Sarcasmo e ironia

Contos de André Giusti trazem personagens parecidos com figuras da vida comum, mas donos de um irônico senso crítico
André Giusti, autor de “As filhas moravam com ele” Foto: Maria Beatriz Giusti
01/11/2024

Futebol, amor e desamor hétero, a amarga vida do trabalho assalariado, álcool etílico e paisagens urbanas. Essa pode ser uma lista dos temas gerais dos vinte contos reunidos em As filhas moravam com ele, de André Giusti. No entanto, esses temas dizem pouco sobre as surpresas que aparecem nos breves textos do volume, semifinalista do prestigioso prêmio Oceanos 2024, que alcança a comunidade dos países de língua portuguesa. Esse reconhecimento, em se tratando de um livro de contos, já quase beira a improbabilidade, e daí mais um motivo para conhecer a obra de Giusti.

Por se tratar de um livro que reúne contos, e sem que haja uma intencional coerência entre eles (como há em uma autora como Paulliny Tort, para mencionar outra boa contista em Brasília, onde tem havido uma cena fervilhante), é sempre uma tentação ler cada texto como um universo particular e, ao final, estabelecer uma espécie de ranking dos preferidos. Também é possível, já com a visão panorâmica pós-leitura, identificar tanto um estilo de linguagem quanto os assuntos recorrentes, como fica evidente em relação ao futebol e ao (des)amor heterossexual. Hoje, bastante acostumadas com uma literatura bem-sucedida e escrita por mulheres, é inevitável ler As filhas moravam com ele sem ignorar a visada masculina para a vida, as relações afetivo-sexuais, a sociedade e a literatura, arredando daí aquela pretensa universalidade que até outro dia enganava muita gente.

Mas o fato que talvez mais interesse é que os narradores de Giusti, a maioria em primeira pessoa, são personagens parecidos com figuras da vida comum, grande parte deles tão ferrados quanto a maioria dos brasileiros e brasileiras, só que donos de um senso crítico irônico muito divertido de acompanhar. Por toda parte, nesses textos, aparece um jeito sarcástico de tratar o privilégio empertigado de figuras cheias de grana e pose, em Brasília, no Rio ou em outra cidade grande. A escrita de André Giusti é afiada e surpreendente nesse sentido, sobretudo quando esperamos um desfecho e vem outro, geralmente suave. Em alguns contos, tais como Zago não viu o Fantástico e Adega do bairro, a violência, num gradiente crescente, se junta à vingança e conquista o leitor/a, a partir da eficaz antipatia construída tijolo a tijolo na descrição e nos diálogos dos personagens. Em Domingo, 17 de julho de 1994 (1), uma simpática história de amor faz dois gols no final. A habilidade do escritor trança a Copa do Mundo à história de um casamento que quase perde nos pênaltis. Em outros contos, o futebol aparece como personagem (mais do que pano de fundo), enredando gente comum, amizades, paqueras, possíveis divórcios e relações profissionais assimétricas (o poderoso e a ralé) que se equalizam em campo, entre as quatro linhas.

Mais melodiosos
Embora, quase sempre, Giusti maneje a língua portuguesa com simplicidade e clareza, sem grandes contorcionismos ditos poéticos, alguns contos são compostos numa levada mais melodiosa, bonita, e por isso também atraente. É o caso de textos como Mariana em trinta metros (um dos mais breves), Amiga loba (uma história dos anos 90) (quem nunca viveu um beijo quase-amor?), A felicidade dolorida do perfume de loção (ou Maria Paula não saberá) (de dar aperto no coração) e do conto que dá título ao livro, As filhas moravam com ele. Aliás, cabe comentar a ótima escolha do título, que provoca uma expectativa ligada a uma perspectiva menos óbvia nas histórias de paternidade, geralmente abandonadora e pouco comprometida com a criação de filhos, nos casos de pais separados. Sem dar spoiler, pode-se dizer: que pena que era tudo sonho.

De todos os contos do volume, 2268-1307 é o que mais se avizinha da crônica. Para as gerações que ainda conheceram o telefone fixo em casa, é um texto divertido, à beira do nostálgico, que deságua mesmo na saudade e no estranhamento das evoluções da vida (e não apenas das tecnológicas). Aliás, os narradores e personagens de Giusti têm o poder de nos carregar história adentro, ao tomar vinho no balcão (e ser importunado por um enólogo babaca de óculos), ao andar de carro velho e enguiçado, no futebol de várzea (parte quase incontornável de certa sociabilidade masculina, hoje mais distribuída), frequentar os corredores da faculdade, quando jovens, e as solidões das quitinetes, quando maduros. Às leitoras mais atentas, fica evidente o espaço das personagens femininas, construídas para desagregar velhos amigos ou para sumir na névoa inexplicável das paixões antigas, ou do sexo casual entre amigos carentes.

As filhas moravam com ele é breve, de leitura ágil e, por ser uma coletânea de narrativas, ainda assim não dá a sensação de irregularidade que muitos livros de contos dão. Giusti é dono de uma escrita bem limada, contador de histórias que progridem, preocupado, em vários casos, com desfechos que retomam algum ponto interessante da história, uma frase, uma imagem, ou seja, é um narrador consciente, arquiteto de arcos e urdidor de arremates que finalizam os contos, mesmo que exijam a cumplicidade de quem os lê, na hora de encerrar o texto. É claro que isso também diz respeito à edição do volume, que fez boas escolhas. Vale deixar a preguiça de lado e procurar pelo livro, pela pequena editora Caos & Letras e pela boa leitura que As filhas moravam com ele enseja.

As filhas moravam com ele
André Giusti
Caos & Letras
136 págs.
André Giusti
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e mora em Brasília (DF) desde os anos 1990. É jornalista e autor de dez livros (crônicas, poesia e contos). Em 1997, foi indicado ao Prêmio Jabuti por Voando pela noite, até de manhã. Por este As filhas moravam com ele, é semifinalista do Prêmio Oceanos.
Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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