Há um lugar-comum para se falar de Minas — os incontáveis mistérios daquela gente. As montanhas esconderiam segredos indizíveis nos gestos ditados pela tradição católica, pela maneira conspiratória de se fazer política. A literatura mineira, no entanto, indiferente à voz comum, é falastrona e desnuda véus aparentemente intransponíveis. Belo Horizonte se mostra ingenuamente plena em O encontro marcado, de Fernando Sabino; os sertões são vastos e abertos em toda obra de Guimarães Rosa; as memórias de Pedro Nava escancaram todo caráter de uma geração brilhante; e até mesmo a política é posta à mesa no delicioso texto de Tempos idos e vividos, as memórias de Benedicto Valladares. Enfim, Minas se abre quando fala de si mesma — um novo lugar-comum.
A reedição do romance O altar das montanhas de Minas, de Jaime Prado Gouvêa, segue a mesma trilha, quebra os já esfacelados paradigmas e mostra uma terra cruel, inescrupulosa, mas ainda devota e solidária. Minas é também uma contradição e sua tradição literária revela tal dualidade com a marca da arte e da precisão. E aqui novamente Jaime reforça a voz de seus conterrâneos e trabalha seu texto com bisturi, descarnando, cortando todos os verbos desnecessários, deixando somente o que faz sentido. “Palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; palavra foi feita para dizer”, ensina Graciliano Ramos.
O enredo segue de certa forma esta necessidade de precisão. Dirceu Dumont é um jornalista que recebe das mãos de uma senhora de Ouro Preto, Marília, velhos papéis escritos por Álvaro Garreto, um cronista que descrevia com cores simbolistas os crepúsculos mineiros. Fareja aí um amor proibido, impossível, bem mineiro. Segue à procura do que seria a base para um romance e somente encontra uma trama macabra, recheada de sexo, drogas e violências. O enredo se marca ainda pela lancinante angústia das frustrações, das impossibilidades.
Apenas aparentemente Jaime Prado Gouvêa nos apresenta um romance de fácil leitura, óbvio, previsível. Embora em alguns momentos se consiga adivinhar os próximos passos do protagonista, as surpresas e reviravoltas moldam um personagem complexo e definitivo. As descrições são breves, aliás, o romance como um todo é até lacônico. Não carece da torrente quase barroca de um Guimarães Rosa para atingir o âmago mineiro. É direto e curto, com ações rápidas que traduzem um universo vasto, largo e inquietantemente denso.
Liberdades
É curioso observar as liberdades arriscadas pelo autor. Neste ponto chega a trabalhar com artificialidades, com tocaias que abaterão os leitores superficiais. Um exemplo? Há duas cenas emblemáticas. Na primeira delas, o médico, dr. Guido, chantageia a enfermeira, Elisa, uma mulher madura mas ainda atraente. Ela resiste a todos os assédios, mesmo ciente do preço que pagará. Num outro instante, Dirceu, sem muita resistência, entrega seu único bem, um modesto apartamento, ao Cobra, e cai de vez na quase miséria. Estas resignações — a de Elisa e a de Dirceu — são emblemáticas, embora quase inverossímeis. Há um jogo de poder que perpassa todo o romance e que representa séculos de dominação. No Curral Del Rey, como na Prússia, a vida tem estes rumos indissolúveis.
Outra grande farsa que o autor — um grande gozador — monta para apanhar leitores simplórios é a construção dos personagens, aparentemente figuras estereotipadas. Tudo bem, o Cobra poderia ser dono de uma roça de cacau no sul da Bahia, Rezende seria encontrado à margem dos sindicatos operários de Salvador e Bárbara tomaria banho de sol em Mangue Seco caso tivessem freqüentado a prosa de Jorge Amado, um mestre na criação de marcantes personagens chapados. No caso de Jaime, os personagens ganham dimensão nos detalhes, em suas breves ações, e isso exige uma leitura que diverte ainda mais, pois está o tempo todo desafiando e questionando o leitor.
Esta brincadeira — instrumento da literatura de qualidade — chega à metaliteratura, um dos mais caros delírios da crítica acadêmica. Aqui, no entanto, nada se realiza. Dirceu é incapaz de escrever uma única linha do romance tão planejado. Depois que perde tudo, se muda para Ouro Preto, onde espera encontrar todos os elementos necessários à sua grande obra, mas sequer a pesquisa sai da intenção. Em carta trocada com Mário de Andrade, Fernando Sabino foi dramático ao anunciar que era amigo de “poetas sem versos, escritores sem livros, pintores sem quadros”. O solitário da Rua Lopes Chaves retribuiu com ênfase: “Mude de amigos”. Dirceu é desta turma, sabe que jamais escreverá uma linha, mas precisa viver a ilusão que a glória de seu talento virá talvez por gravidade.
Jaime Prado cria lendas e tramas para disfarça suas verdadeiras intenções. Assim como os jovens que se reuniam pelas ruas provincianas de Belo Horizonte dos anos de 1940 se frustravam e arquivavam os sonhos, como nos conta Fernando Sabino, 40 anos depois, na cidade agora mais cosmopolita, os jovens sofrem o mesmo mal. O diferencial é que em O altar das montanhas de Minas as frustrações estão sintetizadas num único personagem, Dirceu Dumont. Aliás, até no nome o protagonista traz a capacidade de sintetizar todas as tradições intelectuais mineiras. E ao final estamos mesmo diante de um grande texto sobre falência. Aqui tudo se degrada. Da moral aos sonhos, tudo desce por ralos implacáveis.
Jaime Prado Gouvêa em O altar das montanhas de Minas dribla as armadilhas que ele mesmo cria e inventa. Faz um balanço sem dramaticidade de uma geração e ainda escreve uma excelente história de cunho policial. Em suma, um romance que mesmo breve, lacônico, incorpora todos os elementos da grande literatura.