Por Adenize Franco e Sandriele da Rocha
Se para Dalton Trevisan o conto é um “pico na veia”, para Marcelino Freire é um “soco na boca do estômago”. No caso de seu mais recente livro, Amar é crime, devemos nos preparar para entrar em um ringue no qual seremos atacados por, pelo menos, 14 socos. Poderemos nos dar o luxo de contar com breves intervalos antes de cair a nocaute, mas isso não impedirá o gosto de fel na boca.
Amar é crime configura-se como um recomeço na carreira do autor, que resolveu enterrar tudo a sua volta depois de um ano repleto de perdas em sua vida pessoal. Segundo Marcelino, é seu livro mais apaixonado, uma vez que o dedica à mãe que morreu no ano passado e que, de certa forma, era uma das vozes contidas em seus escritos e quem mais fortemente lhe inspirava.
O livro é dividido em 14 capítulos, intitulados “pequenos romances”. Explica-se: nos outros livros do autor, uma das características predominantes era a concisão dos contos, e neste caso, suas narrativas ganham mais fôlego e há contos com até oito páginas. Esse prolongamento de algumas narrativas é justificado pela necessidade constante do escritor de “experimentar novas possibilidades, de abrir a língua para outras vertentes, de tentar chegar ao mundo de um jeito diferente”.
Matar para amar de novo, eis aí definição de Marcelino Freire para explicar não só o conteúdo de seu livro, como também a sua publicação pelo coletivo Edith, do qual faz parte, e não pela conceituada Record, na qual teve dois de seus seis livros editados — Contos negreiros (2005) e Rasif – mar que arrebenta (2008). Essa nova aventura de Marcelino é pautada por acontecimentos corriqueiros, como os freqüentes ataques homofóbicos, a efemeridade dos relacionamentos amorosos, o amor alimentado pelo dinheiro, a recorrência de crimes passionais, enfim, toda essa gama de sentimentos é vivenciada pelos seus personagens que sofrem na pele a violenta transformação do amor em morte.
Ferida aberta
A violência é um tema que comumente encabeça as narrativas de Freire, que aliada à ironia, consegue atingir em cheio a ferida aberta dos conflitos sociais e existenciais que permeiam a vida de grande parte da população brasileira. A realidade nua e crua está presente logo no início do livro, já no primeiro conto-capítulo, Vestido Longo, em que a protagonista, uma menina-prostituta, descreve de forma clara e precisa a situação em que sempre esteve inserida: “Eu não tinha nem sapato. O pé no pé, na sola da calçada. Uma miséria braba. Uma miséria pornográfica, é. Por-no-grá-fi-ca. (…). De nascença. Todo mundo nu. Assim que nasce, aparece, cresce exibindo a bunda, mostrando o caroço do cu”.
Conhecido por trabalhar com questões sociais, Marcelino busca, com este livro, encontrar o cúmplice perfeito para o novo “crime” que está cometendo. As histórias oscilam entre amor e ódio. O Capítulo V, Mariângela, explicita a história de uma garota gorda que, cansada de ser humilhada pela sua própria mãe, resolve matá-la: “Em casa, também no chão, fazia sua cama. Onde rolava e rolava, sem fôlego. A jibóia. A cururu. Eu vou escrever para o programa do Gugu. Para você, maldita, fazer uma operação. Dizia a mãe. Levanta já desta porra. Não me mate de vergonha. Sua elefantoa. Fedida”.
Crime, o capítulo seguinte, narra a história do jovem que planeja seqüestrar a namorada para ganhar visibilidade na imprensa: “(…) a bateria fraca do meu celular, o Datena tentando falar comigo, vai vendo, a viagem, até o Datena, mãe, por causa da audiência, olha, cara, sinceramente, eu não tenho nada a perder, a minha namorada me enganou, agora ela vai ter o que merece, a coisa vai feder”. O conto é repleto de vírgulas, que elencam suas possíveis atitudes quando resolver concretizar seu plano, o que denota a agressividade do jovem, exposta através de seus anseios e de sua linguagem.
Uma disputa sangrenta por um sofá encontrado no lixo é o tema central do capítulo Liquidação: “Que horror! O Outro Homem da Carroça puxou a faca. E embolaram juntos por uns segundos. Não dava para saber quem era quem. A arma rasgando os pulmões do sofá. Sangue, sangue”.
O capítulo X, Jesus te Ama, traz à tona a questão polêmica do envolvimento de um padre com um adolescente: “Ouça, também sou filho de Deus. Rezo. O rapaz era bonito. Quando passei ele abriu os músculos. Rezo. Quando passei o rapaz me azucrinou. Quando olhei ele me olhou. Rezo. Entrou na minha alma como um vampiro. Rezo”. Ao longo do conto o relato do padre denuncia que seu desejo pelo corpo masculino já brotara em sua vida desde a infância: “Certas imagens me ameaçam. Cristo e o seu corpo. Quando pequeno, queria tocar o corpo de Cristo. Esconjuro. O corpo perfeito. Esconjuro. O corpo de braços abertos. Esconjuro”.
Outro tema polêmico abordado por Marcelino Freire é o caso da aluna seduzida pela professora, no conto Declaração: “Mais do que qualquer uma, eu precisava estudar. A professora não mistura as coisas. Dava zero, se fosse o caso. Dez, na hora dos beijos”. A menina está cegamente apaixonada pela professora e quer mostrar para todos a sua volta que esse amor é verdadeiro: “Quinze anos de condenação passam rápido. Sentença: estupro de vulnerável. Mas eu quis, eu deixei. Pior. Consentimento do menor é irrelevante, disse o advogado. Disse o quê? Ir-re-le-van-te. O que a lei sabe sobre o amor? Tem lei o amor?”.
E há até um conto de tom autobiográfico, intitulado Acompanhante, em que o autor transfere para as páginas do livro, as ordens que sua mãe costumava dar à moça que cuidava de seu pai em seus últimos dias de vida: “O banheiro é este. A banheira é esta. Você vai ter de acompanhar. Pode lavar a cara e as costas. Esfregar. Esfregar. Esfregar. Nem pense em economizar. Vá fundo. Só não deixe o esqueleto pular muito. O sabonete naufragar. Cair. O xampu entrar nos olhos. Porque ele começa a gritar. A espernear. A mijar feito um afogado. Quem ouve pensa. Estão matando o que já está morto”.
Estilo inquieto
Embora Amar é crime possua contos mais longos se comparados aos publicados anteriormente, Marcelino mantém seu estilo inquieto, a sua literatura ritmada e urgente, repleta de ironia e musicalidade, com histórias banhadas pela oralidade e pelo trágico, elementos constantes em suas narrativas.
Os elementos supracitados estão presentes ao longo do livro, como no conto Vestido longo: “Nunca, nunquinha que eu vesti vestido longo. Sempre nuazinha, quando pequenininha, com a tabaquinha de fora”. Neste trecho, a presença da musicalidade, exemplificada pela repetição do diminutivo “inha” ressalta a infância da menina que sempre viveu nua e deseja vestir-se. A relação contrária explícita nesse ‘vestimento’ atravessa a narrativa de forma bastante contundente: criança nua versus jovem vestida. Essa narrativa de Marcelino Freire chama a atenção para o fato do desnudamento ser tão característico dentro da sociedade brasileira que o desejo da personagem passa a ser o ocultamento dessa nudez. Esse ocultar, evidentemente, ainda estará condicionado à exploração do corpo; assim como o enredo, narrado pela menina-moça, enfatiza a temática da exploração sexual e/ou prostituição infantil e estas serem desencadeadas pela falta de condições básicas de sobrevivência, ou seja, a miséria. Por isso, o eco retumbante, não de um tiro, mas de uma verdade despudorada: “A miséria no Brasil, puta que o pariu, é pornográfica”.
Essa musicalidade que impõe ritmo e cadência nos contos de Marcelino Freire adquire ares de degradação de ações. Em um outro fragmento deste conto: “E limpava lá dentro meu corpo de anjo. Sim, de anjo. O marmanjo babava, caduco. E depois me dava uma moeda, um cascudo. E eu devia ser boa de faxina. Porque veio mais gente chegando. Passando o rodo. Um monte de cachorro, abusando do meu jeito. Pelado. Do meu jeito de mexer. Inocente. Achando que o mundo respeita quando a boneca está descabelada. Respeita quando a boneca está quebrada. Respeita quando a boneca está esfolada”. Através da repetição dos sons nasais, contidos nos vocábulos elencados: anjo/ marmanjo/ chegando/ passando/ abusando/ achando/ quando, é possível constatar que o ritmo da narrativa inicia-se de uma forma suave e, conforme o tom desta vai se modificando, ocorre uma deterioração das atitudes vivenciadas pela personagem central. É fato que a intensidade desse ritmo impõe a gradação das ações: a violência sofrida pela menina. Essa violência é enfatizada na recorrência, também ritmada, dos adjetivos: descabelada/ quebrada/ esfolada. A adjetivação musical a que o texto recorre enseja a comparação que se quer estabelecer entre a menina e a boneca. A menina é a boneca, dentro de sua existência vilipendiada, sofrida e esfolada.
Além dessa musicalidade constante que atravessa todas as narrativas, a presença da ironia também é um elemento preponderante. Esse caráter irônico é observável no conto Mariângela: “A gorda gorda de sangue”, que a utiliza, mesclando-a com o trágico. Outro aspecto reincidente nas narrativas de Marcelino Freire é essa tragicidade, que desponta, também, no conto Liquidação: “No meio-fio. Pelo acostamento. Foi como se fosse o derradeiro momento. A última viagem. Ave Jesus! O Homem da Carroça carregando a sua cruz. No cruzamento”.
Utilizando temas atuais e situações violentas que foram midiatizadas e, por isso, facilmente reconhecíveis pelo leitor, assim como o reconhecimento dessas identidades perdidas em meio ao caos que impera na urbe contemporânea, Marcelino Freire consegue explorar a tragédia social brasileira a partir de uma linguagem que é incômoda e provocativa, permeada por cacoetes sonoros e ritmos fervorosos. Estas características, por um lado, singularizam a obra desse escritor contemporâneo que cada vez mais ganha visibilidade no cenário da literatura brasileira e, por outro, pluralizam as questões de cunho social. Esse novo crime do escritor estabelece um parâmetro entre o amor e a morte, residente nesse desejo tão estranho de se revigorar, após se matar.