Confesso minha dificuldade para analisar este Éden-Brasil, de Moacyr Scliar, e de falar sobre o escritor, tarefa que me foi outorgada sob a força de uma vara de marmelo pelo editor deste periódico. É que Moacyr Scliar é uma espécie de vovô da literatura, uma daquelas personalidades que, pesquisando, pesquisando, pesquisando, simplesmente não se encontra nada de relevante para se evocar. É uma espécie de senhor que tem escrito tudo de forma muito limpa.
Esta limpeza, contudo, esconde algo muito triste na literatura de Scliar: a mediocridade. Em seus vários contos, mas principalmente nos seus romances mais recentes, Scliar tem mostrado uma prosa que faz corar quem lê pela incapacidade de transmitir qualquer idéia mais substanciosa. Não é ruim, não tem graves defeitos, nem tampouco se pode discordar das idéias que transmite, até porque não transmite idéia alguma. É somente… medíocre.
E daí a gente fica se perguntando como um escritor que já foi, sim, grande, pode continuar a publicar seus romances pífios por uma das maiores (e mais conceituadas) casas editoriais do Brasil? Simples: uma vez escritor, sempre escritor — parecem pensar nossos editores. Ou a questão é ainda mais séria: Scliar só continuaria a publicar seus livros porque tem seu nomezinho inserido em qualquer cartilha escolar, no capítulo Literatura Brasileira Contemporânea, ao lado de Dalton Trevisan, Lígia Fagundes Telles e Rubem Fonseca. Cego e iletrado, o governo federal, na hora de fazer suas mega-compras que em muitos casos são responsáveis por manter as editoras funcionando (sim, porque não é com livros como Éden-Brasil, nem com nomes como Moacyr Scliar no catálogo que editoras se sustentam), levam em conta estes nomes, que alguém colocou na tal cartilha. É um cego guiando o outro.
Titulação — Ainda me causa estranheza chamar alguém de escritor. É um título pomposo, algo como Conde ou Lorde. É algo que carrega em si o peso de uma tradição, de nomes como Cervantes, Shakespeare, Dostoiévski e Machado de Assis. Hoje em dia, contudo, qualquer idiota carrega nas costas o título de escritor. Basta ter publicado qualquer coisa besta numa gráfica de fundo de quintal, ter colocado uma mesinha na garagem, uma caneta Bic na mão para os autógrafos para a família e pronto: temos um novo Escritor na área. Se duvidar, tem gente chamando até o idiota aqui de escritor.
Moacyr Scliar, que acaba de publicar, pela prestigiada ma non troppo editora Companhia das Letras, este romancezinho de quinta categoria, pertence a este time de escritores que mais merecem ser chamados escrevinhadores, para que não sejam colocados no mesmo patamar dos Grandes. Exagero? Questão de justiça, ora!
Médico de formação, Scliar foi revelado como um grande contista, e neste gênero curto até que se sai bem. O problema é que, de uns tempos para cá, Scliar abandonou a sua veia, como direi, poética, que abundava nos contos, para criar uma espécie de prosa otimista, que só interessa àqueles que não conseguem ter uma visão muito além do horizonte-comum. E prosa boa permite qualquer coisa, menos lugares-comuns.
Nem sempre foi assim. O centauro no jardim e A estranha nação de Rafael Mendes são exemplos de uma prosa que, se não é assim um primor, também não desmoralizam o escritor. São dois livros que tratam, de algum modo, da identidade judaica, tema que é bastante caro a Scliar. Nos seus livros mais recentes, contudo, ele tem se mostrado verdadeiramente incapaz de contar uma história boa, de um modo satisfatório. Sonhos tropicais é um libelo sanitarista, uma biografia romanceada de Oswaldo Cruz, que o endeusa a não mais poder. E o premiado A mulher que escreveu a Bíblia é simplesmente digno de pena, em seu argumento e composição. Sim, o livro ganhou o prêmio Jabuti (aquele!), mas não passa de uma paródia muito malfeita das velhas lendas do Oriente Médio. Falsamente polêmico, o livro conta a história de uma mulher letrada que escreve a Bíblia. Simplesmente um terror.
Com este seu Éden-Brasil, Scliar está mais entusiasmado do que nunca no que diz respeito aos desígnios do Brasil e seus cidadãos. Para ele, o mundo é formado essencialmente por pessoas com boas intenções, abençoadas por Deus e lindos por natureza. Assim é, por exemplo Rique, o narrador do livro. Rique é um garoto que sonha ser ator de teatro. No princípio, no entanto, sua carreira resvala num desafio que ele não consegue transpor: o teatro experimental curitibano. Paralelamente, Scliar conta a história de Adamastor. Este personagem é, ao lado de Rique e de todos os outros que perpassam o livro, uma das coisas mais malfeitas que a literatura já concebeu. Tem a consistência de água; qualquer traço da personalidade deles se esvai facilmente pelos dedos do leitor. Não, não adianta procurar qualquer riqueza psicológica em Éden-Brasil; o romance é isso mesmo: nada sobre nada.
Pois bem, Adamastor é o típico filho de fazendeiro que não quer ser fazendeiro. Na faculdade, acaba se envolvendo com uns estudantes rebeldes. Não dá certo, claro. Assim, o escritor resolve, num passe de mágica, dar-lhe uma fortuna, como herança de um tio distante (pode rir, leitor, que eu rio também). Imediatamente, ele abandona o emprego público que conseguira e faz uma viagem a uma praia de Santa Catarina. Ali descobre um lugar lindo. Se fosse um desenho animado, nesta hora o leitor veria sobre a cabeça de Adamastor uma lampadazinha toda atiçada, porque ele teve uma superidéia: transformar aquela mata virgem linda num Parque Temático.
(E eu prevejo o leitor adulto vasculhando o livro à procura do encarte com figurinhas para colorir, porque não é possível, simplesmente não é possível).
De qualquer forma, lá vai o Adamastor pôr seu plano em prática. Para tal, contrata um consultor argentino que tem a idéia de fazer uma apresentação teatral no Parque, com Adão, Eva, a cobra e tudo o mais. Esta encenação serviria para dizer que o Brasil é um Paraíso. Rique, o ator fracassado do começo, seria o Adão fracassado do fim; uma beldadezinha de 18 anos (veja só: Scliar teve todo o cuidado para evitar de ser chamado de pedófilo ao criar Isabel com dezoito anos, e não quinze, como ela parece no livro. Escritor politicamente correto é outra coisa…!) seria a Eva; e a cobra seria um robô, maravilha de nossa tecnologia tropical. A partir daí, Adamastor, Rique, Gutiérrez e Isabel enfrentam vários desafios para pôr em prática o parque temático.
E o livro é basicamente isso. Decepcionado? Eu também, mas nem tanto, por ter lido A mulher que escreveu a Bíblia…
Lembro-me de um tempo, não muito distante, quando era possível tirar algo de realmente proveitoso da prosa de Moacyr Scliar. Quando li O centauro no jardim, por exemplo. O livro é criativo e tem uma clara mensagem sobre a identidade dos homens, principalmente dos judeus, vistos, muitas vezes e por muitos povos, como aberrações. Era uma prosa otimista, de certo modo, mas bem construída.
O que não dá para entender é como Moacyr Scliar entra impunemente nas livrarias e ocupa os lugares nobres e exíguos das vitrines com livros medíocres como este. O Brasil tem, sim, bons escritores à procura de um lugarzinho para mostrar seu trabalho, muitas vezes publicando por pequenas editoras sem condições de comprar o espaço de exibição nas grandes redes. Enquanto o mercado editorial brasileiro lança coisas como este ilegível Éden-Brasil, o mercado editorial do mundo todo está à procura de talentos novos, que venham suprir uma visão de mundo de algum modo afetada pelas recentes mudanças geopolíticas e comportamentais. Pode parecer cruel, ainda que seja real.
Sorte — No Brasil, ao que parece, é necessário sobretudo sorte para se ser publicado. É o caso do ex-policial civil Joaquim Nogueira, que escreveu o ótimo romance noir brasileiro (isso mesmo!) Informações sobre a vítima. Nogueira fez tudo de modo muito ingênuo: escreveu o livro, imprimiu-o, colocou-o num envelope com uma carta de apresentação e mandou para a Companhia das Letras. O resultado são mais de 6 mil exemplares vendidos — nada mal para um ilustre desconhecido. São raros, contudo, os casos que se sucedem deste modo. No mercado editorial brasileiro ainda prevalece o cunhadismo, aliança indígena, aquela coisa de um indicar outro que indica mais um e assim sucessivamente.
Não dá — É impossível ficar quieto diante de dois acontecimentos do mundo literário. O primeiro é a provável eleição de Paulo Coelho para a Academia Brasileira de Letras. Não, não se preocupem; não faço aqui campanha contra o mago tomar seu chazinho das cinco no Petit Trianon. Seria bom, contudo, que se fizesse uma campanha para se transferir os restos mortais de Machado de Assis e outros bons escritores daquele mausoléu. Eles definitivamente merecem uma “morada eterna” melhor. Aliás, dois imortais da Academia acabam de lançar livros: José Sarney, com seus poemas (o termo não é exato) em Saudades mortas, e Raquel de Queiroz, com suas crônicas da caatinga, em Falso mar, falso mundo, ambos pela editora ARX. Não convém falar dos livros, absolutamente desprezíveis.
O segundo é a confirmação de algo que já vem sendo dito pelo Rascunho há tempos: Fernanda Young personifica a decadência da literatura urbana e feminina no Brasil, que tem em Lígia Fagundes Telles ainda sua melhor representante. Numa mesa-redonda de mulheres exibida pelo canal de TV a cabo, ela declarou toda a sua sapiência e todo o seu critério estético ao dizer que Michael Jackson é melhor dançarino que Fred Astaire. Que puxa!