Rude e maravilhoso

O ensaio Marcha para Oeste, de Cassiano Ricardo, é um diversificado estudo sobre o bandeirismo que dispensa a retórica esnobe
Cassiano Ricardo, autor de “Marcha para Oeste”
27/05/2019

A destacada participação de Cassiano Ricardo na cultura nacional — como poeta e ensaísta, sem esquecer o trabalho nas funções públicas e no jornalismo —, iniciada em 1915, com os poemas reunidos em Dentro da noite, e chegando, em 1970, à quarta edição, revista e ampliada, de Marcha para Oeste, aprofunda a perplexidade de quem, ao esquadrinhar hoje as livrarias, quase nada encontra do autor. Há algo de sinistro num sistema literário que se apressa no rumo do esquecimento, principalmente de um escritor cuja obra, segundo Mário Chamie, revela “a série de pontos-chave que lastreiam os nossos movimentos poéticos”.

A importância de sua prosa não é menor. Soube esmiuçar os embates, não só diplomáticos, que envolveram a Bolívia e o Acre (em O tratado de Petrópolis); conseguiu distanciar-se das estéticas em voga, perscrutar seus problemas — principalmente do Concretismo — e defender a autonomia da crítica, em Algumas reflexões sobre a poética de vanguarda; analisou criteriosamente um dos nossos principais poetas, em O indianismo de Gonçalves Dias; opôs-se ao “sentido contraditório, senão confuso” da expressão “cordial” na obra de Sérgio Buarque de Holanda; defendeu a interdependência entre prosa e poesia no breve, mas instigante, A poesia na técnica do romance; recolocou no centro da história de São Paulo, e do Brasil, a figura do missionário, poeta, indianista e santo José de Anchieta. Não satisfeito, deixou-nos o diversificado estudo a respeito do bandeirismo, Marcha para Oeste, ensaio que investiga causas e consequências das expedições que, penetrando no sertão, do século 16 ao 19, alargaram o território nacional, instituíram uma forma peculiar de governo móbil, promoveram a miscigenação e descobriram veios de riqueza, muitas vezes contrapondo-se aos ditames de Portugal — ou seja, foram muito além do que certa historiografia rasteira, de inspiração marxista, prefere tratar apenas como captura e escravização de índios.

O ensaio, o próprio autor insiste, não trata da marcha para o Oeste, mas para Oeste, “ao início, para um Oeste sem saber até onde”, o que marca o caráter aventuroso da bandeira, obediente, inclusive, ao sinal da geografia: o Tietê, rio que corta o Estado de São Paulo, “dava as costas pro mar e lá se ia embora, rumo a Oeste, como que determinando que o homem fizesse o mesmo”.

Servindo-se dessa linguagem leve, às vezes divertida, sem a retórica esnobe, hermética, de inspiração deleuziana, que polui, de forma crescente, nosso ensaísmo, o autor reconstitui a época, as influências econômicas, sociais, políticas, e o imaginário daqueles personagens: portugueses, índios, espanhóis, negros; religiosos e leigos; degredados e funcionários da Coroa:

Um pormenor curioso: enquanto Aleixo Garcia dava seu passeio saindo de Santa Catarina e indo parar no Peru (1526) o tal Ulrich Schmidel (aquele que visitou os mamelucos de João Ramalho) dava também o seu passeiozinho, saindo de Assunção e vindo parar em S. Vicente (1552). A recíproca era verdadeira e tinha um sentido profético. Queria dizer: assim como vocês podem trazer a linha de Tordesilhas até aos Andes, nós podemos levar o domínio espanhol até o Atlântico e o Brasil não existirá. Eram as pontas de um dilema que só a bandeira poderia ter resolvido com maior eficácia em nosso favor.

Veja-se outro exemplo, em que as dificuldades para subir o chamado “caminho do mar”, do litoral ao planalto, surgem de maneira plástica, bem-humorada:
(…) A subida que eram elas; subia o pessoal agarrando em raiz de árvore, machucando os joelhos em pedra e correndo o risco de rolar pela ribanceira. Ninguém se atrevesse a olhar muito gostosamente para a paisagem que se abria lá embaixo. O perigo puxava a gente e dava tontura, que era um deus-nos-acuda. (…) Parece que o diabo do caminho do mar vivia agarrando padre pela batina. Não era só Frei Gaspar que o increpava de tanto horror. Fernão Cardim não se conteve também, diante da terrível picada. Também dois jesuítas espanhóis que acompanharam os índios trazidos por Antônio Raposo Tavares até S. Paulo, e que escreveram, apesar de os terem admitido os paulistas nessa pretensão absurda, terríveis objurgatórias contra estes, não se esqueceram de referir-se à subida da serra, que praticaram já de volta de Santos, dizendo que era “una cuesta azedisima que por ela no pueden subir cabras montesas sin peligro”.

Mas Cassiano mostra-se perfeito também na síntese. Define em poucas linhas o espírito bandeirante:

(…) Viver naqueles desertões bebendo o leite da ignorância, que lhe fortificava a rudeza; falar tupi, já que o português lhe impossibilita a penetração; ser poeta, embora sem consciência disso mas por acreditar nos mitos, num ambiente de fábula, — são condições necessárias ao homem que vai sertanejar.

E nesta página, que apresenta nova variação de tom, de estilo, resume a saudável desobediência bandeirante, bem como as incoerências seculares que marcam a formação do país:

Não vá, dizia-lhe o padre; e o padre era o primeiro a ir (Anchieta, Nunes de Siqueira, Antônio Raposo, João Álvares). A ir, e até descer índios, conforme a observação documentada dos historiadores.

Não vá, ordenava-lhe a Câmara; e toda a Câmara tinha ido. (Episódio ocorrido com Raposo Tavares).

Não vá; se você for, nós todos iremos também. (Episódio ocorrido com Antônio Nunes Pinto).

Não vá, dizia o procurador dos índios (Fernão Dias) e preparava ele a sua bandeira “à testa de muita gente branca e vermelha”.

Não vá; o ouvidor é quem diz que não vá. E o seu irmão já tinha ido com trezentos homens. (Episódio ocorrido com Nicolau Barreto). (…)

Não vá — ordenava a Coroa, alegando que não convinha avançar tanto pra Oeste a ponto de perturbar a posse castelhana — mas a Coroa, que só se apercebeu da conquista depois desta realizada, foi a primeira a invocar o feito dos bandeirantes quando opôs o seu direito ao de Castela, na fixação das nossas fronteiras territoriais.

Saia dessa posição — dizem el-rei e o Conde de Assumar ao “fronteiro” de M’Boitetu, Pascoal Moreira; e se ele tivesse saído?

Imaginário coletivo
Mas Cassiano Ricardo quer, também, apresentar o “desenho psicossocial” da bandeira, “o mais curioso exemplo de tendências contrárias postas numa só direção” — e investiga, então, o imaginário daqueles desbravadores, daquela gente pobre que, terminada a existência de sacrifícios e aventuras, morre igualmente pobre (dos inventários seiscentistas disponíveis nos arquivos, só 5% deles revelam “alguma abastança”, denotam um final de vida com relativo conforto): que mitos impulsionam as bandeiras? Quais são os “focos de propulsão” que “espicaçam para a aventura”? E como se configuram, na imaginação coletiva, os “focos de atração” que se concentram no “sertão enigmático e fascinante”? O mito transforma-se em realidade cotidiana, familiar; a “imaginação ardentemente associada à ideia de fortuna” é o aguilhão onipresente; mesclam-se a religiosidade do português e o animismo do índio: “Mitos à frente, santos atrás — e lá se vai a bandeira…”. Há o “mito inibidor” — o curupira, a mãe-d’água, o boitatá, o jurupari — e há o “mito instigador”: a “montanha reluzente”, a “serra das esmeraldas”. Um “cria o óbice” — o outro “instiga a caminhada”. Magia e lei da necessidade constroem essa “vis propulsiva”.

O bandeirante acreditou nos mitos. Mas também transformou as narrativas indígenas, criou suas próprias fantasmagorias e suscitou outras, como a “raça de gigantes”, de Saint-Hilaire. E se incumbiu de repelir ao menos dois relatos fantásticos: o das amazonas e o delírio rousseauniano do “bom selvagem” — a lúcida, realista observação de Domingos Jorge Velho a respeito dos índios deve soar como afronta a muitos antropólogos: “Enganam-se os que o querem fazer anjo antes de o fazer homem”.

Publicado em 1940, Marcha para Oeste impõe, aos leitores contemporâneos, dupla interrogação. A primeira, no Capítulo 25: como o homem urbano, “dentro da vida múltipla, simultânea, aglomerada, cheia de conflitos por falta de espaço”, pode recuperar a noção clara daqueles milhares de quilômetros cruzados a pé ou em rústicas canoas?

A segunda, decorrente da anterior, é mais grave: onde estão os grandes romances que tratam do bandeirismo? Por que as façanhas e a tenacidade desses homens não foram incorporadas à literatura? Porque estamos contaminados pelo “anjo da história”, de Walter Benjamin. O cinismo marxista nos condicionou a ver o passado como “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés”, para que acreditemos na solução mágica que a ideologia, só ela, afirma deter. A verdade, contudo, é outra: o extraordinário e o heroico, com seus infinitos matizes, reclamam, sim, magia, mas a literária. Só a literatura pode explicar a complexidade daquelas vidas, agregar ao nosso imaginário erros e acertos daqueles homens, dar concretude aos fatos que, hoje, teses acadêmicas e livros didáticos se incumbem de simplificar com odioso maniqueísmo. Sem o mistério da literatura, a história dos bandeirantes permanecerá presa exatamente onde o marxismo a quer: escrava dos esquematismos sociológicos e das alucinações atuais, em que supostos bons são sempre derrotados e supostos maus sempre prevalecem. Marcha para Oeste escancara o que muitos desejam esquecer: nosso passado, rude e maravilhoso, está, ainda, em busca da literatura.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Ele retomará a série de ensaios na edição de agosto.

Cassiano Ricardo Leite
Nasceu em São José dos Campos (SP), em 27 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 25 de janeiro de 1974. Cursou as faculdades de Direito de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi diretor do jornal A Manhã e mentor de movimentos políticos como “A Bandeira”. Membro da Academia Brasileira de Letras desde 1937. Em 1957, publica suas Poesias completas, reunindo os livros da fase simbolista e parnasiana até a verde-amarela, da “anta”, e posterior. Deu a lume, depois disso, outros livros de poesia, como Montanha russa (1960), A difícil manhã (1960), Jeremias sem chorar (1964) e Os sobreviventes (1971), todos incorporando experimentos formais ao seu lirismo habitual.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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