Somos pouco informados sobre a infância e o passado do protagonista de Abismo, novo romance do baiano Carlos Ribeiro. Sem nome e “após largar tudo”, ele decide visitar seus tios, que moram em Itaimbezinho, (próximo da Praia Grande e Aparados da Serra, entre o sul de Santa Catarina e Rio Grande do Sul), região conhecida pelos seus cânions. Dias depois, ele recebe uma carta de Ricardo, professor, antropólogo, historiador e colecionador que mora nas redondezas e que conhece seus artigos de jornal, pedindo para lhe visitar. Durante a visita, surge o convite inesperado — para ele descer (sozinho) o cânion, a fim de atender a um “chamado”, encontrar o Santo Graal: “O vaso sagrado em que Jesus bebeu e consagrou o vinho na última ceia e que depois, José de Arimatéia usou para recolher o sangue do seu corpo crucificado, após o ferimento pela lança de um centurião romano”.
A princípio, ele reage negativamente, sobretudo perante a idéia de o cálice estar na fronteira entre o Brasil e a Argentina, mas serão precisos poucos dias para ele viver a aventura: “Através dos Chumashs, alguns frades franciscanos teriam tido contato com o Graal, sem, no entanto, o reconhecerem ou tomarem conhecimento do seu poder. Após um dos inúmeros choques armados entre os índios e os aventureiros brancos, os frades conseguiram escapar e levaram consigo o cálice sagrado. Não se sabe exatamaente como ele teria sido transportado, de missão em missão, até vir parar na Banda Oriental, na fronteira indefinida do Brasil com a Argentina”. A descida ao cânion vai se transformar numa dupla jornada, uma vez que ela vai se confundir com a “descida” ao abismo da sua alma.
O “herói” de Carlos Ribeiro personifica, na verdade, a figura do anti-herói, que representa o homem moderno, atormentado e oprimido por vacilações e questionamentos, movido não mais por uma convicção e crença inabaláveis, mas pela própria fragilidade, por seus anseios e crises interiores. Ao longo de todo o livro, o personagem reage de forma vacilante, reticente, repleto de dúvidas e medos. Ele não vive mais numa era de certezas, de bravura, de um tempo com histórias em que tínhamos a figura do herói estóico, do bravo guerreiro (os filmes bíblicos, vide Ben Hur, são pródigos nesse tipo que, hoje, beiram a caricatura), mas sim um tempo de questionamento contínuo sobre tudo e, principalmente, sobre ele mesmo. Essa é, aliás, uma das principais características que dão ao livro uma formatação mais contemporânea e inovadora, isso porque seu personagem é movido por seus titubeios. Com isso, ou por causa disso, ele vai se sentir impelido a descer o cânion. A sua resistência deve-se em parte a ele perceber que quanto mais descer o cânion, mais estará provando de seus medos e inseguranças. A aventura da sua descida está, assim, diretamente ligada a sua busca por respostas, por uma vida mais plena, livre e digna, associada ao respeito à natureza. Enquanto desce o cânion, ele vai viver também uma descida radical, capaz de levá-lo a sonhos, delírios e reflexões. Assim, o personagem vai descer não por estar movido por um sentimento estóico, mas pela sua sede de autoconhecimento e descoberta, para ele algo decisivo. Ou seja: Ao descer, sabe que o abismo profundo é, na verdade, o abismo da sua alma, em parte impenetrável, indecifrável, mas que o força pela sua ânsia de respostas, algo além de uma mera aventura física.
Bem escrito, o romance pode até ser associado à inesgotável literatura esotérica, “onda” que assola nosso mercado editorial e que disputa com a chamada auto-ajuda, com os sucessos espíritas (vide Zíbia Gaspareto) e com confissões (vide Lya Luft), as prateleiras de nossas livrarias e as listas dos livros mais vendidos, mas ele vai muito além. A associação não é válida porque esta não é a tônica do livro: em nenhum momento o personagem aconselha, serve de guia ou de modelo. De qualquer forma, sua busca está colada a visões, sonhos e reflexões, a uma “verdade” que não dispensa “o chamado”, a magia: “E se aquele companheiro, que agora se insinuava para o interior do círculo mágico da minha experiência, tivesse sido enviado pelos deuses para me defender de algum perigo terrível, lá onde ninguém poderia ouvir os meus gritos? Eu sabia que, naquelas circunstâncias, era fundamental que eu soubesse interpretar os sinais enviados pelo cosmos”.
Mas Abismo alça vôo muito além da chamada literatura esotérica porque a busca do protagonista destoa completamente dos bons (!) livros do ramo. Aliás, essa crença/busca que persegue e atormenta o personagem, apesar de também mística, está mais ligada à razão e às dúvidas que o protagonista carrega consigo no momento em que desce o cânion. Essa “busca mística”, que sua razão não consegue provar, surgem como “provações” e são, justamente, o diferencial do seu livro, senão poderia ser confundido com mais um relato de um jovem que segue uma trilha à cata de aventura. No livro, essa trilha se confunde com a sua vida: ao passo em que desce o cânion, o personagem se vê às voltas com seus questionamentos, seus anseios, fantasmas reais e imaginários. Essa é a principal dualidade, o conflito central que move a história. Ao descer o abismo real, físico, ele vai percorrer este fio da navalha por se deparar com seu próprio abismo, este talvez ainda mais misterioso e perigoso.
Mas a sua busca se é “mística” é, antes, existencial, sendo, portanto, distante d’O alquimista, de Paulo Coelho (a comparação pode surgir talvez devido à caminhada que o personagem neste livro faz a Santiago de Compostela). Como toda ficção, o livro não assume em nenhum momento a pretensão, repito, de aconselhamento, de ajuda e de exemplo a ser seguido, tema, aliás, criticado pelo narrador: “As livrarias estão cheias de livros sobre tiros de iniciação, práticas esotéricas e magia ritual. Na sua maior parte, subliteratura, ou, como o senhor disse: lixo. Uma maneira bastante eficiente de se enriquecer à custa do vasto mercado da credulidade e da ignorância”.
Assim, preferimos ver Abismo como um road book, decerto sem dispensar a “busca interior” que o protagonista realiza. A preferência por essa leitura vem de o cânion estar bem descrito, narrado por alguém que decide enfrentar e ao mesmo tempo procura se harmonizar com a natureza e dela tirar respostas. O teor de aventura se destaca devido a essas descrições, que são cruciais: “eu podia ver o planalto verdejante que se inclinava para baixo, até um ponto onde irrompia um paredão majestoso de basalto negro. Uma trilha ainda menos definida do que o caminho que me trouxera até aqui contornava o maciço de rocha negra e desaparecia em seguida no meio das árvores que já começavam a se fechar numa densa mata.”. Bem como: “Construí minha fogueira com pedras, folhas, gravetos e galhos secos, acendi-a e deixei-me ficar observando as chamas e sentindo-a como um fogo de renovação. Labaredas luminosas faziam dançar as sombras do barranco de pedra ao lado da barraca”.
Conforme o pressuposto de que literatura é, essencialmente, experiência, vê-se que este livro só poderia ser escrito por alguém que conhece bem o assunto, tal é a riqueza de detalhes com que o autor descreve as imagens. Apesar de carregado de simbolismo (terra prometida, etc.), há belas “imagens” e descrições ambientais, como plantas, bichos, insetos, com uma história povoada de lendas, que vão do misticismo ao sobrenatural, da História à religião, da mitologia a remissões pessoais, material, inclusive, que nos fornece pistas sobre a vida, amigos e trabalho do próprio autor, ligado à cobertura jornalística de meio ambiente, o que nos leva a ver seu protagonista também como um provável alter ego seu, que deve ter vivido experiência similar.
O estilo faz o homem, e Carlos Ribeiro sabe disso. Aos 45 anos, jornalista, escritor, professor universitário e mestre em literatura, é autor de livros como O visitante noturno (2000), além de ter participado da coletânea Geração 90: manuscritos de computador, organizado por Nelson de Oliveira. Com Abismo, ele prova que domina o seu ofício e que sabe descrever com precisão os meandros e desvãos por que passa seu personagem.