O escritor paulista José Roberto Torero fala pouco, é tímido e detesta posar para fotos. Não fosse por estes três pequenos e desculpáveis defeitos (ou virtudes), comuns à grande maioria dos mortais, hoje, com certeza, Torero estaria falando muito, teria que driblar a timidez e posar para muitas fotos. Parece lógico, mas não é só isso. Torero é uma das maiores revelações da literatura brasileira nos últimos anos, mas poucos conterrâneos seus sabem disso. Aqueles três simples defeitos deste jovem autor, nascido em Santos há 36 anos, o impedem de utilizar com mais eficácia o marketing, a ferramenta que transformou seres como Paulo Coelho, Jô Soares, Lair Ribeiro etc, em popstars do mercado de livros (?) no Brasil.
Felizmente, parece que este cenário está se alterando. Ano passado, Torero trocou a editora Companhia das Letras pela Objetiva e mudou um pouco de atitude. Já está posando para fotos (nas quais está bem “bonitinho”, segundo uma prima) como as que ilustram as contracapas internas do relançamento de O Chalaça (Companhia das Letras, 1995?; Objetiva, 226págs., 1999) e de Ira — Xadrez, Truco e Outras Guerras (Objetiva, 183 págs., 1999), romance da coleção Plenos Pecados que marcou sua estréia na nova editora. Torero continua tímido, falando pouco e não permitiu sua foto em Terra Papagalli (189 págs.), escrito em parceria com Marcus Aurelius Pimenta e também relançado pela Objetiva neste ano, mas a mudança de editora já está surtindo bons efeitos.
Com Ira…, Torero entrou no circuito, digamos, pop da literatura. A coleção Plenos Pecados foi um sucesso. O romance de Torero acompanhou a média distância o ranking de vendas dos consagrados Luis Fernando Verissimo, com O Clube dos Anjos (Gula), e João Ubaldo Ribeiro, que escreveu sobre a Lúxuria em A Casa dos Budas Ditosos. A liderança de Ribeiro e Verissimo nas vendas da coleção que disseca os sete pecados capitais não é surpresa. Verissimo é Verissimo. Fez o que se esperava de um tarimbado escritor de texto leve, enxuto e muito bom humor. Foi o que melhor transpôs para o papel o pecado que lhe foi encomendado, sem necessariamente ter de explicitar isso no enredo de O Clube dos Anjos.
Ubaldo Ribeiro, o grande campeão dos sete pecados, pelo menos nas vendas, ostenta uma conquista imerecida. Seu livro é repetitivo a cada virada de página. São 200 delas carregadas de lascívia barata e escrita às pressas. Mas Ubaldo Ribeiro representa a normalidade da literatura neste tipo de projeto, com livros encomendados, um tema imposto e o pouco tempo para executá-lo. Verissimo e Torero foram as exceções neste caso, com obras muito melhores que as encomendas.
Mas Ubaldo Ribeiro tem o que falta a Torero, a exploração do marketing pessoal. Ele aparece muito na mídia, fala abertamente de seus problemas com a bebida e recebe milhares de reais em compaixão na venda de seus livros, que desde Viva o Povo Brasileiro (Nova Fronteira, 1984) não têm um rumo definido e a qualidade tem os altos e baixos de uma montanha-russa.
Torero foi a grata surpresa da coleção. Xadrez, Truco e Outras guerras é um livro divertidíssimo, com um texto ágil, claro e totalmente irreverente. Apesar de jovem, as atividades intensas de Torero no campo cultural desembocaram num escritor de primeira linha. A clareza ele foi buscar no jornalismo (?), sua profissão de berço (ainda hoje escreve artigos esportivos para Folha de São Paulo). A agilidade veio com suas incursões pelo cinema. Torero dirigiu e escreveu alguns curtas-metragens e foi roteirista de longas como A Felicidade É e Pequeno Dicionário Amoroso (transformado em livro de verbetes, Objetiva, 1997).
Apesar de já ser um autor premiado (ganhou o Jabuti em 1995, com O Chalaça) foi com os devaneios sobre a ira que Torero conquistou seu espaço nas prateleiras Brasil afora. Claramente inspirado na Guerra do Paraguai, Xadrez… mostra não só a ira, mas as contradições entre a alegria da vitória e a amargura da derrota numa guerra cujo sentido maior é a vaidade de cada um, do soldado raso ao rei. O roteirista Torero revela que, além das imagens contundentes que uma guerra rende nas telas do cinema, a vida não pára durante o combate. Enquanto aperta o gatilho do fuzil sem pensar para matar, o soldado não consegue afastar do raciocínio a continuidade da vida, do amor, do sexo, da saudade, da pausa para o almoço, do barbear pela manhã. Torero colocou vida entre as mortes da guerra, algo que talvez só seja possível por meio da literatura (leia-se talento do romancista).
A participação de Torero nos Plenos Pecados serviu para confirmar a maestria com que usa seu maior recurso literário, a irreverência profunda. Este artifício recheia o texto, encanta, surpreende, causa prazer e indignação, mas, assim como faz parte de truco e de outras guerras, faz parte da vida. A irreverência de Torero é diferente do humor de Verissimo. Provavelmente a irreverência seja realmente diferente do humor em todos os casos, e talvez seja isso que a literatura de Torero venha nos revelar. O texto de Verissimo é ótimo, mas previsível. O seu bom humor agrada tanto que já se espera por ele a medida que suas histórias vão chegando ao fim.
A irreverência de Torero é mantida oculta e surge quando menos se espera. Ele brinca com o leitor, carrega suas emoções por trincheiras seguras e reflexivas e, de repente, o faz pisar numa mina, embaralhando as cartas e os pensamentos, levando a uma irreverente conclusão de que a conclusão é inconclusiva, ou puro blefe. O trecho da página 136, no capítulo O Circo, em que o Soldado, após um combate, encontra o Sargento no hospital, muito sujo de sangue e com uma perna de menos, é a síntese da(s) obra(s) de Torero:
– Custa uma moeda, Soldado.
– O quê?
– O espetáculo. Ou pensa que pode entrar no circo sem pagar?
– Pelo menos o senhor está vivo. Um braço faria mais falta.
– Podia ter pedido as orelhas, assim não tinha que escutar esse consolo estúpido.
– Não sei o que dizer.
– Diga que economizarei sapatos ou que um par de meias vai durar o dobro do tempo.
– Eu não faria piada com sua perna.
– É só para isso que ela serve agora.
A montagem desse diálogo é a característica marcante da obra de José Roberto Torero, costurando em zig-zag o humor e a dor, na suprema irreverência. Note-se que este trecho, em que não fala na ira, é uma das partes do livro em que ela mais está presente, na angústia e na revolta do sargento que perde a perna. Salienta-se isto para apontar a única falha de Torero nesta obra. Por diversas vezes ele fala na ira, explicando-a, como que tentando justificar seu livro e mostrar ao leitor que cumpriu a encomenda. Esforço desnecessário, que desmerece seu talento e coloca em dúvida a capacidade (e a curiosidade) do leitor em explorar os meandros de seu texto. Torero não precisa de subterfúgios para ser lido. Ele escreve tão bem, mas de maneira tão simples e clara (como se isso fosse fácil), que conquista leitores à primeira leitura. Minha prima, aquela que achou ele bonitinho, nunca lera nada na vida e se encantou com Truco… Acabou o livro em um dia e quer mais Torero. Também pede-me a indicação de outros bons autores. Torero nem deve imaginar, mas ele está fazendo leitores.
Passei para a prima Terra Papagalli e ela já se diz apaixonada por Torero. Eu apaixonei-me pelo livro. Ele é irreverente na primeira linha. O agradecimento é feito aos dentes do autor, feitos para sorrir às senhoras, arrancar as rolhas das garrafas, morder os inimigos e rasgar a carne, enfim, para viver e sobreviver.
Torero parece que pressentiu que um dia estaria na coleção Plenos Pecados. O subtítulo de Terra Papagalli, publicado pela primeira vez em 1997 é narração para preguiçosos leitores da luxuriosa, irada, soberba, invejável, cobiçada e gulosa história do primeiro rei do Brasil.
A história deste primeiro rei, Cosme Fernandes, é mais ou menos aquela que todos brasileiros imaginam da colonização de seu país, mas que até hoje ninguém contou direito, ou pelo menos com tanta irreverência como Torero e o jornalista Marcus Aurelius Pimenta.
Cosme Fernandes, um ex-seminarista, foi condenado ao degredo porque deflorou uma jovem. Foi condenado porque confessou-se por engano, quando os padres o inquiriam sobre quem havia comido uma rosquinha. Cosme e outros degredados foram obrigados a embarcar para as Índias na caravela de Pedro Álvares Cabral. No meio do caminho eles descobrem o Brasil por acaso e Cosme e mais seis prisioneiros são escolhidos para tomar conta da nova terra. Aliás, foi Cosme que fez a descoberta, quando um soldado, com um pontapé, o mandou subir à cesta da gávea para consertar uma vela rasgada.
A história dos sete amigos na nova terra é provavelmente a mesma que aconteceria a sete malandros que fossem hoje despejados em alguma ilha primitiva com índios inocentes e poligamia legalizada. Um deles Gil Fragoso, logo adota um costume local para aproveitar melhor o casamento múltiplo. Usa uma taturana para queimar o pênis e provocar inchamento. Outro degredado, João Ramalho, diz que aquele é o melhor dos lugares, pois não paga aluguel, impostos, dízimos, não precisa ir à missa, vestir-se ou ser fiel à mulher.
Em Terra Papagalli, os autores aproveitam ao máximo para difundir sua filosofia irreverente. O romance fala do descobrimento do Brasil, mas é atualíssimo, talvez perene, como tradutor crítico das relações humanas. Os autores disfarçam a acidez de articulistas na construção literária. Eles dizem que com os índios varumbis aprendemos que, se quisermos ter muitos amigos, não devemos ter perfeitos ouvidos.
A prova disso está no próprio romance, quando o paraíso dos amigos na terra dos papagaios começa a ruir a medida que eles descobrem maneiras de enriquecer e ganhar a confiança dos enviados da coroa portuguesa para governar a colônia. Com o conflito entre os amigos, a obra de Torero e Pimenta traz outro ensinamento, desta vez do índio Piquerobi. “Duas coisas fazem o homem feliz: uma é fazer o bem a ele mesmo, outra é fazer o mal a quem ele odeia. Na vingança, fazemos as duas coisas.”
Teoricamente, Torero não deveria precisar de Truco… para ser incluído no rol das grandes nomes da literatura brasileira. O Chalaça e Terra Papagalli foram grandes obras que não tiveram o reconhecimento público que mereciam. O Chalaça ganhou o Jabuti, vendeu razoavelmente bem, mas não o suficiente para trazer Torero ao spotlight da mídia. Para se comparar, há seis anos Torero faz o que Eduardo Bueno está fazendo agora: adaptando a história brasileira em romances muito mais agradáveis que os livros didáticos. Pode-se duvidar de que nem todos os fatos contados por Torero ou Bueno sejam fiéis aos acontecimentos reais, mas, que têm absoluta certeza do que aconteceu no Brasil há, cem, duzentos, ou quinhentos anos?
O grande fato é que Bueno, um jornalista gaúcho chato, esquisito (e feio, segundo eu) virou estrela, ganhou coluna (com foto) na revista Época, entrevista na Playboy e muito, muito dinheiro, com quatro livros freqüentando as listas dos mais vendidos. Torero merece, no mínimo, o mesmo.
Em O Chalaça, Torero fez um trabalho magnífico de historiador. Depois de muitas investigações, encontrou uma tataraneta do conselheiro Francisco Gomes da Silva, secretário particular de D. Pedro I, que lhe vendeu um baú com cartas, bilhetes e parte do diário de Gomes da Silva, com base nos quais o autor montou o romance.
Com a irreverência sutil e a clareza que um romance histórico permite, Torero escreveu uma obra memorável, que de um modo divertidíssimo nos faz recordar e reler sobre os fatos do passado de nosso país. É ímpar na literatura brasileira o trecho em que D. Pedro I proclama a Independência às margens do riacho Ipiranga, onde havia apeado para acalmar as revoluções das vísceras causadas pela costeleta de porco do jantar da noite anterior.
É nesse momento que o autor atualiza seu romance para os dias de hoje e aproveita para evacuar sua própria filosofia. Pela teoria de Torero, no momento da defecação, impurezas desprendem-se do nosso corpo e abre-se um vazio dentro de nós. Esse espaço oco do nosso ser deve ser preenchido com a leitura, trocando uma substância fétida pelo doce aroma do saber.
Para finalizar este texto, faço uso novamente das palavras de Torero, confiando que o leitor saberá avaliar a justeza deste artigo e convencerá aqueles que ainda insistem em manter-se nas trevas, ou simplesmente olhando para paredes ou azulejos ou listas de mais vendidos.