Sabores sem amarras

Resenha do livro "Assim nascem os horizontes", de Jason Carneiro
01/12/2004

Assim nascem os horizontes está aí pra provar que técnica não é amarra. É possível fazer um texto elegante, requintado e, sobretudo, ousado, inovador dentro da formalidade. A poesia permite absolutamente tudo. Nas mãos habilidosas de Jason Carneiro as rimas avançam freqüentemente sobre os limites da genialidade como no texto O homem é um animal inconsolável feito em homenagem a José Saramago. “Chegou o tempo: não Te digo mais./ E estou a sós conTigo e o desconsolo./ Fiz(emos) escolhas e, cego ou tolo,/ cuidei que arbitrava os passos fatais./ És Tu a bater-me agora aos umbrais?/ Cuidei que era só. Se era ou não eras,/ se quis ou quiseste, onde o limite?/ Onde o que podes ou sei nas esferas/ do posso, do sabes…Onde o limite?/ Cuidei que era pó. Verdade ou quimera?/ Onde começas, cá dentro, suspeito./ E sei que me acabo, humano, falível:/ tudo do que me deste foi perfeito,/ nada do que implorei foi-Te possível.” O livro é dividido em três partes. Na primeira, chamada Forasteiro da madrugada, o eu lírico grita com voz de veludo na busca de si mesmo. “Persigo meu oculto féretro./ Movo-me sobre um pântano de adeuses/ e os inimigos usam máscaras de mim” (Pergaminho, p. 27). Em Sob teu signo da manhã, segunda grande divisão do livro, o poeta evoca os signos do amor, o sentimento mais elevado que explode em sensações. “Vi-te, meu Amor, e vi teu milagre./ Vi teu sol de flores ruivas, hipnótico mistério,/ erguer-se dentre os tons de cinza e névoa/ e despedir aurora e sonhos sobre a relva/onde habitamos, nós mortais ermos do brilho/que dos teus pés escapa ao teu caminho” (De um recital de piano, p. 71). Na última parte, Jason se reencontra com Belém, cidade em que morou por três anos e a partir de onde idealiza a terra prometida. É lá que a vida ganha um sentido pleno, sobre as palafitas da Canaã. “O rio sem margens que deste/ ao meu viver esquecido,/ eu levo, Belém. O resto,/ memória dos olhos, prende:/ não parto bem, vou partido.” Ao longo deste livro, o poeta trabalha nas minúcias da poesia, constrói, recria, adiciona sabores e dá ritmo na medida para os que querem um texto fluido, fácil e complexo no mesmo instante. A obra é dedicada à “memória luminosa” de um outro mestre da rima, da elaboração gramatical, da riqueza dos temas: Abgar Renault. Foi para ele que Jason Carneiro lapidou A saudação do peregrino, poema que abre o livro e que demonstra que estes horizontes nascem da inspiração do amor à poesia.

A saudação do peregrino

Poeta, eu vim para buscar-te
à lápide invisível que te oculta
sem te conter — o inútil momento
à humana pretensão de atar o vento

Em pessoa compareço ao teu espírito
e nele vejo a noite, dentro dela um curral,
ali um último boi, uma cidade longe
e um Ford fordejando na descalça rua,
na alegria da manhã seguinte.

A mim poeta, dói-me o que sou.
Doem-me as coisas deste mundo, dói-me saber
da negra solidão que avança sobre os prados
e sobre as casas, e sobre as almas,
e sobre mim. Dói-me o tempo
de estar sem ti num mundo que te esquece
quando era mais que necessário, visceral.
Dói não seres mais. Onde a tua voz
No alvoroço deste mundo (e a estrela,
quem louvará?) Perdido? Ó azáfama infecundo,
a pressa de buscar e ser o quê,
não sei aonde.

Dói-me o que fez de si o mundo. Dói-me dormires
em Sofotulafai, em Tunis, Barbacena,
a tua gráfica velhice, dói-me o medo
conspurcado de certeza que cantaste
de uma morte que, se enfim chegou, pouco pôde contra ti.

Repetir os versos e as lágrimas e os versos:
eis o que posso te dar, Poeta, eis o que faço,
humildemente, a mão buscando a tua,
nos bergantins dos teus velhos sapatos,
no teu chapéu sonhador,
no desvairo, no goivo, no alaúde.

Si je pouvais à peine prendre ta main,
seria hoje centenário, e nenhuma neve
ferveria neste coração que trago e deixo.
(15/04/2001 – Centenário de Abgar Renault)

Assim nascem os horizontes
Jason Carneiro
Ibis Libris
100 págs.
Jeferson de Souza
Rascunho