Meses antes da Semana de Arte Moderna, um de seus mentores, Paulo Menotti Del Picchia, já consagrado autor do poema Juca Mulato, repudia, em crônica no Correio Paulistano, a classificação de “futurista” para o grupo de escritores que representa. O termo, segundo ele, designara “na Europa a reação genial e idiota de uma horda de avanguardistas reacionários, cujos generais eram talentos e cujos aderentes eram imbecis”. O poeta não deseja, para as transformações estéticas que devem ocorrer no Brasil, o mesmo destino das italianas, pois estas, “desmoralizadas, se transformaram em blague”. Ao mesmo tempo, contraditório, aceita o qualificativo e conclui: “O futurismo de São Paulo odeia tudo quanto é escola. (…) A fórmula do futurismo paulista encerra-se, pois, nisto: máxima liberdade dentro da mais espontânea originalidade”.
Depois, em plena Semana, na conferência que pronuncia a 15 de fevereiro, Menotti resume os ingredientes defendidos pela pretensa revolução modernista, recusa “a arte dos embalsamadores”, empolga-se: “(…) Que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena!”.
De fato, ser modernista, em 22, é, acima de tudo, posicionar-se como antiparnasiano: “Morra a Hélade! Organizaremos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do Parnaso!”. Pequena dose de imaginação recria o tom em que as exclamações eram proferidas: “Nada de postiço, meloso, artificial, arrevesado, precioso: queremos escrever com sangue — que é humanidade; com eletricidade — que é movimento, expressão dinâmica do século; violência — que é energia bandeirante”. O discurso expõe as influências do movimento — e as ponderações de Menotti contra o futurismo se esvaziam, implodidas pela retórica que, na forma e no conteúdo, ecoa as ideias de Filippo Tommaso Marinetti, pai dos futuristas, publicadas em 1912: “No aeroplano, sentado sobre o cilindro da gasolina, queimado o ventre da cabeça do aviador, senti a inanidade ridícula da velha sintaxe herdada de Homero. Desejo furioso de libertar as palavras, tirando-as fora da prisão do período latino!”.
Bastariam sete anos, contudo, para Menotti perceber os limites da Semana: quando lança, em 1929 — com Alfredo Élis, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho —, o Manifesto do Verde-Amarelismo ou Nhengaçu Verde Amarelo, também chamado de Manifesto da Escola da Anta, o tom é completamente diverso, opondo-se, inclusive, ao Manifesto Antropófago que Oswald de Andrade, eterno imaturo, publicara em 1928. Enquanto este se aferrava às suas imprecações herméticas, adaptáveis a qualquer disparate, os autores do Verde-Amarelismo escolhem seguir caminho diverso: contrapõem os tapuias (representantes do “preconceito” e do “jacobinismo”, antropófagos que se isolam no sertão, inimigos do colonizador português — clara referência a Oswald, encastelado num experimentalismo inócuo) aos tupis, que aceitaram “diluir seu sangue no sangue da gente nova”, representam a “ausência de preconceitos” e são os grandes vencedores do processo colonizador, pois triunfaram “dentro da alma e do sangue português”. Dessa dicotomia nasce uma visão estética em tudo distinta do sectarismo oswaldiano: a Escola da Anta almeja congregar as diferenças, porque “jacobinismo quer dizer isolamento, (…) desagregação”. Tendo superado os slogans de 22, Menotti e os amigos recuperam o bom senso:
Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos.
O verde-amarelismo surge, dessa forma, não só como resposta às criancices de Oswald — às quais parcela da nossa literatura encontra-se acorrentada até hoje —, mas, principalmente, como repúdio ao modernismo que se satisfaz no papel de “público de si mesmo”; deseja alforriar a literatura da “tirania das sistematizações ideológicas”, defendendo a “liberdade plena” de “cada um ser brasileiro como quiser e puder”.
Males do intelectualismo
Cummunká, romance lançado em 1938, é uma das respostas de Menotti, na ficção, à estética militante de 22. Para realizá-la, o autor recupera a temática indigenista numa nova chave, em que o índio surge como elemento recivilizador da sociedade urbana, tecnológica, democrática — e também seu crítico severo, irônico.
O romance inicia apresentando Gualtério, proprietário do jornal Rebate, autor de artigos magistrais de economia, mas incapaz de pagar as dívidas da empresa. A cada crise financeira, ele dá vida a uma ideia supostamente genial — na verdade, sempre uma receita para enganar os leitores, aumentar a tiragem do diário e conseguir novos anunciantes. Agora, trata-se de organizar uma nova bandeira, expedição que desbrave o sertão, retome contato com os índios e leve a esses pobres ignorantes os benefícios do progresso. A ideia contagia os puxa-sacos e os aderentes do jornal, entre eles, Sérgio Menha, milionário angustiado e melancólico.
Num corte abrupto, o narrador conduz os leitores da sociedade industrializada à tribo dos xavantes, onde encontramos os indígenas refestelados em suas redes, à sombra dos buritis, mas, de forma inesperada, tecendo longos comentários críticos às canções que acabaram de ouvir no rádio:
— Todos os sambas são idênticos. Os caraíbas (homens brancos) começam a sofrer de uma franciscana indigência de imaginação acústica. Você não reparou, Ponkerê, que o barulho das cidades vai matando o sentido originário da música? As cidades eliminaram a linha melódica a qual é, no fundo, a verdadeira substância e a razão da ideia musical? (…) A música urbana e moderna está artificializada pela irrealidade da vida mecânica.
Os comentários são do personagem que dá nome ao livro, Cummunká, cacique da tribo, admirador de Bach, cuja música, em sua opinião, é uma “superposição de planos melódicos”.
O romance é construído sobre essas duas forças antagônicas: de um lado, os caraíbas, que se acreditam inteligentes, civilizados, mas que, entregues ao oportunismo, abandonaram seus valores, suas crenças; de outro, os índios, sábios, conhecedores da cultura e da tecnologia, mas que impõem limites ao uso de ambas, pois abandonar seus costumes seria “ceder à tentação do demônio da inteligência”.
A bandeira forjada pelo Rebate provocará, graças à inabilidade dos participantes, às espalhafatosas mentiras veiculadas pelo jornal e ao despreparo dos políticos, o confronto desses grupos, verdadeira guerra na qual os homens brancos serão derrotados pelo gênio de Cembeaçú, estudioso das batalhas napoleônicas, e pela fortuna de Sérgio Menha, que reencontra, na vida simples dos indígenas, seus esquecidos valores e também o amor. Todos são guiados pelos ensinamentos de Ambará, velho abaré, para quem o mundo moderno, limitado pelo “racionalismo científico, (…) sofre de duas doenças mortais: mediocracia e perda de espiritualidade”. A primeira trata-se de
uma infecção das massas pelos rudimentos descoordenados de cultura socializados pela técnica. Essa doença barbariza as multidões e instala nelas a força anarquizadora da violência. (…) Mediocracia é esse estágio de semicultura em que se encontram as massas que através do jornal, do rádio, do cinema e da mais rápida circulação do homem, se apossam de conhecimentos superficiais e esparsos, sem a coordenação de um sistema.
A narrativa é, assim, repúdio ao futurismo. O homem que Marinetti coloca, no Manifesto Futurista, “de pé sobre o cimo do mundo”, lançando “ainda uma vez mais o desafio às estrelas”, tornou-se, na visão de Menotti, um dos “neobárbaros” denunciados por Ambará: estão “contra a ordem clássica”; atacados de mediocracia, com seu racionalismo excessivo, “criticam e negam tudo (…), procuram agora destruir a própria civilização que criaram”.
Apesar das cenas idílicas entre Sérgio Menha e Cendi, a cunhantã por quem se apaixona, nas quais o casal, embriagado pelo amor crescente, embrenha-se numa pegajosa adjetivação alencariana, o que sobressai na história é o imprevisível, contagiante sarcasmo — e, em grande parte, a linguagem precisa. Numa arquitetura romanesca correta, Menotti pisoteia o indigenismo romântico; denuncia os crimes das multidões amorfas; desnuda sua própria consciência — e ri, com deliciosa ironia, não só das contradições modernistas, mas também das incongruências e dos exageros de uma sociedade subordinada ao que Cummunká chama de “males do intelectualismo”.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Jorge Amado e Capitães da Areia.