Uma antiga piada europeia dizia que os maiores escritores ingleses eram irlandeses, exceto por Shakespeare, só que Shakespeare nunca existiu. Oscar Wilde, cujo forte não era a modéstia, afirmou certa vez que os três melhores produtos ingleses eram o chá, o uísque e seus livros, mas ressaltou que o chá era chinês, o uísque, escocês e, ele próprio, claro, era irlandês. Brincadeiras à parte, o peso da literatura irlandesa, não só nas ilhas britânicas, mas no mundo todo, é absolutamente desproporcional em relação às dimensões daquele país dividido e de história conturbada. Para não recuarmos demais no tempo, comecemos pelo ano de 1169, quando os ingleses invadiram a ilha. Como houve também o influxo de escoceses, e já havia a presença de monges católicos no continente europeu, a Irlanda medieval falava (e escrevia) em quatro línguas: latim, gaélico irlandês, inglês e gaélico escocês.
A presença inglesa na Irlanda sempre foi conflituosa, mas se agravou a partir da reforma religiosa do rei Henrique VIII no começo do século 16, pois a maioria da população se recusou a aceitar a nova religião anglicana e permaneceu católica. De uma maneira geral, os irlandeses católicos sempre sentiram um justificado rancor e trataram os ingleses e irlandeses anglicanos como invasores (ao contrário de galeses e escoceses, muito mais integrados ao Reino Unido). As coisas pioraram muito em meados do século 19, quando uma praga no cultivo de batatas da Irlanda, agravada por uma péssima gestão da crise pelo governo britânico, provocou, entre 1849 e 1852, a chamada “Grande Fome”, com milhões de irlandeses morrendo ou emigrando para a América do Norte. A partir de então, a relação entre ingleses e irlandeses azedou de vez, escalando para a luta armada até que, em 1922, a Irlanda obteve a independência. Mas, como a ilha continuou dividida, com a Irlanda do Norte permanecendo no Reino Unido e abrigando os anglicanos, a luta armada continuou até 2005, quando o IRA, o Exército Republicano Irlandês (dos católicos do Norte, que defendia a reunificação), aceitou abandonar a luta armada.
Com esse histórico turbulento de conflitos políticos e religiosos, em uma área menor do que Santa Catarina e uma população atual de sete milhões de pessoas (pouco mais do que a cidade do Rio de Janeiro), não há como negar que a produção literária da Irlanda é nada menos que um milagre. Numa lista para lá de resumida, a Irlanda gerou autores como Jonathan Swift, Laurence Sterne, Oscar Wilde, George Bernard Shaw, W. B. Yeats, Bram Stoker, C. S. Lewis, James Joyce e Samuel Beckett. Se incluirmos os norte-americanos de origem irlandesa, como F. Scott Fitzgerald, Raymond Chandler, Frank O’Hara, Eugene O’Neil, entre muitos outros, a coisa vira uma verdadeira goleada.
Entre a década de 1960 e o começo do século 21, o milagre literário irlandês, no campo da poesia, teve em Seamus Heaney um de seus mais destacados exemplos. Isso não é pouca coisa, porque, na ponte aérea Inglaterra-Irlanda, esse período foi particularmente frutífero, pois foi quando estiveram ativos os excepcionais poetas Ted Hughes, Philip Larkin e Paul Muldoon, entre outros.
Se Heaney foi parte de um milagre, isso não foi algo secretamente compartilhado por poucos admiradores. Desde a primeira coleção de poemas, Death of a naturalist, de 1966, ele foi aclamado como um grande poeta, e não foi surpresa para ninguém quando, em 1995, a Academia Sueca concedeu-lhe o Nobel de Literatura. Quando morreu, em 2013, aos 74 anos, Heaney recebeu homenagens de figuras como Bill Clinton, de José Manuel Barroso, então presidente da União Europeia, e de Michael Higgins, à época presidente da Irlanda, entre outras.
Lugar central na poesia
Seamus Heaney veio ao mundo numa fazenda chamada Mossbawn, no condado de Derry, Irlanda do Norte, em 1939, onde o pai, Patrick, era um pequeno proprietário e negociante de gado. Aquele lugar jamais deixaria de ocupar um lugar central nas memórias e na poesia de Heaney. Exceto por períodos em que viveu fora da Irlanda, como quando foi professor em Harvard, nos Estados Unidos, Heaney nunca morou muito longe do lugar onde nasceu.
O forte lirismo na poesia de Heaney, inspirado por sua Irlanda rural e natal, não poderia, porém, passar ileso pela complicada situação política em que ele cresceu e viveu. Dizem que os jovens de seu meio costumavam se dividir entre duas ferramentas: a enxada ou a arma. Assim, a violência, passada ou presente, estará presente, aqui e ali, na obra de Heaney. Vejamos o poema Réquiem para os Croppies, que homenageava os rebeldes irlandeses massacrados pelas forças inglesas, em 1798, na batalha de Vinegar Hill. A seguir, os versos finais:
Until, on Vinegar Hill, the fatal conclave.
Terraced thousands died, shaking scythes at cannon.
The hillside blushed, soaked in our broken wave
They buried us without shroud or coffin
And in August the barley grew up out of the grave.
Que, na tradução de Luci Collin, ficou assim:
Até que, em Vinegar Hill, o conclave fatal. Em fila
Morreram milhares, brandindo foices contra o canhão.
A encosta corou, embebida de nossa onda devastada.
Eles nos enterraram sem mortalha nem caixão
E em agosto a cevada brotou da vala.
Apesar de Heaney, por nascimento, ter cidadania britânica, de escrever em inglês (e não em gaélico, como alguns de seus colegas), e de ter mantido um excelente relacionamento com a Grã-Bretanha (ocupou o prestigioso cargo de professor de Poesia em Oxford e chegou a ser recebido pela rainha), ele sempre fez questão de dizer que era irlandês, e na República da Irlanda o poeta foi reconhecido, sempre, como um compatriota.
Heaney foi poeta em tempo integral, ou quase isso (quando não estava criando poemas, estava traduzindo, escrevendo ensaios e peças de teatro ou dando aulas de poesia). Em resumo, sua produção é bem grande. Entre 1966 e 2010, foram publicados doze livros com poemas inéditos (vinte e cinco, se contarmos obras alternativas). É comum que, com poetas respeitados e de obra tão vasta, em algum momento surja uma ou mais seleções de poemas. No caso de Heaney, saiu uma primeira versão, em 1980, abrangendo o período de 1966 a 1985. Mais tarde foi editada uma segunda, em dois volumes (o primeiro vai de 1966 a 1987, e o segundo cobre de 1988 a 2013). São os volumes de Heaney que tenho na minha estante, e que contêm exatamente 227 poemas, ou trechos de poemas, ou fragmentos de traduções de poemas clássicos celtas.
E, quando o poeta é muito, mas muito respeitado mesmo, é frequente que se faça uma obra com uma seleção ainda mais condensada. Como 100 é um número redondo e chamativo, essa escolha acaba sendo muito apreciada pelo mercado editorial. Eu mesmo tenho um 100 selected poems do e. e. cummings e um 100 selected da Emily Dickinson. Para um autor do calibre de Seamus Heaney, uma edição de 100 poemas não é nem um pouco surpreendente. É esta edição dos poemas de Heaney, com o título de 100 poemas, que aparece agora no Brasil, com tradução de Luci Collin.
Mistura de obras consagradas
De acordo com a apresentação, assinada por Catherine Heaney, filha do poeta, o próprio Seamus, em seus últimos anos de vida, havia pensado em tal coletânea, chegando a discutir o tema com o editor dele, mas, por um motivo ou outro, o projeto não avançou. Então, cinco anos após a morte do poeta, a viúva e os três filhos, entre os quais Catherine, resolveram assumir a empreitada. Ela explica que a escolha, naturalmente diferente da que o próprio Heaney teria feito, refletia uma mistura de obras consagradas (presentes nos selecteds) com as preferências individuais de cada um dos familiares. Na realidade, nem tanto: dos 100 poemas selecionados, apenas dez não constam da edição em dois volumes dos selecteds.
Seamus Heaney não é exatamente um desconhecido entre nós. Além da presença frequente em antologias e portais de poesia, nós já contávamos, no Brasil, com uma bela coletânea de poemas dele, editada a partir daquela primeira seleção em língua inglesa que mencionei acima (1966-1985), com mais de 150 poemas e tradução de José Antônio Arantes, lançada em 1998 pela Companhia das Letras. O livro era parte daquela memorável coleção que trouxe para o público brasileiro, com traduções primorosas, poetas tão importantes como William Carlos Williams, Wallace Stevens e Rainer Maria Rilke. A atual seleção, embora com menos poemas, cobre um período mais extenso, uma vez que a anterior parava em 1985, e a atual chega até o possivelmente último poema escrito por Heaney, que morreu em 2013. É uma excelente introdução à obra do poeta irlandês, mas, para quem ainda não o conhecia, e se apaixonar, vale buscar também a antiga edição da Companhia das Letras, nem que seja para cotejar algumas das traduções. Por quê? Vejamos as três primeiras estrofes de Digging (Cavando), um dos poemas mais antigos e mais conhecidos de Heaney, que não só abria seu primeiro livro como também, depois, todas as seleções, incluindo o recente 100 poemas.
O original em inglês:
Between my finger and my thumb
The squat pens rests; snug as a gun.
Under my window, a clean rasping sound
When the spade sinks into gravely ground:
My father, digging. I look down
Till his straining rump among the flowerbeds
Bends low, comes up twenty years away
Stooping in rhythm through potato drills
Where he was digging.
Aqui, a tradução anterior, de José Antônio Arantes:
Entre o dedo e o dedão a caneta
Parruda pousa, como arma pega.
Sob minha janela, um som raspante e claro
Quando a pá penetra a crosta do cascalho:
Meu pai, cavando. Olho para baixo
Até seu dorso reteso entre os canteiros
Encurvar-se, brotarem vinte anos atrás
Dobrando-se em cadência nos batatais
Onde estava cavando.
A seguir, a tradução mais recente, de Luci Collin:
A apta caneta em punho aguarda;
Como se uma arma, adequada.
Sob a minha janela, o som claro e choroso
Da pá que afunda no solo pedregoso:
Meu pai, cavando. Olho para baixo
Vejo, entre os canteiros, suas costas tensas que
Se encurvam, ressurgem vinte anos atrás
Arqueando no ritmo entre as covas de batata
Onde ele estava cavando.
Reparem que, dos nove versos reproduzidos acima, apenas um deles, o quinto, apresenta traduções iguais. Os demais são tão diferentes que em alguns trechos chegam a parecer vir de poemas distintos. É importante ressaltar que as duas traduções são de boa qualidade. Se houvesse uma terceira, e uma quarta, versões, as diferenças continuariam a prevalecer sobre as semelhanças. O que isso nos diz? Em primeiro lugar, não me canso de repetir, traduzir poemas é tarefa, no limite, impossível. Pode parecer estranho isso estar sendo afirmado por alguém que, ao longo dos últimos onze anos, já traduziu mais de 130 poetas para este Rascunho, mas é a mais pura verdade. Uma explicação simplória: num poema, a forma é tão ou mais importante que o conteúdo. E a forma está imbricada ao extremo na língua e na cultura originais. Assim, traduz-se o sentido, mas a forma, a pincelada, a respiração, o ritmo, se perdem (ou se recriam). Em segundo lugar, assumindo-se que, de uma forma ou de outra, poemas são (e precisam ser) traduzidos, deve-se ressaltar que os poemas de Heaney são inegavelmente difíceis de verter para outras línguas, não porque sejam herméticos ou surrealistas, mas porque têm um estilo e uma linguagem muito peculiares.
Por tudo isso, à parte a inegável qualidade das duas traduções de estilos bem diferentes, a edição mais antiga, da Companhia das Letras, leva a vantagem de, como deve ser, exibir face a face, nas páginas pares e ímpares, os poemas originais e as traduções. Isso ajuda enormemente o leitor a sorver o poema em sua totalidade, cotejando, verso a verso, original e tradução. Na edição da Isto, os originais estão lá no fim do volume, em lista corrida e corpo menor, o que retira consideravelmente o prazer da leitura. E isso porque, insisto, o poema traduzido é uma interpretação, não o próprio poema. Pode-se compreender que a questão dos custos tenha seu peso, pois livros de poesia vendem pouco e imprimir é tarefa cara, mas, do ponto de vista de quem lê, é algo a se lamentar. Essa solução “econômica” tem sido mais frequente do que deveria, mas, apesar de tudo, acaba sendo menos ruim do que a alternativa que também tem sido ocasionalmente adotada — publicar as traduções em edições monolíngues, sem a transcrição dos originais.
O que importa, no fim das contas, é que Seamus Heaney é um gigante, e é sempre bom quando um grande poeta é trazido ao público brasileiro. Devemos louvar, assim, a inciativa da Isto Edições e a qualidade da tradução de Luci Collin. E torcer para que estes 100 poemas possam expandir não só a curiosidade dos leitores para ler mais de Heaney, como acender a ambição das editoras de nos trazer mais poemas dele e de outros bons poetas daquele pequeno e literariamente milagroso país, como — por exemplo — Seamus Deane, Eavan Boland, Eiléan Ní Chuilleanáin, Derek Mahon e Paul Muldoon, entre outros, todos inéditos, em livro, entre nós.