Quais são os debates da crítica literária atual? E seus embates? Como pensar a contemporaneidade e o contemporâneo? Estas são algumas perguntas provocadoras do livro O contemporâneo na crítica literária, organizado pela professora e pesquisadora Susana Scramim. Seu desafio, portanto, é incitar a reflexão sobre o papel da crítica diante da arte e, sobretudo, da sociedade contemporânea.
O que está em questão é uma prática — ou práticas — do fazer da crítica literária. Já nos anos 1960, nas páginas da revista Tel Quel, Michel Foucault afirmava: “A literatura começa quando […] o livro não é mais o espaço onde a palavra adquire a figura (figuras de estilo, de retórica e de linguagem), mas o lugar onde os livros são retomados e consumidos: lugar sem lugar, pois abriga todos os livros passados neste impossível ‘volume’ […]”. Um lugar sem lugar, como a ação de fechar os olhos para aí sim ver: “Fecha os olhos e vê”, nas palavras do Ulysses de Joyce. Ver num vazio — é este, o vazio, o elemento potencial de percursos a serem trilhados, a serem (re)descobertos.
Rumor, ruído de coisas que se deslocam. A palavra poética é rumorosa; ela é por si só deslocada, arrancada às vezes violentamente, passa a ter outras vestes e roupagens. A palavra é levada ao seu próprio limite, não é mais soberana na arte da representação, uma “expressão certeira”, mas paira e se movimenta num terreno móvel, fluido. Roupagens e vestes, camadas de panos, tecidos — o texto é uma tessitura — que se entrelaçam, relatos, articulações que se entrecruzam, dobras e mais dobras. Enfim, um jogo de espelhos que tem e não tem limites.
Qual seria, então, a forma para a crítica literária ou para o campo literário? Talvez as fórmulas possíveis por excelência seriam não-fórmulas, como o escrivão de Bartleby, de Herman Melville, que a todo instante desconcerta os sistemas enquadrados na lógica dos pressupostos (para pensar em Deleuze). Infelizmente, não há uma receita a ser seguida. A era das prescrições parece não mais se sustentar num momento em que se fala de pós-disciplina ou pós-crítica.
Fraturas
No primeiro texto da coletânea, essa problemática vem à tona nas palavras cortantes de Raúl Antelo: “Se não há fórmula de saber, o não-saber consiste apenas numa aventura aleatória que não se reduz à soma de dois termos complementares, sujeito e objeto de saber, porque o suplemento nomeia, a rigor, a impossibilidade de considerar ambas as instâncias como unidade coesa e impede até mesmo de considerar nenhum dos dois como um”. Dentro da área de Letras os posicionamentos e textos de Antelo são conhecidos. Podemos concordar ou discordar dos posicionamentos e leituras do crítico, mas é significativa a fratura que ele deixa em seu leitor.
Pensando o campo do comparativismo, ou melhor, da (In)disciplina Literatura Comparada, Eneida Maria de Souza questiona concepções e práticas nos departamentos de literatura: “A razão das controvérsias reside na concepção ainda moderna e pré-globalizada que impera nos departamentos de letras, impedindo o avanço da discussão em torno da comparada. Quanto mais se expande o conceito e a prática da transdiciplinariedade e da transnacionalização da literatura, menos se verifica uma atitude coerente da crítica comparada e literária diante desses critérios”. A retomada da centralidade dos Estudos Literários para a Literatura Comparada foi a proposta do XII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), realizado na Universidade Federal do Paraná em 2011. Aqui, poderíamos perguntar: o que significa essa centralidade dos Estudos Literários? Seria perceber e pensar a literatura sem considerar as tensões implícitas nela? Seria pensar na fita da máquina de escrever ignorando todas as marcas visíveis/invisíveis ali contidas? Há performance(s) na crítica que não pode(m) ser deixada(s) de lado, há uma ética e uma estética.
Movimento contínuo
Logo no prefácio assinado pela organizadora do volume, é dada uma definição de “contemporâneo” a partir de um conhecido ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben: “aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”; escuro que pode promover a visão, para retomar o trecho já citado de Ulysses. Contemporâneo, para o filósofo, implica justamente uma relação com o próprio tempo que perpassa pelo anacronismo, uma relação complexa de adesão e distanciamento. Um eterno deslocar-se. Mas, há ainda uma definição mais enigmática: “[contemporâneo é] ser pontual num compromisso ao qual só se pode faltar”.
O contemporâneo na crítica literária traz também textos de Roberto Acízelo, com um detalhado e minucioso panorama do campo literário no século 19 por meio da figura de José Veríssimo; de Alberto Pucheu, que apresenta uma tese bastante contundente ao repensar algumas colocações de Antonio Candido em relação ao espaço ocupado pela crítica literária; além dos demais colaboradores. O pensamento “poético-crítico-teórico” é o eixo tortuoso que alinhava esses textos-retalhos, que podem parecer desprovidos de uma relação mais evidente. Depois dos dez ensaios que formam as duas primeiras sessões do livro, “Crítica e disciplina” e “Polêmicas críticas”, a terceira parte é apresentada como um testemunho de um seminário de pesquisa realizado em 2010, com o título O trabalho crítico: homenagem a Raúl Antelo.
A aposta dessa reunião de textos, portanto, propõe aos leitores interessados na literatura — críticos, pesquisadores e professores — um gesto. O gesto do movimento contínuo que se revela e se encobre na exploração e em novas articulações. O desassossego, a inquietude, aqui, seriam forças motrizes do pensamento que se apresenta “deslocado” e “descompassado”. Concluo com os versos incisivos de Eugenio Montale: “Não nos peça a palavra que acerte cada lado/ de nosso ânimo informe, e com letras de fogo […]Não nos peça a fórmula que te possa abrir mundos/ e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo […]”.