Saída à russa

Paulo Polzonoff Jr. desiste da crítica literária. Eis sua despedida do "Rascunho"
Paulo Polzonoff Jr.: crônicas divertidas, reveladoras e corretamente escritas.
01/05/2004

Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade.
(Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão)

Este é meu texto de despedida. Já há alguns meses venho ensaiando uma retirada, mas nunca a vontade foi tão grande como agora. Relutei, contornei a idéia como pude. Primeiro, pensei em fazer apenas entrevistas internacionais, mas não deu certo. Depois pensei em apenas fazer entrevistas com pessoas daqui mesmo do Brasil. Não deu certo. Houve noites em que simplesmente pensei em não parar, mas esta idéia tampouco vingou. É hora de me despedir.

Curioso é que nunca disse “adeus”. Nunca me deram oportunidade ou eu não quis. De qualquer forma, acho que as pessoas só dizem mesmo “adeus” em dramalhões mexicanos. A gente diz “tchau”, que pode ou não ser sincero. Como tudo o que sempre escrevi, o meu “tchau” é sincero. Gostaria de pensar que posso substituí-lo por um “até logo”, mas não tenho domínio do tempo. Ainda bem.

Você deve estar se perguntando por quê, não é mesmo? Talvez tenha um sorriso e um brilho nos olhos, talvez não. Não tenho mesmo a menor idéia do alcance de minhas palavras, só pistas. E as pistas que me deram nos últimos anos me fazem prever dicotomias até na despedida. Para alguns, alívio, para outros, nem tanto. Obrigado por perguntar: para mim, certamente é um alívio.

Não que tenha sido um fardo, nada disso. Escrever para o Rascunho foi divertido desde o primeiro número. Outro dia achei em meus arquivos o texto sobre o romance Lúcia, de Gustavo Bernardo, meu primeiro texto publicado aqui. Não me reconheci nele, como sempre acontece quando leio textos antigos.

Gosto de me lembrar do dia em que fui convidado a preencher estas páginas. Mesmo que meu amigo Rogério Pereira fique encabulado, digo: naquele dia ele me deu esperança. A palavrinha é piegas, eu sei, mas não tem outra. Esperança. Vislumbrei no Rascunho a possibilidade de escrever o que eu queria, livremente. De rir e fazer rir, de chorar, às vezes. E, sobretudo, de conversar com o leitor sobre algo que eu adorava: livros.

O curioso é que, passados quatro anos, despeço-me agora justamente porque quero ser apenas um leitor. Mais um leitor. Quando olho para trás, percebo que alguma coisa se perdeu e eu quero resgatar isso. Sei que é impossível mergulhar novamente na inocência daquele menino de 12 anos que, de madrugada, se entusiasmava com as tentativas de fuga de Papillon, enquanto ouvia qualquer coisa no rádio. Mesmo assim, quero uma migalha daquela sensação e, por mais que Heráclito esteja certo até o último fio de cabelo (era careca?), acho que é possível imaginar que uma gotícula daquele rio que me tocou a pele durante a travessia pode, sim, estar lá novamente, anos mais tarde, quando eu o atravessar de retorno.

É uma corrida meio estúpida, esta, atrás de uma gotícula. Muitos podem achar que é exagero. Ora, mas a esta altura aqueles que me lêem sabem que sou dado ao exagero e, mais do que isso, sou dado a uma concepção barroca do mundo. No contraste é que eu consigo, paradoxalmente, enxergar nuances.

Despeço-me.

Não me desculpo nem me vanglorio. Sou daqueles que jamais se arrependem do erro, porque sabem do quanto é necessário errar para aprender. Aos cinco anos de idade, por exemplo, eu comi um pedaço de sabão. É que o sabão era tão amarelinho que parecia quindim. Ao primeiro descuido da babá, não tive dúvidas e nhac: dei uma mordidona na barra de sabão. Foi assim, veja só, que aprendi que não se deve comer sabão.

Além disso, sei que toda glória é passageira. Como daquela vez em que fui dormir delirando porque fiz um gol, o único da minha carreira futebolística. Posso ver com nitidez, ainda hoje, a bola sendo cruzada da esquerda (ou seria da direita), eu subindo para cabecear, subindo e subindo mais alto de todo mundo, a bola vindo na minha direção, batendo no meu peito (subi demais) e… gol! O único gol do artilheiro Polzonoff. Marcado num terreno baldio em desnível e sem comemoração alguma porque os meninos achavam (com razão) que foi pura sorte. Tenho cá para mim que o gol foi um milagre. Eu jamais conseguiria pular tão alto daquele jeito.

Não acho o que fiz relevante nem tampouco desprezível. A gente tem esta mania de se imaginar como Deus. Não tem? Então deve ser megalomania minha mesmo. Por vezes olho para o mundo como se ele fosse uma folha aberta sobre a mesa e as pessoas fossem bonequinhos de plástico. Basta um espirro para que tudo mude. Se eu tropeçar na mesa, um terremoto mata milhões no Irã. Se eu movimentar este bonequinho daqui, ó, para perto deste, quem sabe não surja um amor para sempre? Ora, mas nem sempre penso que sou Deus. Quase nunca. Somente quando termino de tomar dois litros de sorvete de flocos é que tenho este tipo de delírio. Com as palavras, é pior ainda. Se algo que escrevo é relevante, geralmente o é somente pela incompreensão a que se submete sempre, na apreciação dos outros.

Bah, não me levem a sério.

É tentador, por outro lado, achar que o que se escreve não tem valor algum. Nenhum, nenhum, nenhum. Mas esta é uma doença da qual eu não chego nem perto. Se por um lado tudo é mesmo efêmero, por outro também tudo tem um porquê. Não, não sou dado a crer em destinos, maktubs ou coisa que o valha. Cego-me, apenas, para a estridente desimportância das coisas ditas e escritas. Houve já, claro, momentos que julguei eternos. Mas hoje eles sobrevivem somente a muito custo na lembrança. Sabe aquele dia que você pensa ser o derradeiro, o definitivo? Pois bem. No outro dia você acorda e, para a sua surpresa, absolutamente nada mudou, a não ser por aquela espinha ali, bem embaixo do seu queixo.

Vou-me embora. Raduan Nassar já fez isso uma vez, lembram? Foi criar galinhas no interior de São Paulo. Se eu tivesse uma granja, faria o mesmo, sem peso na consciência algum. De todos os animais, a galinha é o que mais me irrita por sua inutilidade, a não ser, lógico, para virar comida. Nunca vi ninguém que recebesse um afago de um frango ou uma bicada carinhosa de um galo dengoso. A galinha foi feita para ter seu pescoço torcido. Mas eu divago — nem tenho uma granja nem sou capaz de matar ave qualquer. Vou-me embora, pois, sem a vocação de Raduan Nassar para a avicultura ou para o romance neoexistencialista. Se eu pudesse, faria as pessoas rir e chorar, não dormir. Que o mundo está cheio de sono.

Minha ida é um caminho de volta. Virei à esquerda na bifurcação há quatro anos e esse desvio foi o fim de uma relação de ingenuidade com a literatura, que eu pretendo reviver, nem que para isso gaste todos os 100 anos que me restam. Meu Céu é poder abrir um livro e não pensar nas falcatruas do autor e editor, nem tampouco ter de expor uma opinião sobre isso, ah, tomar uma água de coco, comer um queijo coalho, mergulhar em Parati sem ter de escutar as vozes por detrás das letras, os homens por detrás da obra, sem ter de ver pessoas fazendo rapapés inimagináveis para conseguir um segundinho de glória. Não vai demorar 100 anos. Isso já começou a acontecer e os livros tornaram a adquirir aquela aura de sacralidade de antigamente. Quero ter fé novamente sem me ater ao que acontece entre os coroinhas na sacristia.

Bem, mas já vou indo. A gente se vê por aí. Tenho de me apressar. A mulher já está me chamando na cozinha. Hoje o jantar é por minha conta. Tchau ou adeus.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho