Neste ano dos oitenta anos da morte do compositor carioca Noel Rosa (1910-1937), a leitura de contos que levam os títulos de algumas de suas canções é uma boa maneira de homenageá-lo, ainda mais que o time de vinte autores dessa coletânea conta com bambas do meio musical e escritores reconhecidos.
Segundo os organizadores, foi proposto a cada um dos vinte participantes selecionar uma canção de Noel, “composta com ou sem parceiros, e a partir dela criar uma narrativa ficcional”. Escolhas feitas (dezoito sambas, um samba-choro e uma toada), os autores viram-se livres para escrever guiados somente pelo “critério afetivo” provocado pela letra da canção, criando as conexões que quisessem.
Os contos não têm o fito de parafrasear o que Noel escreveu nas letras de suas composições. Na orelha do livro, o professor de Literatura da PUC-Rio Fred Coelho salienta que a leitura dos contos “Não [é] para procurar fidelidades, ao contrário, mas justamente para perceber como os autores souberam dialogar criativamente com palavras que já trazem, na sua origem impecável, narrativas completas”.
Até parece que algumas personagens que surgem nos contos saíram das crônicas musicais de Noel, se bem que repaginadas para os dias atuais. Se nas canções do Poeta da Vila circulam o garçom, o malandro, a “mulata fuzarqueira”, o “rapaz folgado”, o “tipo zero”, nos contos as personagens pertencem à contemporaneidade: o pastor e político atormentado pelo irmão de sua congregação religiosa que o atazana com o horário de verão (Por causa da hora, de Flávio Izhaki), a jovem que pensa na ex-namorada enquanto ouve cantadas de um pedreiro (Henrique Rodrigues em Mulher indigesta), o espírito de um pai recém-falecido que “baixa” no casamento da filha e revela aos presentes o passado nada recomendável da sogra (Fita amarela, de Socorro Acioli) ou Festa do céu (Veronica Stigger), que emprega a linguagem bíblica para dialogar com a toada de Noel.
Oscilando entre o humor e a melancolia, Dama do cabaré, de Luisa Geisler, aborda a questão da opção sexual do jovem que “Tinha saído do armário duas semanas antes e queria provar pro meu irmão e pros amigos dele que tudo estava bem”. Ironia corrosiva está em Filosofia, de Luci Collin. O conto mostra uma típica filha da burguesia a criticar o ex-companheiro, um pobre professor de filosofia: “E o cara desperdiça a chance de se socializar, sei lá, de conseguir uns contatos, comer umas coisas diferentes”. Percebe-se que a narrativa mantém a crítica ácida à gente “que cultiva a hipocrisia” do samba de Noel e André Filho.
Os contos acima mencionados apresentam uma perspectiva bem-humorada ou irônica das personagens retratadas. Outros, porém, tendem a um recorte violento e trágico da vida, endossando as observações de Beatriz Resende (Contemporâneos, 2008), que detecta na produção ficcional contemporânea três dominantes: a presentificação (obsessão com o tempo presente), a presença do trágico (a fatalidade existencial do homem) e a violência que ronda as grandes cidades.
Até parece que algumas personagens que surgem nos contos saíram das crônicas musicais de Noel, se bem que repaginadas para os dias atuais.
Tais dominantes estão presentes em Voltaste (Ana Paula Lisboa), conto que aproveita a moldura trágica do samba noelino para dar o tom à estória de Jamila, que abandonara a filha com o pai e sete anos depois retorna e leva a menina consigo. Tal fato leva o zeloso pai a uma ação desesperada.
Em Quando o samba acabou (Fernando Molica), a dramaticidade marca a estória de Maninho, famoso partideiro, suplantado no improviso por um desafeto. De quebra, o oponente conquista a “Rosa, formosa e perigosa” por quem Maninho se enfeitiçara. Resta ao improvisador o descrédito por onde circula e uma decisão semelhante ao que há no samba noelino.
Violência e tragédia também entram na composição de Século do progresso (Raphael Vidal), conto que estabelece um diálogo com o triângulo amoroso vivido por Euclides da Cunha, a esposa Anna Ribeiro e Dilermano de Assis. Com uma pitada de humor e ritmo de choro, Sergio Leo, em Tarzan, o filho do alfaiate, apresenta um moço desmilinguido, frequentador da Lapa, “mais procurado pelos agiotas que por mulheres interesseiras”, cuja vida insossa pouco se altera depois de uma cirurgia para ter um peitoral com “volume de halterofilista amador”.
Uma caixa de supermercado que descobre ser soropositiva (Três apitos) é a temática de Marcelo Moutinho. Se no samba o apito da fábrica de botões Hachiya trazia a Noel recordações da namorada que lá trabalhava, no conto, a jovem observa que “Um apito soaria a cada horário programado. E eu nunca mais desligaria o telefone”. O apito, no caso, era um aplicativo baixado da internet para lembrá-la de tomar os medicamentos contra o HIV.
Noel personagem
Mulato bamba (Nei Lopes) é o único conto do livro em que Noel é personagem. Na narrativa, o compositor convive com duas pessoas chamadas Doca, ambas valentes. A primeira é clara alusão à Madame Satã, famoso homossexual e tema do samba que dá título ao conto. A segunda, uma mulher “supervisora de uma casa suspeita”, “da pá virada”, “dona de um currículo complicado”, por quem “Noel se enrabichou”.
Algumas formas de violência ainda persistem noutros contos. No forte Pra que mentir?, Cíntia Moscovich foca-se em Emerita, uma jovem com corpo ainda “infantil, pouco peito, pouca bunda”, sodomizada pelo padrasto. No breve Boa viagem (Ivana Arruda Leite), uma mulher, depois de abandonada pelo marido, mostra-se arrependida de ter perdido oportunidades de obter vantagem no trabalho cedendo o corpo a um ou outro patrão que a assediava.
Maria Esther Maciel mostra em Último desejo uma mulher às turras com o marido bêbado e desempregado. Ela quase confessa ao vizinho de apartamento o último desejo que o marido lhe pedira. O fim da narrativa surpreende por certo tom machadiano.
Não só tiradas humoradas ou violência fornecem temáticas para os contos de Conversas de botequim. Dois deles ocupam-se da figura do idoso, outros focam os desvalidos e miseráveis da sociedade. Em Feitiço da Vila, Aldir Blanc ocupa-se em tom poético e fantástico da morte de um velho senhor de alma carioca. Com que roupa (Alexandre Marques Rodrigues) também se detém num idoso, porém doente, “o rosto rugoso, as bochechas estufadas, a barriga é uma saliência, os olhos estão baços, os cabelos brancos, a boca desdentada”.
A miséria de uma existência sem sentido é captada em Pela décima vez (Manuela Oiticica). O conselho de alguém que não vai ser ouvido dá o tom da narrativa: “Para de bicar as baratas, pendura logo essa conta e vai chorar na cama que é lugar quente”. Em Gago apaixonado (Marcelino Freire), um sujeito abandonado por uma mulher identifica-se com um mendigo, confessa-lhe suas agruras, pois “mendigo que é mendigo lê pensamento. Vasculha nossas sujidades”. Para compreender as personagens de ambos os contos, é válido ouvir o samba João Ninguém.
O distanciamento entre duas amigas é o tema de Rafael Gallo em Feitio de oração. Saudosa de um tempo de liberdade, a narradora evoca a amiga que sabia “lidar com os homens habilmente”. As opções de vida de uma e outra — “Eu vim para o lado celestial, este convento, e você rumou para o outro lado” — revelam a saudade e certa intimidade que houvera entre as duas.
Como se pode constatar, alguns autores escolheram grandes sucessos do compositor de Vila Isabel, outros optaram por canções menos conhecidas do público. E cada um, a seu modo, criou narrativas que enveredam por interessantes releituras nas quais vibram permanentemente a verve de Noel.
Em todos os contos desta coletânea, humor, violência e gente marginalizada são os principais ingredientes, evidenciando certa atmosfera carioca que tanto pode ser a atual quanto a da década de 1930. De certa forma, os escritores mantiveram em seus textos as “coisas nossas” de que Noel falava em suas canções. Nesse sentido, as narrativas de Conversas de botequim captam o espírito da Cidade Maravilhosa numa forma semelhante àquela obtida pela ótica de cronista que havia em Noel.