinda de Arcoverde (PE), Micheliny trouxe aos livros desse gênero uns suspiros que já andavam esquecidos.
5. O VÔO DA MADRUGADA, de Sérgio Sant’Anna (Cia. das Letras, 2003). Por último, mas não por ordem de importância, menciono Sérgio Sant’Anna com essa sua última coletânea de contos. Acho que este dispensa comentários. É o professor de um monte de aprendizes que subiram no salto alto.
Ana Elisa Ribeiro (MG) é poeta e cronista. Publicou Perversa (poemas, Ciência do Acidente).
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Carlos Emílio Corrêa Lima
1. MITOLOGIA DO KAOS, de Jorge Mautner (Azougue, 2002). Acredito que a edição da obra completa de Jorge Mautner revela ao pessoal mais novo um grande escritor que não tinha mais seus livros nas livrarias. O antológico primeiro livro do Mautner, Deus da chuva e da morte, lançado no ano mais mágico da literatura brasileira até agora, o ano de 1956, obviamente está aí incluído.
2. MÁQUINA DE ESCREVER, de Armando Freitas Filho (Nova Fronteira, 2003). Recomendo este livro e toda a obra do Armando, o mais fundamental poeta carioca contemporâneo de sua geração.
3. GERAÇÃO 9O: MANUSCRITOS DE COMPUTADOR, coletânea de contos organizada pelo ubíquo, incansável, simultâneo e talentoso Nelson de Oliveira (Boitempo, 2001). Eis aí o livro que é o marco da nova renascença literária brasileira.
4. PÁGINAS DE SOMBRA: CONTOS FANTÁSTICOS BRASILEIROS, antologia organizada pela maior autoridade brasileira no assunto, o também escritor de ficção científica Bráulio Tavares (Casa da Palavra, 2003). Bráulio é o organizador que pôs na mídia e no mercado todo um maravilhoso filão até então escorraçado pela maré positivista e naturalista da literatura brasileira.
5. MEMÓRIAS DO ESPANTALHO, antologia de Francisco Carvalho (Imprensa Universitária da UFC, 2004). Francisco é um dos gigantes da poesia brasileira de todos os tempos… Mas meu número cinco tem valor de seis, já que quero incluir um sexto livro, que pode ficar no nicho das antologias importantíssimas saídas neste princípio de milênio literariamente florescente. É o Na virada do século: poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002), antologia da nova poesia brasileira, organizada pelos também fecundos poetas Claudio Daniel e Frederico Barbosa. Antologia que pôs muita gente boa, de todos os Estados brasileiros, no circuito principal.
Carlos Emílio Corrêa Lima (CE) é escritor e jornalista. Publicou A cachoeira das eras (romance, Moderna), entre outros.
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Flávio Amoreira Viegas
1. CAPIMIÃ, de Jairo Pereira (Medusa, 2002). Jairo é encantador de significados. Poeta maior para onde afluem fanopéias que circundam/ circulam/ convergem num logos intimíssimo com uma ontogênese do essencial extraída do prosaico/ precário/ primevo. Da rapsódia de estrofes quebradiças forma-se a sinfonia dum telurismo mágico. Jairo é desses que permanecem por perseguirem o labor lírico sem olhar de lado para os grupelhos patrulhentos. Demiurgo das enormidades em gestação transmutante, é único, oferecendo perplexidades fenomenológicas.
2. PEQUENO DICIONÁRIO DE PERCEVEJOS, de Nelson de Oliveira (Lamparina, 2004). Acostumados ao crítico de nossas gerações, eu afeiçoei-me ao escritor que classifica, densifica, atordoa. Nelson clarifica a minúcia inaudita, defronta impasses contemporâneos para os quais não contamos com instrumentais assentados ou consentidos. Dispõe a condição humana através de personagens-situações que se deslocam, equivocam, interpõem-se numa polissemia doce de Maria Fumaça tchekhoviana indo de Guaíra a Pequim, passando por Sampa. Nelson, que nos lê a todos, generoso, é meu mestre contista onde busco percevejos inteligíveis no Absurdo do Ser.
3. A MORTE SEM NOME, de Santiago Nazarian (Planeta, 2004). “O mau crítico se identifica facilmente quando começa por discutir o poeta e não a poesia.” Dissociar o Santiago belo/ clubber/ gótico/ descolado de seu romance poderosamente inovador é árduo. Abstraio a persona midiática e atenho-me ao livro que inova o que estava seco: frases curtas, alta tensão psicológica, trama urbana espiralada, alternância esquizoliterária, egotrip coletiva, esse texto assegura de vez a pós-modernidade como vertente consistente para compreender o nosso tempo de verdades e associações epistemológicas em estilhaços.
4. REGURGITOFAGIA, de Michel Melamed (Objetiva, 2004). O autor é profeta antibeletrista: representante mais visível do verborrágico, do antiminimalismo descarado, do conteudalismo que quer dizer tudo, muito!, verborragicamente traçando pontes entre o pop e o erudito através de novas prosódias. Geração Zero Zero que leu anos e anos e usa novas mídias, rompendo suportes obsoletos sem perder de vista a fonte do conhecimento: os cânones. Blogs, teatro performático, isso é só confeito para uma poeticidade que busca o Todo-em-Tudo.
5. OUTROS NOMES, SOPRO, de André Queiroz (Sette Letras, 2004). André Queiroz é o típico rompedor que descortina paisagens da alma esforçando-se por dizer o indizível, reproduzir o irreproduzível: as intermitências das sensações por epifanias esbarradas e torneadas com capacidade semiótica pelo oficiante dessa liturgia gráfica. É desses que crescem lentamente entre o leitorado voraz de sutilezas. André é mais uma desses novos e novíssimos da Coleção Rocinante, maior plataforma e vitrine da grande prosa brasileira que não espera licenças pontifícias para fazer o novo, num processo acelerado de assimilação/ negação/ construção de originalidades alinhavadas pela angústia da transmutação.
Flávio Amoreira Viegas (SP) é poeta e contista. Publicou Maralto (poemas, Sette Letras), entre outros.
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Luci Collin
1. ELES ERAM MUITOS CAVALOS, de Luiz Ruffato (Boitempo, 2001). Romance? As misérias da vida do homem comum, em condição de anonimato e incerteza, na grande cidade. São sessenta e nove textos pungentes e velocíssimos. Ritmo perfeito, linguagem de beleza incrível (neologismos, cortes exatos) e uma ironia deliciosamente sutil. Um painel de tipos que amalgama uma sensível observação sociológica e uma extraordinária experimentação com a linguagem.
2. MINHA MÃE MORRENDO & O MENINO MENTINDO, de Valêncio Xavier (Cia. das Letras, 2001). Filme? Texto-montagem. Uso de imagens, de diversas fontes, estruturando as narrativas. Colagem de materiais e justaposições organizando um tecido melancólico. Humor maravilhoso, deboche disfarçado de ingenuidade. Manipulação de meios e interdiscursividade em uma composição de surpreendente simplicidade, por isso tão efetiva.
3. O MUNDO COMO IDÉIA, de Bruno Tolentino (Globo, 2002). Poesia. Reflexões religiosas (mistérios), poesia metafísica, pessimista. Linguagem erudita sustentada, sobretudo, pelo recurso das alusões, belíssimas e equilibradas. Tem o movimento de uma equação-filosófica sendo decomposta. Exige uma leitura muito cuidadosa, dada a sofisticação do texto, que revela a profundidade das coisas essenciais em contraponto à hipocrisia, que lamentavelmente elegemos como um valor.
4. SÓLIDOS GOSOZOS & SOLIDÕES GEOMÉTRICAS, de Nelson de Oliveira (Record, 2004). Contos. Prosa extremamente inventiva e instigante, linguagem ágil em uma combinação que desestabiliza o leitor. Ousadia em tematizar a loucura, os limites do que se chama realidade. Contos provocativos — de dolorosa, mas sublime intenção — sobre a fragilidade da nossa existência. Escritura de beleza única.
5. TABLADOS, de Luís Alberto Brandão (Sette Letras, 2004). Ficção-ensaio-poesia. Narrativas sobre as noções que envolvem e são envolvidas pelo espaço textual. A cadência do livro, as argumentações de caráter filosófico e as imagens que ele constrói são de tirar o fôlego do leitor. A linguagem é uma renda, delicadíssima, elegante. Um livro sobre livros, uma aventura minuciosa sobre e dentro da escrita.
Luci Collin (PR) é poeta, contista, crítica e professora. Publicou Inescritos (contos, Travessa dos Editores), entre outros.
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Luís Dill
1. A DOBRA DO MUNDO, de Caio Riter (WS Editor, 2003). Nesse livro, o gaúcho Caio Riter confirma todas as suas habilidades literárias com uma intrigante coleção de contos na qual um narrador nos leva a lugares esquecidos, sempre usando de voz mansa e o indisfarçável sotaque sobrenatural. São histórias ótimas de se ouvir e, depois, passar adiante.
2. CABEÇA A PRÊMIO, de Marçal Aquino (CosacNaify, 2003). Há muito tempo Marçal vem parindo obras que o colocam no pavimento superior da literatura brasileira. O referido romance é adrenalina, tensão, força, concisão, ou seja, prosa de primeiríssima. De quebra, podemos ver com toda a clareza o rosto do Brasil impregnando cada personagem, cada página.
3. O MENINO QUE CAIU NO BURACO, de Ivan Jaf (Edições SM, 2004). Ivan é um velho e festejado conhecido da gurizada. A novela destina-se, a princípio, para adolescentes, mas a sensibilidade empregada na discussão de temas como a superação de dificuldades (quaisquer que sejam) torna-a indispensável para todos os públicos. Texto enxuto e inventivo.
4. NÔMADA, de Rodrigo Garcia Lopes (Lamparina, 2004). Existem poetas com vocação para tambor. É como se os versos tivessem sido criados para romper com a apatia e o lugar-comum. Surgem para acordar. Rodrigo Garcia Lopes pulsa nos seus tambores e oferece aos leitores o prazer da experimentação, além de, a certa altura, confessar: “…seu som é sua criatura”.
5. SERIAL KILLERS MADE IN BRASIL, de Ilana Casoy (ARX, 2004). Embora freqüente na imprensa nacional, o tema ainda carecia de um estudo mais profundo, sem ser técnico demais. Ilana conseguiu trazer para o entendimento dos leigos um pouco da mente de criminosos, por meio de pesquisa e entrevistas. Com o livro sabemos desde as obscuras motivações até a surpreendente humanidade dos chamados monstros.
Luís Dill (RS) é jornalista e escritor. Publicou Lâmina cega (novela, WS Editor), entre outros.
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Mayrant Gallo
1. MEMÓRIAS DO ESPANTALHO, de Francisco Carvalho (Imprensa Universitária, 2004): trata-se dos poemas escolhidos de um dos grandes poetas brasileiros esquecidos, o cearense Francisco Carvalho, poeta forte e de dicção variada.
2. ABERTO ESTÁ O INFERNO, de Antônio Carlos Viana (Cia. das Letras, 2004): mais um volume de contos de um dos mais originais e incisivos contistas brasileiros da atualidade, espécie de Rubem Fonseca freudiano do campo.
3. HÓSPEDE SECRETO, de Miguel Sanches Neto (Record, 2003): livro de contos com exemplares magistrais do gênero, sobretudo aqueles que lidam com a morte ou a ausência de entes queridos, lembrando o maravilhoso e raro Velórios (CosacNaify), de Rodrigo Melo Franco de Andrade, um dos mais importantes relançamentos dos últimos tempos.
4. A SOLEIRA E O SÉCULO, de Iacyr Anderson Freitas (Nankin, 2002): volume de poemas originalíssimo, de um poeta que não se filia a nenhuma moda poética, extraindo de si mesmo suas formas e seus assuntos.
5. FACA, de Ronaldo Correia de Brito (CosacNaify, 2003): volume de contos que confere vigor novo ao relato breve de cunho psicológico ambientado no campo. Há aqui narrativas que entrariam para qualquer antologia do conto de nossa época.
Mayrant Gallo (BA) é contista, poeta e professor. Publicou O inédito de Kafka (contos, editora CosacNaify), entre outros.
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Paulo Sandrini
1. PESCOÇO LADEADO POR PARAFUSOS (Ciência do Acidente, 2001), de Manoel Carlos Karam. A questão do gênero é lançada aqui definitivamente ao espaço, ao espaço da total liberdade de criação. Talvez o livro mais sem amarras que eu li nestes últimos cinco anos. O que vale nesse Pescoço é mesmo o alto grau de inventividade, o humor inteligente e as respostas jamais necessárias.
2. SUBSOLO INFINITO (Cia. das Letras, 2000), de Nelson de Oliveira. A descida aos infernos: está aí a retomada de um tema clássico, por isso mesmo uma tarefa arriscada — que não frustra, de jeito algum. Traço singular desse romance é a mescla das questões transcendentais às mazelas urbanas, engendrando, desse modo, uma trip fantástica complexa e inusitada (repleta ainda de cinismo e deboche). Os modos de questionamento sobre o sujeito contemporâneo e sua identidade neste mundo das superfícies, de aparências, particularizam ainda mais a obra.
3. ELES ERAM MUITOS CAVALOS (Boitempo, 2001), de Luiz Ruffato. Exemplo de como se utilizar a forma (ou as formas) em total consonância com a necessidade do discurso. Seus vários takes parecem nos deixar uma só pergunta: vivemos em sociedade ou num grande abatedouro humano? Um livro imprescindível tanto como literatura consciente quanto como painel extremamente bem ilustrado de uma sociedade marcada pela ditadura econômica e de mercado.
4. DEIXE O QUARTO COMO ESTÁ (Cia. das Letras, 2002), de Amílcar Bettega Barbosa. Diante do realismo que domina quase toda a produção brasileira desde há muito, este livro inquieta pela extrema naturalidade (vide o meio hostil) com que nos propõe encarar seus eventos fantásticos. O que torna tudo muito mais verossímil, é claro. Através dos mundos transtornados desses contos, passamos inapelavelmente a tentar nos situar melhor dentro do nosso próprio mundo, um mundinho repleto das falsas aparências do que chamamos e encaramos como real, inclusive (e ainda) em literatura.
5. LIVRO LARANJA (Edição do autor, 2003), de Marcelo Bevenutti. As pessoas é que o chamam de Livro laranja. Mas o livro não tem título. Só tem uma capa laranja. E também não tem gênero definido. Prosa, poesia, prosa poética, poesia em prosa. Sabe-se lá. Mas não é isso o que importa aqui. O que vale é a acidez e a espontaneidade do texto. Corrosivo até a medula. Espécie de escrita automática feita com as vísceras, que põe espinhos na poltrona do leitor.
Paulo Sandrini (SP) é contista. Publicou O estranho hábito de dormir em pé (contos, Travessa dos Editores), entre outros.
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Rinaldo Fernandes
1. BUDAPESTE (Cia. das Letras, 2003), de Chico Buarque: um romance que, tratando de um ghost writer, mobiliza questões como a das relações interculturais, a da identidade cindida e a do jogo de imagens na sociedade contemporânea.
2. SÓLIDOS GOZOSOS & SOLIDÕES GEOMÉTRICAS (Record, 2004), de Nelson de Oliveira: um livro de contos que traz uma leitura aguda de aspectos importantes da sociedade atual. Há nele o primoroso O dia dos prodígios, que, na linha da investigação filosófica, da perquirição da mentalidade judaico-cristã, é muito provavelmente o melhor conto brasileiro contemporâneo.
3. FAROESTES (Ciência do Acidente, 2001), de Marçal Aquino: contos cuja força reside na representação — realista ou, em certos casos, hiper-realista — de situações urbanas. Trincheira, um dos textos do volume, é uma jóia. Uma situação cruel, de guerra conjugal, típica do universo de Dalton Trevisan: um garoto ao lado de padrinhos cuja convivência é já inviável, insuportável, pois partida em seus elos afetivos. O padrinho mora no paiol, a madrinha, na casa, e o menino é o único veículo da precária comunicação entre ambos. Uma comunicação que expressa, na verdade, um desejo de aniquilamento.
4. LINHA FÉRREA (Lemos Editorial, 2001), de Tércia Montenegro: livro de contos vencedor do Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido em 2000 pela revista Cult. O conto que dá título ao livro é magnífico. Zelo, amargor, decadência, cobiça, morte, tudo misturado numa narrativa de pouco mais de duas páginas. São dois personagens: um velho tetraplégico e um adolescente. O velho acende no rapaz a cobiça. E propõe-lhe em síntese o seguinte: você cuida de mim, nesses dias que me restam, e terá como garantia à frente usufruir minha fortuna. O menino, despertados os desejos de posse (“dinheiro, terras, viagens — por que o velho foi falar?”), não resiste ao passar lento dos dias do outro. De protetor passa a assassino: uma noite, amordaça o pai, carrega-o na cadeira de rodas e o deita na linha férrea para ser esmagado pelo trem. Um texto rico em nuances humanas, denso, cruel, como parece ser próprio do olhar dos bons contistas.
5. CAPITU SOU EU (Record, 2003), de Dalton Trevisan. Esse autor talvez seja o contista mais cruel da literatura brasileira de todos os tempos. Às vezes parece repetitivo, mas, em seu caso, é pertinente a pergunta: não é a vida que se repete? O conto Capitu sou eu, entre outros tantos do volume, testemunha o talento do autor paranaense. A obsessão da professora de Letras pelo aluno mostra, por um lado, o pesadelo de uma paixão doentia e, por outro, o modo como, na contemporaneidade, as relações podem ser descartáveis. É um dos melhores contos do autor.
Rinaldo Fernandes (PB) é crítico, contista e professor. Organizou a coletânea Chico Buarque do Brasil (editora Garamond).
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Ruth Silviano Brandão
1. A VIAGEM: DA LITERATURA À PSICANÁLISE, de Noemi Moritz Kon (Cia. das Letras, 2003). Escolhi o livro de Noemi Kon pela novidade da articulação que a autora faz entre ensaio e ficção, entre romance e erudição, em um texto ágil e rico.
2. NOVE NOITES, de Bernardo Carvalho (Cia. das Letras, 2003). Mistura de documento, memória e ficção, esse romance revela mais uma vez a força da escrita de Bernardo Carvalho.
3. CONTOS DE AMOR E NÃO, de Lúcia Castello Branco (Lamparina, 2004). Lúcia publicou pela editora Lamparina uma pequena jóia poética em forma de mínimos contos. A beleza da escrita dessa autora está sempre presente em seus textos, sejam eles ensaísticos ou ficcionais, como o romance A falta, lançado pela Record.
4. O FALSO MENTIROSO, de Silviano Santiago (Rocco, 2004). A escolha desse livro justifica-se pela ficção provocadora do escritor, na linha de seu trabalho ensaístico, que tem a marca da consistência e da coerência teóricas.
5. OS CHINELOS DE RAPOSA POLAR, de Luís Giffoni (Pulsar, 2002). Escritor mineiro que fez sua própria editora, a Pulsar, Giffoni tem uma produção impressionante pela quantidade, mas, sobretudo, pela qualidade. Como os outros livros desse autor, Os chinelos de raposa polar, além de apresentar o narrador ágil que ele é, apresenta o humor que é a marca do autor, além de transitar pela ficção científica de maneira peculiar, tocando nas questões do tempo, e extrapolando os clichês do gênero.
Ruth Silviano Brandão (MG) é crítica, professora e escritora. Publicou Aporias de Astérion (contos, editora Lamparina), entre outros.