Se essa rua fosse minha

Livro resgata a história da "Rua do Lavradio", uma das mais charmosas ruas do Rio de Janeiro
01/02/2008

Com organização de Eliane e Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, o livro Rua do Lavradio é composto de pedrinhas brilhantes que os dois tiveram a paciência e a perícia de compor num mosaico que ressalta a história, o clima e a vocação da rua no Rio de Janeiro.

Os textos de Rachel Jardim, Nina Maria de Carvalho Elias Rabha e Eliane Canedo de Freitas Pinheiro, Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, Isa Cambará, e de Joaquim Ferreira dos Santos pavimentam os caminhos e recriam as pessoas por entre as fotos de Renan Cepeda e outras de arquivo.

Cada texto tem sua especificidade. Em Lavrador tempo, Rachel Jardim demonstra como o tempo pode ser o artesão de uma cidade. Num passeio proustiano pela rua, ela nos ensina a olhar e a recuperar o tempo perdido, reencontrado nos detalhes que se mantêm e que se superpõem, formando uma nova linguagem arquitetônica. Já em A Lavradio em seis tempos, de Nina M. de C. E. Rabha e Eliane C. de Freitas Pinheiro, encontram-se um minucioso estudo da história da rua e vinhetas que ilustram aspectos ou pessoas simbólicas de cada um desses tempos. Passagem que foi se valorizando por necessidade e por acasos, de caminho por entre terrenos desprestigiados, que foram se valorizando, até chegar a ser a rua mais elegante da cidade, abrigando palacetes e festas; que passa a abrigar uma vida pública, com lojas e teatros e que se transforma no endereço preferido dos artistas; que descamba para a boemia e que entra em ostracismo com as novas diretrizes de urbanização, que se vê mutilada mas que sobrevive e consegue ser preservada.

É desse resgate que A celebração da cultura, de Augusto Ivan, passa a tratar. Depois de um breve resumo da história da via, o autor fala da rua decadente que foi recuperada pelos seus habitantes, num esforço conjunto com a prefeitura. O aspecto descuidado da rua foi apagado pelo investimento em atividades culturais e de entretenimento. O apoio inicial da prefeitura, sob os auspícios do projeto “Corredor cultural”, transformou-se em investimento em infra-estrutura e preservação dos prédios, impedindo que esse importante acervo se deteriorasse e desaparecesse. Em seguida, Isa Cambará relembra as pessoas que foram fundamentais nesse processo de revitalização da área. Andorinhas — título retirado do painel-memória do edifício Andorinha, no centro, demolido após um incêndio, que agora enfeita a praça Emilinha Borba, na Rua do Lavradio — fala desses pardais solitários e das andorinhas gregárias que batalharam e ainda cuidam para que a rua em questão se mantenha, apresentando um grupo heterogêneo e criativo que colore os estabelecimentos com suas atividades.

Para finalizar o livro, o cronista Joaquim Ferreira dos Santos fala das “andorinhas” do passado, dos moradores famosos da rua, localizando seus endereços. É assim que ficamos sabendo que Madame Satã habitou, adequadamente, no número 171 da rua. Que João do Rio, morador do número 100, se indignou com o quase desaparecimento dos “chopes berrantes”. Através das palavras de Joaquim Ferreira reconstitui-se o “cenário de real valor”, enquanto se passeia pelas casas e vistas da Lavradio.

Como as fotos que ilustram o livro dão ao mesmo um caráter artístico, e como o texto elucida e informa de maneira leve e elegante, a obra tem valor para o turista estrangeiro que freqüenta as atividades culturais na área, daí a necessidade de traduzir todos os textos para o inglês. A tradução é de David e Tânia Shepherd. E, cimentando as pedrinhas do mosaico, o trabalho de revisão e de padronização dos textos foi realizado por Natércia Rossi, Sílvia Kutchma e Sérgio Soares. Cabe ainda mencionar o prefácio de Plínio Fróes, testemunho de seus apaixonados esforços para a recuperação da rua.

É um livro-rua, no sentido que se pode caminhar livremente, de um lado a outro da via. É um livro-tempo, que permite a passagem da história urbana e arquitetônica. É um livro-show, pois nele se exibem os personagens do cotidiano e do imaginário. É um livro-vida, pois contém mais que informação e beleza, e revela o sentimento e a alma de uma cidade em transformação.

Rua do Lavradio
Org. Eliane e Augusto de Freitas Pinheiro
Rio Scenarium
240 págs.
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

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