A publicação dos Contos e novelas reunidos de Samuel Rawet pela Civilização Brasileira responde a uma demanda antiga no meio cultural brasileiro. Como conseqüência das circunstâncias do lançamento dos diversos livros que a compõem, bancados pelo autor, a obra de Rawet teve reconhecida a sua importância nos círculos intelectuais, mas se tornou, desde os idos dos anos setenta, raridade a ser “garimpada” nos sebos.
Na competente apresentação dessa antologia, André Seffrin fornece alguns dados da acidentada trajetória pessoal e intelectual de Rawet: filho de imigrantes judeus-poloneses e formado em engenharia, trabalhou junto a Oscar Niemeyer na construção de Brasília, tornando-se figura polêmica, entre outros motivos, por suas divergências com as posições sionistas na comunidade judaica. Seffrin cita e comenta algumas leituras críticas da obra: muito poucas foram realizadas diante da originalidade dela! Passa em silêncio, no entanto, sobre outro aspecto contundente da figura e da obra de Rawet: o homossexualismo, assumido em textos de especulações filosóficas que publicou sobre o assunto e que não integram essa coletânea, e tematizado nos contos e novelas, abertamente ou pelas alusões às buscas e encontros fortuitos na noite. Até mesmo por não se ater a essa situação, o ensaio introdutório de Seffrin releva diferentes enfoques sobre o desajuste e a inadaptação social característico dos personagens de Rawet — que adquire a dimensão de uma espécie de desconforto cósmico.
Pode-se talvez constatar o extremo abandono que caracteriza esses personagens solitários e errantes no percurso recorrente que realizam ou rememoram nessas narrativas entre a tentativa de travar algum tipo de contato afetivo e a decepção que invariavelmente se segue, acompanhada de um contato insatisfatório, agressivo ou mortalmente violento com o outro. A novela Abama, de 1964, oferece uma chave de compreensão desse estado, vinculando-o a uma opção existencial ou destino. O protagonista empreende uma deriva cuja origem e razão são explicadas em sintaxe truncada: “Deu-se pois quais todos esses elementos se juntaram e despertaram nele uma idéia de há muito incubada e que tomou forma como uma lágrima. Deu-se que resolveu descobrir seu demônio particular” (p.411). Essa busca marcada por uma total disponibilidade do personagem aos contatos casuais com outros homens e mulheres, soltos pela cidade, figuras da noite principalmente, e que num dos casos chegam a levá-lo a experimentar a volta a um reduto típico da família, termina no afastamento desses tipos urbanos sucedido pelo encontro do protagonista com um duplo: “Não bem à sua frente, mas quase, um ser sobre a sua figura, envolvendo-a, integrando-a, como se recompusesse um conjunto antigo, desfeito pelo acaso e pela necessidade. Abam. Nome e demônio surgiram ao mesmo tempo. Sua forma, a forma dupla do avesso da forma humana”. Segue-se um embate físico com essa força — que se caracteriza como não humana — e que termina pela dissolução dela.
A temática do embate físico entre dois seres, associado ao confronto entre dois homens, é recorrente na obra. Aparece levado à radicalidade no conto A luta, do livro Diálogo, em que a própria percepção da natureza dos corpos que se encontram e se digladiam é colocada em questão. O conto inicia-se com um encontro, numa situação inusitada, em que o tempo fora suspenso e o espaço se tornara circunscrito: “Quando abriu os olhos, perdida a memória de tudo que se referisse à sua vida anterior, percebeu o cubo em que se encontrava, e junto à quina oposta algo parecido vagamente a um homem, ou o que lhe parecia dever ser um homem” (p. 130). A seqüência narrativa repete, como afirmei acima, a de alguns outros textos do autor: a tentativa de diálogo se transforma em conflito físico: “Deu alguns passos. Devia estar separado do outro por centímetros apenas. Falou-lhe da necessidade de um diálogo, e sem perceber um movimento sequer das sombras recebeu um golpe violento na altura do peito” (p. 131).
As causas dos conflitos e desencontros nunca são inteiramente compreendidas pelos personagens. Assim, medita o velhinho, no conto A chuva de há pouco, diante da dificuldade de interpretar as reações a seus pequenos desejos e pedidos na casa dos parentes: “Se ao menos soubesse de onde vinha tudo aquilo, ou por que motivo. Não via nenhum a não ser a sua parte na disposição geral das coisas, e que aceitava, porque não havia outra alternativa” (p. 139).
A possibilidade de travar contato com o conjunto da ficção de Rawet, permite observar que, desde seu primeiro livro, Contos do imigrante, já se apresentava esse desconcerto entre um sujeito e o mundo. O livro, seguinte, intitulado um tanto ironicamente Diálogo, demonstra em cada conto que não existem possibilidades de diálogo nas situações em que se encontram seus personagens, pois as diferenças são irremediáveis abismos: diferenças de gerações, de culturas, de histórias de vida. O livro obedece a uma construção com certa simetria e o primeiro e o último conto colocam em cena o velho que reconhece que suas demandas, seus desejos ou necessidades não encontram mais ecos nos parentes com quem convive. No livro seguinte, Os sete sonhos, a tematização do isolamento, da violência da tentativa de aproximação aparece no conto O encontro: mais uma vez, a aproximação entre dois homens se tinge de cores negativas ou soturnas, a misteriosa aproximação se conclui com a agressão física, o assassinato procurado — e, no entanto, muito brevemente conotado com algo que teria a ver com a atração sexual ou o amor.
Os traços de figuração na narrativa se oferecem por fragmentos, alusões esparsas a estados psicológicos, sensações, como também a lugares marcados simbolicamente, em geral, pelo signo da marginalidade: como os espaços do centro da cidade do Rio de Janeiro, em que circulam figuras da noite em busca de aventuras eróticas ou dos golpes aos solitários.
Concordo com a perspectiva de Gilda Szklo, citada por Seffin, de que a obra de Rawet pressupõe uma leitura que não se baseia na análise racional, mas numa certa empatia com os movimentos e pausas do texto. O leitor é provocado à identificação misturada à inquietação ou repulsa pelas distorções ou metamorfoses do corpo que apresentam no decorrer da obra, partindo de um estímulo figurativo, de modo semelhante à pintura de Bacon, como ponto de partida para o mapeamento de tensões, energias e intensificações da percepção sensória.
O modo adotado na figuração do corpo e a recorrência das situações em que se colocam os personagens estimula indagações sobre a obra ficcional de Rawet. De um lado, pelas relações que estabelece com a lógica que acompanha a percepção do “monstruoso” na produção cultural do Ocidente, conotando-se à diluição dos referenciais que enquadram a experiência corporal cotidiana. Essa diluição implica uma concepção de tempo estranha à experiência que permite ao sujeito reconhecer sua identidade, porque provoca uma ruptura do equilíbrio entre a representação da reversibilidade e a irreversibilidade do tempo. Conforme apontou José Gil: “Eis que de repente vejo num outro corpo uma superfície inóspita: ali não pode senão dificilmente espelhar, morar, prolongar-se o meu duplo” (Gil: 181). Os personagens de Rawet, ao se defrontar com o desafio de um duplo que os atrai e repele, passam a atuar num presente contínuo — numa espécie de dramatização em que se perdeu a noção do que permanece, da durabilidade, junto ao fluxo do tempo que passa. Por outro lado, a singularidade dessa experiência, que encenada no texto literário pode ser enriquecedora para a cultura, porque provoca no leitor a pergunta sobre o tempo e os limites convencionais da experiência subjetiva, associa-se na obra de Samuel Rawet muitas vezes aos estigmas da marginalidade. Isto implica associar as experiências não convencionais a situações históricas e sociais carregadas de caráter persecutório — como o tribunal da Inquisição diante de Ashawerus, ou a transformação do duplo em um tipo urbano marginal ameaçador, muitas vezes um assassino.
Parece-me pertinente, indo um pouco além, indagar sobre a validade de vincular algumas particularidades que cercam a figuração das situações dramáticas e dos corpos dos personagens nos textos de Rawet e o quadro masoquista tal como o definiu Freud, originado por experiências traumáticas do sujeito. A sensação de inadaptabilidade e exclusão, nesses textos ficcionais, aponta sempre para a esperança de sua possível resolução no diálogo. Com a impossibilidade deste se concretizar ou de se estabelecer alguma troca ou cumplicidade afetiva com o outro, o personagem mergulha na extrema solidão e abandono, amplificando os traços que caracterizam a sua singularidade, reconhecida como absoluta, próxima do monstruoso. Vistos sob esse prisma, os textos de Rawet seriam a contínua evocação de um trauma em bruto — portanto sem a sua integração a uma experiência coletiva ou o amortecimento da intensidade do choque original.
Talvez esse fato explique a dificuldade da anexação dessa literatura a qualquer das correntes ou tendências canônicas em voga na época de sua produção. E muito menos sua incorporação ao que se vem constituindo como uma literatura “gay” — pautada na proposta de fomentar representações “aceitáveis” ou “construtivas” do homoerotismo.
A obra de Rawet coloca-se como um registro de experiências humanas radicais e cuja singularidade se afirma também pelos modos originais com que incorporou ou driblou os limites, ainda vigentes na atualidade, para se apresentar ou pensar criticamente problemas relacionados ao homoerotismo no país — em vista da camada de clichês, eufemismos e silêncios com que se cerca essa questão em nossa cultura.
Referências no texto:
Gil, José. “Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In: Silva, Tomaz Tadeu (org.). Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 165-184.
Freud, Sigmund. O problema econômico do masoquismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 199-212.