Segredos da masmorra

Octávio de Faria produziu uma das mais estranhas obras da literatura brasilei-ra
01/10/2003

Bem no andamento do ano da Revolução de 1964, ao conceder entrevista a Esdras do Nascimento, o escritor Octávio de Faria declarou que “nenhuma ditadura, seja ela de esquerda ou da direita, oferece condições para o exercício da liberdade”. E quase vinte anos antes, em 1947, já declarara a Pompeu de Souza que “o Ocidente perdeu o Cristo e por isso declina”, mas entendia que “não são os totalitarismos que irão subjugar o Espírito”.

Essas afirmações parecerão estranhas àqueles que vivem num mundo pós-Hitler, pós-Stalin, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-64, mas só através do entendimento do universo totalitário daquele período será possível penetrar na corrente do realismo mágico centrada em narrativas que optaram pela abordagem da loucura e de situações fantásticas para denunciar a realidade ensandecida.

Sob a orientação destas convicções, Octávio de Faria construiria uma das obras mais estranhas e de difícil enquadramento da Literatura Brasileira — não poderia ser denominada de polêmica, já que mereceu tão pouco debate e tão poucas edições desde o seu aparecimento. Em 1966, saiu a primeira edição de Novelas da masmorra, contendo as estórias Memórias de um cão danado e O outro. A obra seria refundida na segunda edição, em 1968, assumindo o título definitivo de Três novelas da masmorra, já que foi acrescentada a estória O gato selvagem. Essas duas edições são da Gráfica Record Editora, com a mesma tipologia e o mesmo texto de Adonias Filho na orelha. A segunda edição, no ano em que foi lançada, recebeu o prêmio de ficção do Instituto Nacional do Livro.

Uma espécie de terceira edição só viria a ser conhecida no decorrer de 2003, assim mesmo limitadíssima ao círculo das Edições da Confraria, selo editorial da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, entidade fundada e administrada em Brasília pelo engenheiro, bibliófilo e escritor José Salles Neto. No entanto, por merecer inclusão na lista dos monumentos gráficos da Confraria, o livro de Octávio de Faria merece também reavaliação, pois certamente ainda não foi devidamente posicionado na história da Literatura Brasileira.

Na época do lançamento, conforme pesquisa encomendada à Biblioteca Nacional pela Confraria, as novelas não foram objeto de notas de rodapé. O autor chegou a declarar que elas “a tantos desagradou e a tantos aliviou”, e citou uma das declarações feitas a ele: “Enfim, alguma coisa sua curta, capaz de ser lida por inteiro por minha mulher!…”

São raras, quase inexistentes, as referências atuais sobre Octávio de Faria. Em entrevista a José Castello, o festejado romancista Fernando Monteiro sinaliza a necessidade de sua reavaliação. Ao apontar que desconfia daqueles escritores com mente clara, diz que prefere em geral os escritores laterais, e enumera Lúcio Cardoso, Breno Accioly e o Octávio de Faria das Três novelas da masmorra.

Por ser de 1966 a primeira edição, o termo “masmorra” do título remete para a situação de aprisionamento, leva a pensar imediatamente em “prisão subterrânea” e não em “lugar lúgubre”, e sinaliza conotações com o regime militar e seus desdobramentos de perseguição aos estudantes comunistas. Só que esta premissa não se apresenta com toda credibilidade, pois, em 1964 — época em que certamente elaborava esta obra —, Octávio de Faria, com 56 anos de idade e no auge de suas convicções católicas, não apresentava condições para ser militante. E não pode ser esquecida a sua origem burguesa e a sua crença num nacionalismo integral, já que acreditava em Plínio Salgado. Não confiava nos totalitarismos, e certamente não morria de amores pelo marxismo, pois, a certa altura de suas diversas entrevistas, tripudia São Carlos Marx. Objetivamente, não estava interessado em compor uma obra de engajamento, protesto ou rebeldia.

Também o texto de Adonias Filho não serve para aclarar a verdadeira invectiva política do autor, pois sinaliza apenas que Octávio de Faria se mantém fiel à temática do ciclo de romances denominado Tragédia burguesa. As novelas, no entendimento do romancista baiano, remetem apenas para “o sentido da auscultação interiorizante, psicologicamente interessada no reconhecimento do ser em sua presença existencial”. Não podendo esquecer que o apresentador também estava limitado às mesmas experiências religiosas e burguesas, e não iria admitir qualquer envolvimento político da obra. E a literatura deste período, ao contrário da música, preferiu buscar outros caminhos para entendimento da realidade política. Não foi só Octávio de Faria e Adonias Filho que construíram obra alheia à época, merecem destaque Lúcio Cardoso e Breno Accioly. Todos têm seu universo de loucura, sem a presença real do totalitarismo da política: Adonias Filho, com Memórias de Lázaro; Lúcio Cardoso, com a Crônica da casa assassinada, e Breno Accioly, com João Urso.

Só que para entender a concepção das Três novelas da masmorra é necessário consultar ainda os desdobramentos do realismo mágico ou fantástico, em que atuam divindades, mecanismos, forças sobrenaturais, gerando grande quantidade de motivos recorrentes, como o Cão, máquinas, invasões de insetos e animais, fantasmas, sombras, vampiros, homens-lobo, duplos, reflexos (espelhos), masmorras, monstros, feras, canibais etc. J. Simões Lopes Neto foi pioneiro do movimento, na década de 20, ao descrever assombrações; depois viriam os contos de Murilo Rubião (1947) e de José J. Veiga (1959). Mas só em 1964 duas obras viriam estabelecer definitivamente os termos da categoria: José Cândido de Carvalho, com o romance O coronel e o lobisomem, e Octávio de Faria, com as Três novelas da masmorra.

A primeira novela da obra —Memórias de um cão danado — retrata um personagem sendo perseguido por cães. O próprio personagem se julga um cão em outra encarnação. Ele vai sendo empurrado até cair na “Masmorra”, onde os vigias intervêm, subtraindo os cães de sua cólera. Há um Grande-cão, “todo sorrisos e disfarces”, cheio de “blandícia e engodo”, que precisa ser enfrentado. Cabe ao leitor descobrir e interpretar o significado deste Grande-cão, que pode ser o demônio religioso, o líder totalitário, ou o próprio eu.

“O outro” é o desdobramento do próprio eu. Octávio de Faria aponta que esta segunda novela “é variação em torno de temas dostoievski-hoffmanianos”, só que entalhada numa época em que o homem estava tolhido de liberdade, mas lutando por ela. No desdobramento de perseguições, Pedro Paulo acaba empurrado para a “Masmorra”, “como um homem perigoso, quase como um criminoso”, onde sofre toda espécie de privações — “mas nenhuma se equipara à falta de liberdade”. Talvez este outro seja o nosso semelhante, também o líder totalitário; ou, simplesmente, o superego.

O gato selvagem — a terceira novela, que só entraria na segunda edição do livro — é denominado pelo próprio personagem-narrador de “alegoria” ou “conto filosófico”. Talvez nessa novela o lado conservador, de direita do autor, se manifeste com maior clareza e evidência. Assim que é vencido pelas crianças comandadas pelo gato selvagem, o personagem é jogado na “Masmorra”. Em seu último monólogo talvez esteja manifesto o alter ego do autor: “Nada conseguirmos, repito. Nada, senão estardalhaço e aparência, provocando o fraseado vazio e escaldante dos jornais, a humilhação, o fracasso e, enfim, ao termo dos termos, a prisão.” Nesta assertiva o autor estaria querendo afirmar que é inútil o envolvimento com o ato revolucionário? Como esta novela só foi incluída na edição de 1968, ela pode ter sido composta no auge da perseguição aos movimentos estudantis que eclodiam em diversos países.

Assim, ao optar pelo realismo mágico, os autores — e aí entra Octávio de Faria — podiam enfrentar as loucuras de seu tempo. Estavam mais preocupados em enfrentar que interpretar… A entrevista de 1973, ao Jornal do Brasil, contém declarações que levam à elucidação de suas novelas. Octávio de Faria diz que “o sofrimento do homem é inevitável, assim como é inevitável a opressão do Estado sobre o indivíduo, sobre sua verdadeira natureza. O homem não pode existir se não vive num sistema de contenção: e vem a sofrer por isto”. Ele já manifesta seu alheamento político, pois admite a opressão do Estado sobre o indivíduo. E veremos que em suas novelas há este corolário de obediência e punição, advindas da opressão política e da experiência cristã. Aí está manifesta a ideologia do cristão vindo da classe dominante — o homem tem de estar sob o tacão, o jugo, o Grande-cão.

Por mais que esteja integrado a uma época em que os escritores interpretavam a interiorização do indivíduo, com personagens buscando aprofundar o entendimento dos abismos de sua personalidade, não pode deixar de ser política a declaração que conclui a novela Memórias de um cão danado: “… para proteger e salvar os que se vêem injustamente condenados à rigorosa inumanidade da ‘Masmorra’”.

A própria epígrafe dessa primeira novela, retirada de Homero, já sinaliza as situações totalitárias, pois o que está no palácio sente que aqueles que ele protegia, “desconhecendo o antigo senhor”, irão despedaçá-lo. Em seguida, no andamento do texto, diversas declarações do personagem-narrador vão delineando situações de perseguição, que alcançam sentido superior ao de um simples terror político ou freudiano.

Desnecessária a leitura de Hannah Arendt para compreender que os constrangimentos vividos pelos personagens das duas primeiras novelas remetem ao filme O ovo da serpente (1979), de Ingmar Bergman, que é um pouco posterior à época de Octávio de Faria. Tanto as novelas quanto o filme designam com muita propriedade a situação de perseguição, de acusação, vividas pelos indivíduos durante os regimes totalitários. Quanto à segunda novela do livro de Octávio de Faria — O outro —, há associação não só com a novela O sósia/O duplo, de Dostoievski, como ao filme A dupla vida de Veronique (1991), de Kzryzstof Kieslowski. Prova de que a literatura está sempre se antecipando às outras artes, e de que o criador seja de que linhagem for, de que categoria artística for, estará enfrentando, renegando os totalitarismos.

No decorrer de todas as três novelas fica manifesta a dubiedade quanto à postura política do autor, pois, em momento algum, há clareza quanto ao seu posicionamento frente aos fatos de sua época. O personagem de O outro quer fechar a porta a qualquer ameaça — será que esta ameaça é a do torturador ou daquele que quer manter o poder? A obra aberta possibilita essas leituras. Em momento algum o livro sinaliza a luta de classe, pois não é sua intenção deixar explícito uma postura diante da realidade. Não é explicitamente engajada. Talvez apenas sinalize um espírito de época, de nebulosidade. Mas, nesta dubiedade, há instantes quase marxistas na identificação do outro. Em O outro, o personagem reconhece que um quer ter as mesmas coisas que o outro. Até o político chega a aflorar, pois há a afirmação de que os irmãos têm os mesmos direitos. Talvez esta seja a declaração engajada mais explícita do livro, pois nenhum homem consegue apartar-se totalmente do seu tempo. E Octávio de Faria não abandona em momento algum a solidariedade cristã: “… não pode compreender como possa existir, entre os homens, tanto egoísmo, tanta falta de compreensão e amor…”.

 A confraria
Em 1995, depois de defrontar com dificuldades para conciliar as atividades de livreiro com as de funcionário de uma empresa pública, o engenheiro José Salles Neto fundou a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, voltada para a edição de livros artesanais e graficamente bem cuidados.

Atualmente são cerca de 300 membros (serão aceitas adesões até o limite do quadro, de 350 participantes), unidos para garantir a edição luxuosa de livros de autores brasileiros, elaborados com processos gráficos e acabamentos não convencionais ou que caíram em desuso, ricamente ilustrados — as ilustrações são especialmente encomendadas para as edições da Confraria — por artistas plásticos nacionais. Todas edições são preparadas com costura manual, capa em papel artesanal, gravações em ouro e negro, acondicionamento em caixas luxuosas, além da utilização de material raro como polpa de algodão, fibra de juta, de bananeira, cana ou sisal; e de adoção de técnicas raras como “acoplagem em canoa”, com folhas soltas.

Com a previsão de uma edição por ano, já saíram os seguintes títulos: O quinze, romance de Raquel de Queiroz, com xilogravuras de Abraão Batista; A hora e a vez de Augusto Matraga, conto de Guimarães Rosa, com gravuras de Poty Lazzarotto; Juca Mulato, poemas de Menotti del Picchia, com xilogravuras de Paulo Couto; 7 contos de Herman Lima, com ilustrações de Sérvulo Esmeraldo e aquarela da sobrecapa de Aldemir Martins; Prelúdio da cachaça, estudo de Câmara Cascudo, com xilogravuras de J. Borges; Poesias de Augusto dos Anjos, com seleção e apresentação de Ferreira Gullar e ilustrações de José Antonio Van Acker; Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, com ilustrações de Glênio Bianchetti; Galinha cega, Mansinho e outros contos, de João Alphonsus, com apresentação de Alphonsus de Guimaraens Filho, irmão do autor, e 40 ilustrações de Leonardo Alencar; o romance Pureza, de José Lins do Rego, com ilustrações do artista também paraibano, Flávio Tavares; a novela A polaquinha, de Dalton Trevisan, com ilustrações de Darel, um dos últimos monstros sagrados da ilustração de livros no Brasil; e Maria perigosa + cinco contos de Luís Jardim, com ilustrações do artista pernambucano, radicado na Itália, Eduardo Araújo. A próxima edição, prevista para o mês de outubro deste ano, é uma antologia de poemas de Manuel Bandeira, ilustrada por Renina Katz, a grande dama da gravura brasileira.

Para ocupar o tempo ocioso das pessoas envolvidas com o projeto, foi criado o selo Edições da Confraria para a publicação de livros fora da numeração das obras da Confraria, com maior tiragem (500 exemplares) e menor preço (80 reais), mas preparadas com os mesmos cuidados gráficos dos livros da Confraria. Numerados e assinados, os livros podem ser adquiridos por pessoas que não estejam no quadro da Confraria, não sendo a sua aquisição obrigatória pelos sócios.

O livro Três novelas da masmorra, o primeiro a ser editado pelo selo da Confraria, traz ilustrações do “único gravador brasileiro expressionista ainda vivo”, o sergipano/baiano Leonardo Alencar, composição em linotipia, impressão tipográfica para o texto e serigráfica para as ilustrações. O próximo título das Edições da Confraria será uma antologia de contos de Juarez Barroso, com introdução intimista de José Carlos Barroso, filho do autor e ilustrações do xilogravurista de Juazeiro do Norte, José Lourenço, um dos artistas populares atualmente mais destacado no segmento da xilogravura. A adesão à Confraria dos Bibliófilos do Brasil e a aquisição de obras do Selo da Confraria podem ser feitas através da Caixa Postal 8631 – CEP: 70312-970 – Brasília – DF. Contatos também pelo e-mail: [email protected] e telefone (61) 435-2598.

Três novelas de masmorra
Octávio de Faria
Edições da Confraria
142 págs.
Salomão Sousa

Autor de A moenda dos dias, O susto de viver, Falo, Criação de lodo, Caderno de desapontamentos e Estoque de relâmpagos.

Rascunho