Um novo hábito vem invadindo a literatura tupiniquim contemporânea, a chamada autoficção. Há uma clara separação entre este novo, digamos, gênero e a tão cara literatura de formação. Enquanto esta segunda faz, ao seu modo, uma espécie de inventário de uma geração, das angústias artísticas e pessoais passadas, a primeira prima pelo individualismo, por contar as dores que cortam a carne do próprio autor. Em outras palavras, o retrato mais que perfeito da sociedade moderna que opta pelos sentimentos individuais em prejuízo da sensibilidade coletiva.
Ricardo Lísias leva esta característica de sua obra ao mais intenso extremo, contando até mesmo as possíveis porradas que leva da vida, mas, não se pode esquecer, estamos diante de uma manifestação artística, de ficção pura, e isso não permite sair à cata de verdades e mentiras. Lísias fala mais de sentimentos que de fatos são reais na nova reunião de narrativas Concentração e outros contos, formada por textos já anteriormente publicados.
O personagem Ricardo Lísias que aparece em vários contos do volume, em suma, não é um retrato vivo do autor, mas uma espécie de alter ego, um vivente das emoções que o autor gostaria, ou sonharia, ter vivido. É este personagem quem vive o amadurecimento precoce do rapaz que se vê obrigado a desde cedo correr vários países em extenuantes partidas de xadrez ou na busca de histórias para contar em sua literatura. É possível que o autor possa ter vivido algumas destas situações, mas aqui o que importa é a forma como elas foram colocadas no papel. E aí vem o real sentido dessa literatura: esquadrinhar uma vida movida por pressões.
“Viver contra o muro, é uma vida de cão”, ensinava Albert Camus. E esta é a vida dos personagens de Lísias. Todos, sem exceção, num momento ou noutro, estão oprimidos, presos a sentimentos menores ou a neuroses criadas pelos próprios medos e desejos. Em Concentração, o conto que titula a antologia, o fotógrafo Damião sente “uma pressão muito intensa na parte inferior da nuca e alguma dificuldade para respirar”. Para suavizar o desconforto que às vezes o leva ao desmaio, barbeia-se com tanta frequência que lanha todo o rosto.
Sob pressão maior está o protagonista narrador do conto O capuz, preso em uma cela solitária, com um capuz que não consegue tirar da cabeça. E uma solidão profunda que o leva ao delírio. Solitário também está o psiquiatra que protagoniza o conto Anna O., obrigado a assinar um laudo médico que suavizaria as ações terríveis de um velho ditador.
Estes extremos de solidão e opressão levam seus passageiros à loucura. E aí está uma das mais caras preocupações da literatura de Ricardo Lísias, a reclusão intensa que leva ao devaneio. Mesmo cercados por multidões, os personagens não conseguem se comunicar nem interagir, uma doença da contemporaneidade que desagua em todas as paranoias possíveis, e Lísias é mestre na descrição desses casos.
Não dá para retirar desta prosa, no entanto, sua dose de ironia. O escritor ri com malícia de todas as dores que descreve. Sangra, sim, mas faz da própria hemorragia a mola de propulsão para sua felicidade, sem sequer se deixar levar pelo furor do masoquismo.
Opressão e loucura
Na série de contos Fisiologias, Lísias investiga as funções orgânicas da memória, do medo, da dor, da solidão, da amizade, da infância e da família com textos escritos na primeira pessoa e ricos em traumas pessoais. Os personagens, mesmo separados por espaço e tempo, parecem unificados em uma única pessoa, no menino que sente medo do pai, no adolescente que rompe com o avô, no homem que circula por Buenos Aires catando um passado que nunca houve. Enfim, tudo, mesmo quando vivido em ambientes familiares, se transforma em opressão, em loucura.
Este ambiente dilacerado por medos e preconceitos — aqui grafado em seu sentido lato, amplo — corre mundo, vai da Europa aos mais inconcebíveis lugares. O mundo que Lísias enxerga é habitado por seres que sofrem do mesmo mal, e que ainda se deixam adicionar por uma larga pitada de desejo de reconhecimento. O jovem enxadrista que encontra um mítico Evo Morales pelos aeroportos do mundo, outra coisa não tem senão a necessidade de se fazer reconhecer por celebridades. Enfim, mais uma dessas tantas doenças modernas que assolam os viventes da literatura de Lísias.
Não dá para retirar desta prosa, no entanto, sua dose de ironia. O escritor ri com malícia de todas as dores que descreve. Sangra, sim, mas faz da própria hemorragia a mola de propulsão para sua felicidade, sem sequer se deixar levar pelo furor do masoquismo. Seu mundo é que se faz pela degradação dos homens num estranho cosmopolitismo trágico.
Descobri a razão do meu incômodo com os escritores claros: eles não têm problemas de memória.
Contradizendo memória e clareza, Lísias oferece a chave para uma leitura atenta de sua obra. Ele cria labirintos a partir dos sentimentos conflitantes de seus personagens e com isso reinventa o mundo que existe somente no cerne dessa sua gente oprimida. E junto com eles sangra, macera o rosto como o fotógrafo Damião. E deixa o leitor apreensivo, tencionado diante de todas as possibilidades e capacidades humanas.