Sabedoria literária

Memória e poesia são as bases da ficção de Cecilia Prada
Cecilia Prada, autora de “Faróis estrábicos na noite”
01/10/2009

A força da linguagem de Cecilia Prada nasce da memória e da poesia de uma escritora que não faz concessões a exigências mercadológicas, ideológicas ou quaisquer outras ilógicas. Sua linguagem é obsessivamente madura. Não há um conto em Faróis estrábicos na noite que não seja um recorte incisivo da vida, da alucinação que é a experiência criativa, a experiência vital.

Madura no sentido da experiência, da insistência, da coragem. Experiência como jornalista, escritora, mulher. Insistência num projeto artístico consistente, de uma mulher que ousa colocar no papel o que há de mais sagrado e profano no ser e no olhar-ser.

Não se trata de memória linear, embora os textos sejam relativamente lineares. Em todos os contos, temos um enredo básico que, por si só, já dá conta de uma intensidade dramática aguda. Memória e poesia se imprimem ao enredo e o pulverizam, transformando-o em arte genuína, em sabedoria. Sabedoria literária. Quem quiser aprender com um clássico vivo, que leia Faróis estrábicos na noite. Encontrará o resultado da harmonia entre as formas clássicas e modernas.

Cecilia Prada tem sensibilidade, inteligência, perspicácia, rebeldia e delicadeza. Como provar isso tudo? Lendo. Entrando no universo concreto de seus personagens e se espantando com as catástrofes interiores, principalmente femininas, que nos seduzem com seus subterfúgios, suas infelicidades escondidas, não assumidas. Infelicidades geradas no padrão de felicidade das classes médias cristãs.

Classes médias no plural porque, cada vez mais, entendo que mesmo o mais padronizado ambiente ainda permite peculiaridades. Cada um reage à sua maneira a estímulos semelhantes. E alguns reagem violentamente.

É o caso de Cecilia Prada, que, não aceitando as imposições de natureza social e religiosa de seu mundo familiar, optou por ser escritora. Opção que tem um quê de suicida quando o artista é verdadeiro, teimoso, e não se deixa corromper pela vida fácil dos pseudo-artistas, dos que se alardeiam inovadores.

Suicida porque encara as adversidades que a palavra viva gera em si e no mundo ao seu redor. Mundo freqüentemente frio, egoísta, utilitário, que não mede o artista por seu valor intrínseco, mas pelos números que ele pode multiplicar, pelas influências que pode articular.

Suicida porque, não raro, se priva de essencialidades: as oportunidades concretas de sobrevivência. Porque se sujeita à dureza de um mundo regido pela astúcia dos responsáveis pelos meios de disseminação das artes que priorizam interesses mercantis, panelinhas. Enfim, condições essas bem conhecidas de todos nós, às quais nos submetemos ou por falta de energia, ou por insuficiente coragem para sermos transformadores.

Transformadores não utópicos, mas itinerantes, que aproveitam cada espaço e momento para reagir à própria vaidade e bradar: precisamos ser humildes para reconhecer o Outro que é Mais, não por uma diferenciação preconceituosa, mas por um valor que lhe é intrínseco: seja trabalho, talento, coragem, ou tudo isso junto.

Pois para escrever como Cecilia, é preciso tudo isso e mais. É preciso abdicar de uma vida terrena, pomposa e aprisionante.

Os personagens de Cecilia Prada não estão latentes ou mortos, mas pulsantes. Suas trajetórias de vida dolorosas nos agridem e nos impelem à reflexão: que tempos são esses? Que lugares são esses? Que gente é essa? Que heróis e mártires são esses?

Jóias
Cito apenas alguns contos. Mas não há só um que mereça retoque. Todos são jóias raríssimas. Os caçadores de diamantes que os descubram e os desfrutem.

Trilhas da madrugada é o olhar plangente de uma menina ao mundo que a cerca. A mãe tem duas facetas marcantes: a pianista alegre, de um lado, e a mulher reclusa em casa, obediente ao marido-patrão, de outro. A madrugada é o tempo onde os personagens se revelam. Fatos e olhares são amarrados por uma tensão contínua: a narradora se choca com a própria história e se delata: seu mundo é apavorante.

No conto A grande cerimônia do cinema, a narradora conta suas primeiras experiências cinematográficas como espectadora. Experiências factuais ou imaginárias, únicas e fragmentárias como a vida e a arte.

Este trecho nos dá uma noção da força da artista:

Literatura é também isto: é estímulo só, talvez o melhor conto seja o que não existe, o conto literalmente “inventado”, porque só existe um começo, bem-feito, carregado de atmosfera. O resto é para o leitor completar como quiser; afinal, ele também terá dentro de si manhãs de neblina, memórias de broas de fubá, o cheiro de café da manhã, tios excêntricos — enfim, uma infância.

No conto Olho e serpente, a narradora retrata tempos e momentos da cidade de São Paulo, em particular da Rua Augusta. Os dramas cotidianos da cidade interagem com a mulher solitária e insone. A poesia do caos floresce na escrita: a rua contém o olho que a versa. Olho instigante que a deforma. São párias, olho e rua, nos sentimentos de ausência e pertinência que os dominam.

A linguagem de Cecilia, como não poderia deixar de ser, considerando-se as outras características já citadas acima, é reflexiva. No caso deste conto, isso acontece logo no início, fato que nos pega desprevenidos e nos aturde:

Porque hoje é sábado. É noite de sábado — e meu tempo, outro.

A idéia de que somos dois elementos, mais nada. Estamos reduzidos a isto — ela, eu. Uma rua e uma pessoa. Fluência, ela lá embaixo, barulhenta e destruidora. E eu, ponto convergente, um olho, neste vão de janela. Neste momento final — terei o quê? Minutos, horas, alguns anos? É tudo fim — só me resta descobrir o desenho. Se houver algum.

Faróis estrábicos na noite
Cecilia Prada
Bertrand Brasil
185 págs.
Cecilia Prada
Nasceu em Bragança Paulista (SP). É escritora, dramaturga e jornalista. Já publicou os livros Ponto morto, O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e O país dos homens de gelo, entre outros.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho