Meio século escrevendo ininterruptamente na imprensa, assim pode-se resumir a carreira do polígrafo Carlos de Laet. Mas não seria inadequado completar: exercitando fina ironia, segunda pele desse polemista que, consciente do seu papel, afirmava estar “sempre em divergência com alguém, o que muito me apraz, porque é sinal de que agito idéias”. Ironia, contudo, jamais presa aos artigos e às crônicas, mas pronta a temperar o cotidiano. Derrubada a monarquia, certa manhã, caminhando para o trabalho numa das escolas do Rio de Janeiro, Laet vê que trocam o nome do Campo de Santana pelo de Praça da República; minutos depois, ao entrar na classe, diz aos alunos: “Não posso explicar o ponto marcado, porque ia falar sobre sintaxe da regência, e o novo governo é capaz de mandar que se fale sobre sintaxe da república”. Comentando o Hino da Proclamação da República, afirma que a letra tem apenas uma coisa certa: os pontos de exclamação. Certa vez, um aluno retruca diante das críticas que o professor faz ao evolucionismo: “— Mas papai disse que nós descendemos do macaco”. Ao que Laet responde: “— Não me interessam questões particulares de sua família…”. No ensaio biográfico que escreveu sobre nosso escritor, do qual retiramos estes casos, o jesuíta Francisco Leme Lopes assevera que, segundo depoimento de Mário de Alencar, amigo íntimo de Machado de Assis, este, no fim da vida, só lia o Jornal do Brasil das quintas-feiras, quando podia encontrar o texto de Laet.
Mas, nos dias de hoje, quem se lembra de Laet? Pouco sobrou dos cinqüenta anos de colaboração na imprensa e do ácido humor. A culpa não é da ironia, figura que está longe de ser efêmera ou superficial, mas cabe, parcialmente, aos modernistas, que talvez até pudessem fazer vista grossa ao catolicismo de Laet, mas jamais aceitaram suas críticas — ele já troçava do futurismo em 1910, antes mesmo que Oswald de Andrade (Oswald Júnior, à época) e seu pai criassem O Pirralho — e seu conservadorismo, em tudo oposto à idéia central do movimento, sintetizada no conhecido trecho da conferência de Graça Aranha, “A emoção estética na arte moderna”, que inaugura a Semana de 22:
o que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável florada artística.
Essa presunção de iniciar uma nova era, típica das vanguardas e das ideologias revolucionárias, contagiou não apenas a Semana, mas grande parte do que se produziu depois dela; e nos casos radicais — ou seja, patológicos —, continua a impossibilitar que o artista entenda a história e, pior, veja a realidade.
Ouro falso
Mas parte da culpa de que falávamos acima cabe ao próprio Laet. Incansável em sua defesa da monarquia, acabou se tornando repetitivo. Ler a coletânea de suas crônicas (publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa), pequena amostra de tudo que ainda não foi coligido, torna-se experiência às vezes tediosa, ainda que o escritor possua méritos indiscutíveis: rompe com a visão histórica dos golpistas — que se tornou hegemônica, pronta a detratar a monarquia e endeusar a república, escondendo a vocação despótica que esta forma de governo assumiu entre nós — e reapresenta, aos leitores modernos, figuras cruciais, diminuídas ou menosprezadas nos livros didáticos. Vejam-se, por exemplo, as crônicas sobre o marechal Osório — herói da Guerra do Paraguai, personagem só recentemente recuperada, graças ao historiador Francisco Doratioto — e o barão de Rio Branco: elogiosas, sim, mas sóbrias, em tudo diferentes do tom encomiástico que utilizou para retratar, anos mais tarde, o pintor Victor Meirelles. Laet também testemunhou momentos que, passado mais de um século, a historiografia marxista deseja transformar em meros acidentes ou pérfidas manipulações oligárquicas, mas aos quais o cronista concede emoção genuína, ainda que possamos criticar seu estilo, como o da votação, no Senado, do projeto que se transformou na Lei Áurea. Descontada a irrestrita defesa da monarquia, o perfil que desenha de Benjamin Constant serve para mostrar a ascensão da ideologia positivista no Brasil e suas conseqüências até hoje mal estudadas — o que só reafirma a coragem de Laet, pronto a contrariar os militares e denunciar seus crimes, incluindo os de Floriano Peixoto, outro capítulo ditatorial esquecido da nossa história.
Sofrendo do mal típico dos escritores brasileiros, Laet confunde retórica com magniloqüência. Critica o vício dos “pedantes sequiosos de tropos” que povoam este “país de advogados”, mas não consegue se livrar da doença.
E reza o Evangelho narrando a história daquela miraculosa alvorada em que, junto ao sepulcro do Grande Mártir, se quedava um celeste mensageiro anunciando a estupenda nova da ressurreição,
diz ele, por exemplo, colando adjetivos desnecessários, certo de que compõe um período harmônico, elegante.
A tese da crônica Ela, dedicada à Princesa Isabel, é justa, mas a linguagem mata a boa intenção. O mesmo desequilíbrio ocorre no texto dedicado a Machado de Assis: Laet percebe, com agudeza, o que chama de “eurritmia estética” — “incapaz de censurar com veemência um abuso, ele também o era de baixar à lisonja” —, mas perde-se em procedimentos enfáticos, vazios. A crônica salva-se, no fim, graças ao diálogo revelador, em que Machado demonstra seu horror às polêmicas, e à narração dos encontros nos quais o romancista sofre um ataque epiléptico ou chora, lamentando a morte da esposa, Carolina.
O problema não é a sintaxe de Laet, que apresenta agradável anacronismo, principalmente hoje, quando a maioria escreve como se telegrafasse ou preenchesse um formulário. A agrura surge do discurso que circum-navega e demora a chegar ao porto, do preciosismo, das citações em latim — esnobismo igual ao dos críticos que, atualmente, abusam dos termos estruturalistas e da linguagem hermética —, dos lugares-comuns, da verbosidade estafante:
Rebrilhava o sol em uma apoteose tropical. Um dilúvio de luz inundava as alamedas por onde escoava o fúnebre préstito, espelhava-se nas folhas lisas, nas arestas dos túmulos, nos doirados dos ataúdes… Por cima deste havia, concitando atenções, um pano colorido, uma bandeira, a bandeira do Império, a que flutuou no mastro do Amazonas quando se ganhou Riachuelo, a que seguiam nossos bravos quando se pelejava em Tuiuti, aquela que também na terra do exílio cobriu o féretro de Pedro II… E o sol, dardejante, em uma ardente carícia de amor e entusiasmo envolvia todo aquele cenário — fagulhando nas folhas e nos túmulos, naquela bandeira que parecia evocada por hipogeus da História, e naquele féretro que, de coração apertado e olhos turvados de lágrimas, silencioso eu acompanhava à derradeira estância.
Semelhante terror ressurge na crônica, gordurenta de palavrório, dedicada à memória de Euclides da Cunha:
Todo túmulo é digno de lágrimas. Em todo féretro vão a esconder-se mundos de afeto. Não há tumba, por mais humilde que seja, onde não chore uma saudade ou não se lamente uma esperança. Mas quando o morto tem vivido dessa larga vida da publicidade em que comungam milhares de inteligências, há nas tristezas que o acompanham ao cemitério, alguma cousa mais solene que os lutos da família. Chora também essa grande e pujante mãe, que todos amamos e tanto que por ela daríamos a vida, chora Pátria, orfanada de mais um filho que a ilustrava e que dos resplendores de seu nome lhe entretecia um trecho da formosa auréola.
Lamuriento em sua defesa saudosista da monarquia, Laet raramente apresenta o ímpeto, o apelo, o ataque preciso à república que Eduardo Prado compôs em Fastos da ditadura militar no Brasil (que analisei neste Rascunho, na edição #138). E quando digressiona, principalmente ao elogiar, oferece um ouro falso, pedante, exagerado, como neste trecho, em que analisa os artigos de certo jornalista: “[…] Não são tímidas aves a tomarem o primeiro vôo, incertas do destino que as aguarda: são hostes que retornam do combate, e que, frementes ainda com a febre da pugna, vitoriosas demandam os quarteis da História. […]”.
Há também crônicas dedicadas a arengas chatíssimas, como Com a Academia, na qual, para justificar a suposta tolerância da Academia Brasileira de Letras, perde-se explicando as linhas ideológicas dos seus membros. Infelizmente, nesses textos, Laet exclui-se da minoria que ele mesmo define: “O jornal é um edifício, uma estátua, uma tela, um livro feito para apenas durar um dia, e no qual só por exceção se inscreve o nome do artífice”.
Acidez
Todos esses problemas desaparecem quando surge a ironia — e o estilo de Laet se transfigura.
A sanha adesista que toma conta da sociedade, assim que os republicanos dão o golpe, é sintetizada neste episódio:
[…] Existiam no estabelecimento umas talhas da Bahia, nas quais ostentosamente se viam as armas imperiais, como então muito se usava. De ordem superior infalivelmente haviam de ser retiradas. Água bebida em talhas tão sediciosas até poderia fazer mal à saúde… […] Eu o vi, o pretinho incumbido da espinhosa tarefa de tirar as coroas. Com uma faquinha ele procurava raspar o barro em que se modelara o nefando símbolo, e ao mesmo tempo, e com máximo cuidado, evitar o estrago total daqueles produtos cerâmicos.
Mas era impossível…
— Perdes tempo, meu velho, disse eu ao servente da República… A coroa sai, mas a talha fica furada!
Meu dito, meu feito. Instantes depois abria-se um furo medonho, por onde despejava grosso jorro de água.
Desconfio que nunca mais se consertou a talha republicana.
Que a república continue a fazer água, isso só demonstra a qualidade profética — e metafórica — da ironia de Laet.
A compulsão por reformas ortográficas vem de longe em nosso país. Em 1907, a chamada reforma Medeiros e Albuquerque recebe crítica sarcástica, publicada no Jornal do Brasil, na forma de uma carta a Machado de Assis:
Meu karu Maxadu Dasis.
Não temus estado juntus, á muintus meses, i konpletamente ignoru kual a tua maneira de pensar a respeitu da nova reforma ortografica, de invenção du Medeiros Albukerke. Não axas tu ke para uma revolusão é muito pôku, i para uma desorden já é demais?
Á, nu ke vai fazendu a Akademia, grande falta de lojica. Vêjase, por exenplu, akilu du agá! Não u admite nu meiu das palavras, i todavia u tolera nu principiu dalgumas. Ô u agá é bom, ô é mau. Si é bon, kontinúe a viver onde ker ke seja; si é mau, suprima-se de todu.
Era o que Laet chamava, com seu espírito debochado, de “fonetismo jacobino”. Graças à sua lucidez — e à de vários outros —, a reforma não vingou.
Ao criticar o futurismo de Marinetti, faz não só exercício de futurologia, mas de perfeita vidência:
Eu não conheço o Sr. Marinetti; mas entendo que, se leva a peito a sua propaganda, só tem um caminho a seguir: tome um transatlântico e venha cá ao Brasil fazer conferências. Este conselho de um desconhecido poderá parecer exorbitante das boas normas: mas eu lho dou, ao já ilustre propagandista, com espírito de simpatia e para o bem dele e da sua novidade.
Realmente, não conheço país em que mais probabilidades de ótimo êxito se lhe possam deparar. Direi mais, sem contudo, nem de leve, apoucar a originalidade do Sr. Marinetti: nós, os brasileiros, somos os genuínos precursores de sua filosofia.
Há vinte anos, seguramente, não fazemos senão rasgar e queimar a História. Pode-se dizer que os anais destes últimos quatro lustros nada mais são do que um imenso auto de fé, em que arde a tradição. Venha para cá o Sr. Marinetti e, em vez de recalcitrantes discutidores, achará cordatos discípulos e talvez mesmo provados mestres.
Dezesseis anos depois, em 1926, o fascista Filippo Tommaso Marinetti chegava ao Brasil, aclamado por um séquito de intelectuais babões e triunfalmente apresentado por Graça Aranha no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Laet estava certo: “[…] O marinetismo já entre nós tinha adeptos antes de brotar o Sr. Marinetti”.
A relação de Carlos de Laet com Graça Aranha foi marcada por zombarias. Em 1924, o autor de Canaã envia um telegrama cifrado, anunciando o início da Revolução Paulista: “Tumor mole virá a furo esta noite”. A polícia, no entanto, não tem dificuldade para decifrar a mensagem explícita e prende o escritor. É a inspiração perfeita para Laet, que destila acidez:
O Aranha publicou um livro simbólico, Canaã, que ninguém compreendeu… Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo decifrou. Obscuro, quando quer a claridade; diáfano, quando busca o mistério. Que estilista!
Não satisfeito, ainda compõe um soneto em que faz dupla crítica, pois aproveita o telegrama funesto para ridicularizar o estilo telegráfico de Marinetti, então já imitado pelos modernistas:
Noite. Calor. Concerto nos telhados.
Cubos esferoidais. Gatas e gatos.
Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos.
Melindrosas. Poetas assanhados.
Rabanetes azuis. Sóis encarnados.
Comida no alguidar. Cuspo nos pratos.
Três rondas a cavalo. Mil boatos.
Prosa sesquipedal. Tropos safados.
Avenida deserta. Bondes. Grama.
Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló.
Carros de irrigação. Salpicos. Lama.
Vacas magras. Esfinge. Triste. Só.
Tumor mole. São Paulo. Telegrama.
Dois secretas. Cubismo. Xilindró.
Em 1926, numa crônica publicada em O Jornal, Laet ataca novamente. Relembra o telegrama e usa rimas, a fim de criticar a poesia modernista, que “planeia o verso” e, na verdade, escreve prosa:
Meu querido Graça Aranha — Para mitigar saudades, traço esta carta poética. Não é potoca ou patranha: são velhuscas novidades, sem respeito à tua estética.
Grafo seguido o meu verso; mas, lido com certo jeito, canta a rima sonorosa. Tua escola faz o inverso: calcando norma e preceito, planeia o verso e sai prosa.
[…]
Tudo, Aranha, aqui te chama. Ingratos os que se ausentam! Volta, surge sem detença. (Não te espeço telegrama, porque os tumores rebentam quando a gente menos pensa.)
Mando um abraço apertado à tua grei futurista. Beija a mão do Marinetti, que deve andar espantado. Teu confrade passadista, e sempre amigo, Laet.
Imaginando os ensinamentos de um Catecismo revolucionário, Carlos de Laet cria definições perfeitas, sábias, adequadas a todos os tempos — e segue a forma clássica dos antigos catecismos católicos, com perguntas e respostas. Questionado sobre o que é a igualdade, o revolucionário responde:
O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das três dimensões. Adoramos o largo e o chato.
Quanto à liberdade, depois de muito hesitar, o personagem conclui:
É a licença de fazer cada qual o que bem lhe pareça, contanto que não vá contra o que instituímos.
Mas a melhor resposta — resumo do que são revoluções, golpes e governos que se autoproclamam renovadores — irrompe quando o interlocutor sugere a possibilidade de ocorrer relutância em alguns setores da sociedade:
Em verdade assim pode acontecer; mas para que tal não suceda, deve-se proceder com a devida cautela. Sonda-se a opinião; contra os cobardes, que são a maioria, emprega-se o terror; dão-se gorjetas aos venais, acena-se aos ávidos com o quinhão do confisco.
Agripino Grieco estava certo quando definiu Laet como o “‘não’ eterno” que “nunca se deixou açaimar pelas cédulas do tesouro”. Suas polêmicas — com Camilo Castelo Branco, João Ribeiro, Jackson de Figueiredo e outros —, também reunidas em volume publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, estão repletas de inteligência e liberdade incomparáveis, difíceis de encontrar neste reinado do populismo em que se transformou o Brasil. Laet tem o dom raro de condensar, por meio do gracejo ou do deboche, as diversas formas do ridículo. Ao ler seus textos, rimos ou choramos, dos outros ou de nós mesmos — e só ignorantes ou deslumbrados insistem na indiferença.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, João do Rio e A correspondência de uma estação de cura.