Seguindo as próprias pegadas

Resenha de “Trem fantasma para a estrela do oriente”, de Paul Theroux
Paul Theroux, autor de “Trem fantasma para a estrela do oriente”
01/09/2013

A paixão de Paul Theroux pelos trens vem desde a sua infância, quando morava próximo aos trilhos que ligavam as cidades de Boston e Maine. Ao ouvir o barulho da locomotiva puxando todos os outros vagões, quase sempre sentia vontade de estar dentro de um deles. Theroux cresceu com a certeza de que o trem é um lugar seguro, ainda que a paisagem momentânea que o cerca possa ser extremamente desagradável. Para ele, é o melhor meio de transporte que há: não causa pânico como os aviões, não fede como os ônibus e não limita os movimentos dos passageiros como acontece em um automóvel.

Em 1973, quando já havia deixado os Estados Unidos e residia na Inglaterra, pegou um trem na Victoria Station, em Londres, rumo à estação central de Tóquio. Foi pelos trilhos do lendário Expresso do Oriente, parando e conhecendo cidades, conversando com pessoas, esboçando os seus próprios caminhos. Pegou também avião e navio, mas apenas quando trem algum poderia levá-lo ao destino seguinte. Precisou contornar o então quase impenetrável sul da União Soviética, encantou-se com a Índia e perambulou pelo sudeste asiático. Depois do Japão, o caminho de casa seria menos complexo. Um barco o levou até o gelado noroeste russo, onde subiu no Expresso Transiberiano. A ferrovia da volta era quase tão simbólica quanto a da ida.

Muita coisa na vida de Theroux mudou graças à aventura. Pessoalmente, é possível realizar-se, ao menos parcialmente, como viajante. Afetivamente, sua mulher lhe ornou com um par de chifres — o que lhe abriu a possibilidade de ser feliz em outro casamento. Profissionalmente, despontou como um promissor autor de narrativas de viagens após lançar O grande bazar ferroviário.

Trinta e três anos e muitos livros depois, o escritor quis saber se os locais por onde passara haviam mudado tanto quanto ele, e resolveu refazer a viagem que remodelou sua carreira. Saiu de Londres tendo o Japão como destino — e só não foi 100% fiel ao roteiro traçado na década de 1970 porque lhe recusaram o visto para o Irã e temeu ser seqüestrado e fuzilado no Afeganistão, mas ao menos pôde passar por reminiscências soviéticas, como o Turcomenistão e o Azerbaijão. A primeira viagem estava ali, como uma espécie de sombra contínua no seu caminho. Caberia ao escritor transformar a experiência em uma saudosa e modorrenta reprise de uma já desbotada aventura ou em algo novo, vívido, de real importância e incontestável valor literário e humano. Ao escrever Trem fantasma para a estrela do oriente, felizmente Theroux alcança a segunda alternativa.

Visão de mundo
Paul Theroux é um escritor em permanente evolução — ao menos em seus livros de não-ficção, pois não conheço seus trabalhos ficcionais. Uma mudança em sua personalidade acabou por impactar diretamente e positivamente em seus escritos: a maneira de ver o mundo. Quando escreveu O grande bazar, o escritor parecia ser um estadunidense quase caricato, que queria encontrar no resto do planeta as maravilhas de seu país natal, não outras possibilidades de se viver. Isso mudou. Em Até o fim do mundo, obra com trechos de diversos livros de viagens do autor, e O safári da estrela negra, que narra uma jornada pela África, essa transformação já era bastante perceptível. Contudo, é em Trem fantasma que ela fica mais latente.

A busca por entender, compreender e principalmente respeitar hábitos, culturas e formas de pensamento é essencial para que Theroux possa transmitir ao leitor um pouco de toda a complexidade dos lugares por onde passa. Sem um julgamento precipitado, o escritor consegue retratar toda a excentricidade, por assim dizer, de Saparmyrat Niyazov, então ditador do Turcomenistão, que rebatizou os meses do ano (janeiro passou a ter o seu nome) e tentou também rebatizar o pão com o nome de sua mãe.

A imersão em uma realidade completamente diferente é que leva Theroux a detectar a maneira como os vietnamitas lidam com as memórias da guerra com os estadunidenses. Há sim muita tristeza e pesar, mas em nenhum momento guardam rancor ou querem se vingar, pelo contrário, recebem e tratam Theroux com muita cordialidade. Para um filho do Tio Sam — e para os ocidentais, de uma maneira geral — isso é algo que beira o inverossímil. É o momento mais valioso de todo o livro.

Domínio do gênero
Alguns preceitos são inerentes à narrativa de viagem, estão presentes em praticamente todas as boas obras do gênero. E Theroux sabe disso, a começar pela tentativa de estar em algum lugar para compreendê-lo; ser parte do todo sem modificá-lo, não um corpo estranho que causa ruídos. Isso permite ao viajante captar com mais fidelidade algo que se aproxime da essência dos lugares.

Um pensamento que Theroux transmite ao leitor logo nas primeiras páginas de Trem fantasma para a estrela do oriente tem muito a ver com isso: ele acusa viajantes de generalizarem lugares a partir de experiências brevíssimas, de tirarem conclusões de evidências insuficientes. Só faltou dizer que esses viajantes ainda escrevem para revistas de turismo. Ótimo que Theroux tenha consciência disso, ainda que também tente algumas generalizações.

É também importante que um viajante ganhe ares de “sabichão”. Theroux resgata passagens e se aprofunda no passado de muitos lugares, como se dominasse a história de cada canto recôndito da Terra. Não se engane, muitas pesquisas e estudos posteriores à viagem precisam ser feitos para que se atinja esse nível de excelência.

Por fim, o aspecto mais importante para que a narrativa de viagem possa ser vista como uma peça literária: o texto de Theroux é realmente bom. Ao longo de Trem fantasma, somente dois problemas me chamaram a atenção: a repetição de alguns conceitos (a maneira como a Índia atual vale-se da exploração de trabalhadores, por exemplo) e o último capítulo, uma espécie de breve ensaio repleto de chavões sobre viagens. Nada que tire o brilho da obra.

Trem fantasma para a estrela do oriente
Paul Theroux
Trad.: Celso Nogueira
Objetiva
496 págs.
Paul Theroux
Nasceu em 1941, nos Estados Unidos. Já viveu na Itália, em Uganda, em Cingapura e na Grã-Bretanha. É autor de obras de ficção, como A Costa do Mosquito, e celebrado por seus relatos de viagem.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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