Sagrações do cotidiano

Resenha do livro "O desterro dos mortos", de Aleilton Fonseca
Aleilton Fonseca, autor de “O desterro dos mortos”
01/03/2002

O desterro dos mortos, novo livro de contos de Aleilton Fonseca, aponta para duas direções: a tradição literária e o registro das particularidades do cotidiano, isto é, a atemporalidade/atualidade da obra literária e o seu estar atenta aos acontecimentos da vida. Com relação à primeira questão, o livro encarna o verbo anteriormente proferido por T.S. Eliot, quando, nos ensaios de doutrina crítica, afirma que o escritor novo cria o seu próprio precursor e, ao criá-lo, perpetua-o. Desse modo, os poetas antigos permanecem vivos pela fala dos novos que os reencenam, evitando, assim, que quedem na senda do esquecimento.

Este fato verifica-se logo no conto de abertura, Nhô Guimarães, quando o autor deixa à mostra a sua intenção de entabular um diálogo com o escritor mineiro Guimarães Rosa. De forma franca, Aleilton Fonseca coloca-se como o seu leitor ideal porque, ao recifrar o texto rosiano, encena-lhe uma biografia nascida da própria obra. Observe-se que o vocativo “Nhô” atribuído a Rosa, é, entre nós, um tratamento direcionado àquele que pode ser o mais velho, ou o mais sábio ou o mais poderoso, enfim, aquele que, ajuntando um desses três adjetivos, está acima ou anterior ao que o evoca. Entendemos ser esta, também, uma forma que Aleilton encontrou para reconhecer e referendar a soberania daquele que, nesta obra, escolheu para seu precursor. Nessa altura, o conto do autor baiano valida, mais uma vez, o veredicto de Octavio Paz (1982), quando sabiamente afirma que o poeta não precisa possuir uma biografia que não a sua obra, pois que é esta a sua biografia.

Esta coletânea ressalta-se também pela maneira destra com que o autor se apodera de flashes, novos e velhos, da vida cotidiana, que inquietam o homem moderno, tais como: as desavenças amorosas; a exigüidade de tempo dedicado à família; a tradição e a herança do relato oral; a morte; a morte solitária nas UTIs; a intolerância com o diferente e a consciência dessa intolerância; a metáfora e a falta paterna; a existência inexorável da mãe; as reminiscências da infância e o próprio fazer literário, dentre outros. E é a mesma palavra que compõe o título: desterro, e que aponta para reflexões sobre a tradição literária, que se transforma em crítica severa aos protocolos sociais do homem moderno que abre mão da sua dignidade, tanto para nascer, como para envelhecer e morrer.

Assim, infere-se, ganha-se e perde-se com a forma de viver moderna. Ganha-se em objetividade, velocidade e perdem-se em trocas afetivas, em experiências contidas nos relatos de velhos, invólucros de sabedoria, pondo-se em risco a biografia familiar e a sua história. E é nesta altura que este autor resgata Walter Benjamin, quando da advertência de que o homem moderno ficaria mudo ao raconto, pois uma vez falto de histórias, entraria em falência o ato de narrar, pois que as “lições de moral” já não mais teriam lugar em uma sociedade tecnicista. Essas fatalidades, que compõem o elenco dos males do homem moderno, são dramaticamente destacadas em um misto de lamento, crítica, advertência e censura, principalmente no conto que empresta o nome à coletânea. E ao trazer para a letra poética as particularidades de que se compõe o cotidiano, estes eventos passam de factual a poético, ganhando, a um só tempo, estatuto de atemporalidade, de poesia.

Enfim, O desterro dos mortos logra reencenar, por uma espécie de recherche au temps perdu, as narrativas orais que pertencem a tempo e imaginário pessoal e coletivo, pois que seu autor o escreveu não apenas com a sua mão, mas com a daqueles que o precederam e compõem as vozes do seu repertório. Assim, acreditamos, soube o escritor baiano, através do mais fino tirocínio poético, tecer a mesma história valendo-se de palavras que se insinuaram nos desvãos do narrado. Estas novas estórias, tão bem e oportunamente contadas, podem se traduzir nas “Segundas estórias”, aquelas que ainda quedam tácitas à espera de quem as saiba ouvir e recontar, à espera de um escritor que, como o narrador do conto O avô e o rio, carregue um carrinho cheio de palavras com as quais saberá retomar, recortar, fiar e tecer o rumo das estórias e garantir o legado da decifração poética.

O desterro dos mortos
Aleilton Fonseca
Relume Dumará
121 págs.
Évila de Oliveira Reis Santana

É professora de Teoria da Literatura da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana.

Rascunho