Rua Grenelle, 7

O melhor de “A elegância do ouriço”, de Muriel Barbery, é a crítica mordaz ao pensamento ocidental
Muriel Barbery, autora de “A elegância do ouriço”
01/09/2008

Bem ali, pertinho de Saint-Sulpice, no coração do Quartier Latin chic, começa uma rua que já abrigou algumas das mais belas residências parisienses. Estes antigos palácios estão hoje transformados em apartamentos, divididos e subdivididos. Alguns se transformaram em charmosos estúdios, alugados a peso de ouro; outros não se repartiram tanto e são hoje apartamentos de grande luxo, com muito mais que os 30 metros quadrados de praxe, abrigando famílias de alto poder aquisitivo. É bem ali na encruzilhada das Ruas Sèvres com Cherche-Midi, e Rue du Four, ou seja, no Carrefour de la Croix Rouge, por onde se entra na Rue do Dragon e se vira à esquerda na rua onde se aloja este ouriço que, vizinho das boutiques de YSL e de Miu-Miu, só podia ser apresentado como elegante.

O prédio em destaque é uma metonímia da Paris capital cultural do mundo, que continua atraindo pessoas de todas as regiões para transmitir seus valores e suas idéias. Os habitantes do edifício construído num passado mais rico e opulento adaptaram-se às novas condições: lêem as coisas certas, estudam, ou estudaram nas escolas apropriadas, ocupam os lugares de destaque na sociedade francesa, mas demonstram que não são os verdadeiros guardiões dessa cultura que é simbolizada pelo mais célebre monumento da rua, a grandiosa fonte das quatro estações – cujo nicho central representa a própria cidade de Paris rodeada pelos rios Sena e Marne – que ocupa a fachada do Museu Maillol, dedicado ao célebre escultor.

Nesse microcosmo parisiense, criado por Muriel Barbery, em A elegância do ouriço, convivem representantes das diversas classes sociais da França, como, por exemplo, os Pallières, no sexto andar: ele um “industrial apressado” da indústria de armamentos; ela, que ignora as regras básicas de gramática mas que faz parte do “comitê de leitura de uma imensa editora” e seu filho, “um cretino de parca verde-garrafa”, que lê Marx sem entender nada. Logo abaixo, no quinto andar, mora a família de Paloma Josse, uma das protagonistas, cujo pai é deputado, ex-ministro, futuro presidente da Câmara; a mãe, apesar de seu doutorado em Letras, só consegue exprimir algumas citações óbvias e a irmã, Colombe, hippie de boutique, se julga a filósofa da família. No quarto andar vive Arthens, o crítico de gastronomia, que já havia aparecido, moribundo, no primeiro romance (Une gourmandise) de Muriel Barbery, e que neste, ao morrer do coração, abre o espaço necessário para a entrada do milionário japonês Kakuro Ozu.

Corroídos
Dividindo o terceiro andar estão os Saint-Nices – representantes da diplomacia – e os Badoises; o segundo andar, também dividido, abriga os Meurisses e os Rosens. Finalmente, há os de Broglies, habitantes do primeiro andar. Todos, sem exceção, ricos, embora alguns, como a senhora Rosen, possam ter nascido num subúrbio, num “conjunto habitacional de escadas sujas”. Há seu desdobramento nas novas gerações, com quatro representantes principais: a jovem veterinária Olympe de Saint-Nice, o rapaz drogado da família Arthens, e as irmãs Josse, opostas como água e vinho. Todos representantes da alta burguesia, bem-educados, mas corroídos, uns pela venalidade política, outros pela cobiça econômica e outros, ainda, pela futilidade de uma vida sem objetivos. Seus discursos e idéias são engessados e suas visões limitadas pelas conveniências. Nada os une, a não ser sua consciência de classe e seu desejo de manter as aparências e seus privilégios. Perturbando essas rígidas estátuas, circulam os animais de estimação que, movidos pelo instinto, estremecem a serenidade e testemunham as incongruências de cada família. E, mantidas em estado de permanente tensão com este grupo, duas trabalhadoras, as quais, em sua dignidade, revelam-se as vestais de uma cultura ameaçada pela vulgarização de um lado e rigidez de outro, ou seja, pela falta de equilíbrio.

As principais personagens do romance de Muriel Barbery – a jovem Paloma e a porteira Renée – têm o hábito de questionar filosoficamente a vida. Renée Michel é a zeladora do prédio, a concierge, que, aos cinqüenta e quatro anos,viúva, baixinha, gordinha e feiosa, esconde uma cultura variada, um espírito de observação agudo e um divertido senso de humor. A propósito de uma leitura de Edmund Husserl, cujo nome ela diz ser apropriado para aspiradores sem saco de papel, ela se pergunta sobre a natureza da consciência humana e sobre a possibilidade do conhecimento e, por incrível que pareça, consegue não apenas explicar a fenomenologia para leigos como ainda fazer-nos rir com sua verve:

É isso a fenomenologia: a “ciência do que aparece à consciência”. Como se passa o dia de um fenomenologista? Ele se levanta, tem consciência de ensaboar no chuveiro um corpo cuja existência é sem fundamento, de engolir o pão com manteiga inexistente, de enfiar roupas que são como parênteses vazios, ir para o escritório e pegar um gato. Pouco se lhe dá que esse gato exista ou não exista e o que ele seja na própria essência…

Autodidata, ela duvida de seu próprio saber “[…] como todos os autodidatas nunca tenho certeza do que compreendi” e por isso “fico parecendo uma velha louca que acredita estar de barriga cheia só porque leu atentamente o cardápio”. Mas também se reconhece como “profeta das elites modernas”, ao perceber que seu ecletismo cultural, sua oscilação entre a cultura dita legítima e a popular é uma característica da modernidade. Escutando um sociólogo apresentar, na France Inter, os resultados de seu estudo sobre a evolução das práticas culturais, ela aprende que as fronteiras entre a “verdadeira” e a “falsa” cultura estão irremediavelmente embaralhadas e que alternar as leituras de Flaubert e de John le Carré, ou escutar uma sinfonia de Mahler seguida de um rap por MC Solar, é considerado, agora, uma prática perfeitamente legítima.

A pequena e angustiada Paloma serve-lhe de contraponto: apaixonada pela cultura japonesa, a menina não apenas lê os versos de Bashô, mas também devora os mangás de Taniguchi. Precoce, se angustia por não encontrar um sentido para a vida: “As pessoas crêem perseguir as estrelas e acabam como peixes-vermelhos num aquário”. Atemorizada com esta perspectiva ela resolve se matar, antes de perder sua sensibilidade.

Aparências
Dividindo a narração do romance com Renée, seus comentários inteligentes e ansiosos são capazes de observar e “diagnosticar”, com ácido desrespeito, os habitantes do edifício. Seguindo, primeiramente, uma rota paralela à de Renée, a jovem, superdotada, também se preocupa em esconder seus dotes e em se demonstrar banal, escondendo-se atrás de uma aparência de mediocridade. Assim como a zeladora, a menina percebe que os habitantes do edifício são incapazes de fazer uma leitura das coisas sob a superfície. Todos se contentam com o supérfluo, com as aparências, e, mesmo quando confrontados com o inesperado, não são capazes de tirar disso nenhuma lição.

Desesperançada com o que vê, a jovem Paloma resolve que vai se suicidar no dia 16 de junho, quando completa 13 anos. Enquanto aguarda, ela mantém dois cadernos: num, anota seus pensamentos profundos, em forma de haicai (hokku) ou de tanka, revelando seu fascínio pela cultura japonesa. Em outro, ela anota o “diário do movimento do mundo”, onde tenta capturar instantes de beleza, como uma colecionadora de vôos de borboletas. Sem saber, ela se encontra cada vez mais próxima do desencanto de Renée, e as duas vão re-viver ao encontrarem com o misterioso e rico japonês, com nome de cineasta, olhos para ver, ouvidos para ouvir e um incrível e inesperado senso de wabi – “uma forma apagada do belo, uma qualidade de requinte mascarada de rusticidade”.

A chegada de Ozu ao edifício da Rua Grenelle 7 vai modificar a existência das duas narradoras. Embora Renée, desde as primeiras páginas do livro, estivesse soltando, ocasionalmente, pistas que poderiam levar à descoberta de seu verdadeiro eu, só Ozu escuta o que ela diz e reconhece a citação da frase inicial de Anna Karenina: “Todas as famílias felizes se parecem, mas as famílias infelizes o são cada uma a seu jeito”. E escutá-la parece ser a chave para desencantar o ouriço em que Renée se disfarça. Essa imagem do ouriço, aliás, é a descrição que a menina Paloma faz da zeladora, sem perceber que está descrevendo a si mesma.

A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.

Esses dois ouriços se aproximam e começam a perder seus espinhos. A mudança interna, de Paloma, vai lhe permitir descobertas que afastarão seus pensamentos suicidas. Sem parar de pensar na morte, ela percebe que suas idéias de suicídio eram coisa de menina rica que desejava parecer interessante; “por mais que eu pensasse nessas últimas semanas que breve ia me suicidar, será que acreditava realmente nisso? Será que a decisão me fazia sentir realmente o significado da palavra nunca? De jeito nenhum. Ela me fazia sentir meu poder de decidir.” Paloma desabrocha, faz amigos na escola, faz amigos no edifício, encontra, finalmente, Renée – uma alma gêmea. Ao mesmo tempo, a zeladora perde seu ar de gata borralheira e floresce. Encontra o Outro, perde o medo de amar, e, assim, também pode se deixar amar.

Ozu, com sua elegância e requinte wabi parece ser a saída que essa filósofa francesa encontra para os males da civilização. Se o mundo ocidental está cheio de superficialidades e de filosofias que não levam à valorização do essencial, se a culinária francesa, com suas substâncias nocivas à saúde equilibradas em verdadeiros prodígios de escultura alimentar só podem levar à morte, se a hipocrisia do sistema capitalista enrijece as estruturas sociais e leva à esterilidade, a saída é apropriar-se dos conceitos de simplicidade e de vida mais próximos dos valores realmente humanos.

Acontece que é uma temeridade abandonarmos uma tradição por outra, fascinados pelos seus atrativos mais evidentes, mas isso será, talvez, tema para um próximo romance de Muriel Barbery. Neste, divertido e inteligente, as melhores partes estão relacionadas à crítica mordaz do pensamento ocidental. A jovem Paloma, quando finalmente confrontada com a morte, consegue apreender um sentido possível para a vida. Há esperança na arte, há que descobrir “um sempre no nunca” – instantes de suspensão onde impere a beleza.

No entanto, todo bom ouriço, elegante ou não, não deve abrir mão de suas farpas, pois estas são sua única defesa. Leiamos o romance de Barbery, mas, retorcendo a famosa frase de Che Guevara, lembremo-nos que há que se enternecer, mas sem esquecer as durezas da crítica e cair no sentimentalismo.

A elegância do ouriço
Muriel Barbery
Trad.: Rosa Freire d’Aguiar
Companhia das Letras
352 págs.
Muriel Barbery
Prefere desaparecer por trás de seus escritos. Sabemos, por exemplo, que ela nasceu em 1969, porém algumas fontes nos informam que ela é natural de Bayeux, na França, enquanto outras dão como seu lugar de nascimento a cidade de Casablanca, no Marrocos. Tendo estudado filosofia na prestigiosa École Normale Supérieure, onde também estudaram Sartre e Simone de Beauvoir, ela leciona filosofia na Normandia. Seu primeiro romance, Une gourmandise (2000), foi bem recebido na França e pelo mundo (traduzido em 12 línguas, mas ainda não em português). Em 2006 lançou A elegância do ouriço, e este, através do entusiasmo de seus leitores e sem auxílio da mídia, acabou se transformando num fenômeno de vendas. Mais ainda que um sucesso editorial, o livro tornou-se uma panacéia para as angústias existenciais dos deprimidos franceses, e está sendo literalmente “receitado” pela psicanalista Maude Julien, que alega já ter até mesmo conseguido curar o medo de voar de um paciente através da leitura do romance. Alain Schmidt, outro terapeuta “ouriçado”, confirma a eficácia do livro de Barbery, que dramatiza situações semelhantes às vivenciadas por seus pacientes, sobretudo as do sexo feminino, ajudando-as a tomar consciência de suas dificuldades. O cinema também já teve sua atenção atraída pelo sucesso da obra, e as filmagens já estão em andamento. Enquanto isso, Muriel Barbery passa um ano sabático no Japão, após ter viajado para a Nova Zelândia. Para se conhecer um pouco mais da autora, é possível vê-la numa entrevista em francês, no YouTube, ou visitar seu blog (ilustrado com belíssimas fotos de autoria de seu marido): http://muriel.barbery.net/.
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

Rascunho