De volta ao catálogo das editoras faz alguns anos, depois de circular entre leitores brasileiros há pouco mais de um século, o Nobel de Literatura François Mauriac ressurge agora com o romance Nó de víboras, pela José Olympio, que dele também publicou em 2017 O deserto do amor. Interessante ver que esse ressurgimento de Mauriac — que também ganhou nova edição de seu ensaio O Filho do Homem, em 2019, pela Nova Fronteira — coincide com a reaparição nas livrarias de um de seus grandes interlocutores literários: o mineiro Lúcio Cardoso, igualmente exímio criador de atmosferas psicológicas com implicações sobrenaturais.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, outro célebre leitor de Mauriac, tradutor de Thérèse Desqueyroux (romance de 1927, publicado no Brasil em 2002 pela extinta Cosac & Naify), foi à alma dessa literatura ao observar que, “não jogasse tanto com a presença (invisível, mas palpitante à distância, em seus livros) de um poder divino, tais livros seriam simplesmente freudianos. Elimine-se esse dado oculto e surgirão os complexos, os recalques, as transferências (…). Mas é preciso contar com a personagem secreta de Mauriac, que dela não prescinde”. Essa presença invisível — também na literatura de Lúcio Cardoso — é a que opera viragens espirituais nas personagens e mais: é presença que atua incansavelmente na palavra, revelando sua face oculta, como grandeza escavada do fundo da infâmia.
Dos escritores franceses católicos do século 20, Mauriac tem o privilégio de possuir também entre católicos seus críticos ferozes ou sutis, e de sair sempre em vantagem por soberania literária. Se “é exato que os sentimentos evangélicos não fazem os bons livros”, como também nos lembra (tão pertinentemente) Drummond, e se, no entanto, “os livros de Mauriac (…) só podem ser interpretados à luz deles”, essa conotação religiosa se coloca para o leitor, nele reverberando, por mestria de um romancista. Porque uma verdade emana dessa mestria literária em lidar com a matéria humana, e porque essa matéria humana, para o romancista, está impregnada de um divino oculto, temos aí recolocado o poder perturbador da palavra, também ela portadora de uma face oculta sob as coisas declaradas. Pois é essa face oculta das palavras que se ilumina em Nó de víboras.
Paleta ensombrada
Publicado originalmente em 1932, o romance traz toda a paleta ensombrada que é comum aos livros de Mauriac, o rumor de intrigas atrás das portas, encontros e segredos em jardins enevoados, guerras familiares na surdina, a distância ínvia da incompreensão entre duas almas, o despontar reverso da Graça no meio da miséria. “A honra da família! Eis aí um ídolo para o qual eu não oferecerei nenhum sacrifício”, diz Louis, experiente advogado, personagem que extravasa seu ódio enquanto escreve a carta-testamento que constitui quase todo o romance. A confissão incendiária lembra o punhal de Lúcio Cardoso erguido contra a família mineira (vinte e sete anos depois de Nó de víboras) em Crônica da casa assassinada. A busca pela verdade, num esmiuçar do avesso das tramas de uma história, vai revelando o rastro atormentado do caminho das paixões.
O paralelo com o escritor mineiro é também quanto ao método: uma revelação do avesso de tramas que se dá pela enunciação de um testemunho, como de um depoente, diante não de um júri qualquer mas no juízo final. Esse testemunho, no livro de Mauriac, assume a forma de uma carta venenosa que, no desenrolar da narrativa e sob seu influxo, vai se metamorfoseando num diário de eviscerações dos podres de uma família, e então numa longa confissão. O que há de digno passa pelo infame, o que há de nobre toca o escândalo: é aí que Mauriac desagrada aos impecáveis católicos de domingo, sobrepondo a máscaras piedosas a verdade do que vai na alma e é vil. Eis que nessa revelação reversa um homem avarento esconde um coração sequioso de amor e uma mulher coberta de bons princípios e ave-marias esconde um coração morto.
Em sua última carta à esposa, o homem vai escarafunchando seu coração de pai avarento e marido amargo, até dar com o serpentário da própria casa, sua mulher, seus filhos e consortes. E se um coração que julgam venenoso foi gradativamente sendo envenenado por intrigas, suspeitas, escrúpulos e tudo o mais que rompe com a verdade? “Quando a verdade some a fé naufraga” é um verso da poeta Lucila Nogueira que bem sintetiza aqui o drama do narrador de Nó de víboras. “Eu não teria sido tão desprezado se não tivesse sido tão exposto, tão aberto, tão nu.” Assim se revendo, expurgando seu fel ao expressá-lo, o narrador dessa carta final deflagra seu ataque contra as máscaras de virtude e de grandeza que cobrem corações miseráveis, como a de sua esposa Isabelle, tão pia, tão católica em suas obrigações morais, no entanto tão pouco cristã por dentro.
Antes de rever também aos outros, o advogado olha à sua volta e pela primeira vez sente “a satisfação de ser o menos ruim”. A compreensão que vai gradativamente traindo a intenção de vingança, transformando sentimentos pelo verbo, também acusa as palavras que mascaram.
Será possível, durante quase meio século, só observar um único lado da criatura que convive conosco? Será que fazemos, por hábito, uma seleção de suas palavras e de suas ações, só considerando o que alimenta nossas recriminações e sustenta nossos ressentimentos?
Um velho cético vê a palavra lhe despertar outro de si e seu desespero é o da incomunicabilidade das almas.
Nada difícil entrever no ápice de conversão (ou “despertar”) do narrador a voz do ensaísta de O Filho do Homem: “é preciso atingir o mundo no coração. Estou em busca de quem conquiste essa vitória; e seria preciso que mesmo esse ser fosse o Coração dos corações, o centro ardente do amor. E esse desejo talvez já fosse prece”. A vitória de ser ouvido e compreendido, a vitória de ouvir e acessar o centro de um único ser antes de morrer: o escritor e o cristão Mauriac são um só na alusão aos Evangelhos que se ilumina ao final de Nó de víboras e vem na voz da personagem Janine, neta do homem rico e venenoso, que o vê além das aparências, em sua alma: “onde estava sua riqueza não estava seu coração”.
Força poética
A duradoura ressonância que esse romance é capaz de provocar no leitor, como outros livros de Mauriac, certo que muito deve à sua penetração nas paixões da alma humana, mas tão certo quanto o poder de sua percuciência psíquica é a força poética com que o autor configura e ambienta as ações e emoções de suas personagens. A conhecida “atmosfera Mauriac”, que Drummond menciona em seu prefácio de Thérèse Desqueyroux, tem também sua reverberação na literatura de Lúcio Cardoso. Vale a pena ver de perto, e lado a lado, dois exemplos:
O que me impulsionava era o ímpeto de um ser fragmentado e tumultuoso, qualquer coisa rebelada que eu não podia mais conter, e que atuava como se fosse um tóxico. Esforçando-me para pisar de leve, a fim de impedir que a areia rangesse, internei-me por minha vez entre as sombras das árvores. Creio que havia chovido, de toda parte se elevava um cheiro de flores e de ervas machucadas. [Crônica da casa assassinada]
Aquele jovem ser sofredor, estritamente vigiado por uma família, buscava meu olhar com a mesma inconsciência com que um heliotrópio se volta para o sol. (…) Eu sentia perfeitamente que ela teria rechaçado com repulsa o mais tímido dos gestos. Por isso, ficávamos um perto do outro, à beira daquela cuba imensa onde a futura vindima fermentava no sono das folhas azuladas. [Nó de víboras]
O drama humano, com suas paixões, tem aí feição, perfume, cor, temperatura, e compõe com sombras de jardins, nevoeiros sonoros, brisas que inflam cortinas, vindimas que fermentam, ferocidade de cigarras. Não será mero acaso esses autores ressurgirem ao mesmo tempo para o leitor brasileiro, em novas edições. A verdade que emana dessa atmosfera vem da grande literatura.