O capítulo III do Livro Décimo Primeiro da obra Os embaixadores, de Henry James, assim se encerra:
O vale do outro lado combinava o cobre esverdeado das terras e o tom de pérola vitrificado do céu, um céu sustentado por uma cortina de árvores que pareciam achatadas, como em uma espaldeira; e, posto que o restante da aldeia se espraiasse pela vizinhança, o panorama desolado fez com que a visão de um dos barcos se mostrasse convidativa. Com um rio como aquele o observador sentia-se levar corrente abaixo antes mesmo de pegar nos remos — cujo manejo indolente, aliás, teria servido para compor uma impressão mais completa. A sensação se intensificou a tal ponto que nosso amigo se pôs de pé; mas o impulso, por sua vez, fez ver como estava cansado, e, ao encostar-se em um poste e seguir contemplando a distância, ele avistou um detalhe que, de chofre, chamou-lhe a atenção.
Tendo em mãos a primeira edição brasileira do romance de James, o leitor que abrisse ao acaso a narrativa, assim, já próxima de seu desfecho (ou que simplesmente me acompanhasse nos desdobramentos do artifício), encontraria neste excerto munição suficiente para algumas considerações sobre a obra em particular, sobre a concepção de romance tal como Henry James a perseguiu, e, em especial, sobre como a edição em questão equacionou um e outro aspecto.
De antemão, não é difícil registrar que um tal desfecho (de capítulo, não do romance) oferece ao leitor alguns dos elementos mais significativos da narrativa (considerada, eventualmente, ainda que não de modo unânime, a obra-prima de James, aquela na qual o que seria seu “estilo tardio” teria alcançado um momento climático). Está aí, por exemplo, aquela particular fatura do narrador de que se envaidecerá James no prefácio que escreveu para anteceder o romance em uma de suas mais prestigiosas edições (New York Edition).
O primeiro elemento distintivo de um tal narrador seria a atribuição da matéria narrada a uma voz tecnicamente disposta enquanto terceira pessoa, isenta de onisciência, mas centrada na rigorosa focalização em um personagem escolhido para suportar a organização narrativa e de cujas impressões, cuidadosamente retificadas e reformuladas ao longo do processo em curso, derivaria a narrativa propriamente dita. Uma ética romanesca muito rigorosa responde pela escolha que é, ainda, uma específica recusa da primeira pessoa narrativa, pelo que seria seu afrouxamento:
Basta dizer, para ser breve, que a primeira pessoa, na narrativa longa, é uma forma fadada ao afrouxamento, e o afrouxamento, quase nunca assunto do meu interesse, nunca o fora menos quanto nessa ocasião específica. Todas as reflexões desse problema entraram nos eixos a partir do momento — bem inicial — em que a questão de como manter a minha forma divertida sem nunca me apartar de meu personagem central, sempre atrelando o padrão a ele, teve de ser encarada.
Strether, o personagem em questão, seria um homem maduro, entre 50 e 60 anos, incumbido de uma missão que ajuda a compreender parte do título escolhido por James: resgatar de Paris um jovem americano que deve retornar aos negócios e conveniências familiares abandonados na terra natal. Que tal embaixador (em cuja retaguarda supõe-se a mão régia de uma mãe manipuladora) não venha a ser exatamente bem sucedido em sua missão é o que responde pela outra parte, ou pelo plural que designa novos embaixadores, a certo momento, trazidos à cena textual.
O excerto extraído do capítulo III parece exemplar do modo como a tradução de Marcelo Pen foi feliz em reconstituir um estilo que, na dicção de Henry James, configurava um tom peculiar, um inglês de americano expatriado em solo britânico, tratando de personagens cultos e poderosos (ou coadjuvantes de tais figuras), imersos por vezes, em perambulações geolingüísticas por Paris, por seu vocabulário mundano e seus cenários hedonistas. Na versão de Pen, alguns vocábulos parecem escolhidos para emprestar um tom algo preciosista e antigo ao conjunto (vitrificado, espaldeira, posto que, de chofre) e a sintaxe, a seu modo, parece reconstituir, também, algumas das dificuldades a que Henry James dedicava sua paciência meticulosa. Contudo, algo no texto o torna particularmente palatável ao leitor contemporâneo e a leitura flui de modo muito coerente com as oscilações impostas aos diferentes momentos textuais. O tom resultante parece adequado, ainda, à proximidade com Strether, que, sem ser o narrador, é, repito, o foco que organizará a ação.
Pois é a nosso embaixador, na cena com que se abre essa resenha (“A sensação se intensificou a tal ponto que nosso amigo se pôs de pé”), bem como na urdidura do romance, é a nosso embaixador que colamos nosso olhar. Trata-se de uma restrição, pensa James, uma restrição que o criador se auto-impõe, uma dificuldade que renderá dividendos literários como a harmonia do conjunto narrado, sua densidade material (fônica, metafórica), assim como sucessivas formulações ambíguas, retificações, enganos que, de um modo geral ajudam, entre outros aspectos, a estabelecer um ritmo para a ação textual. Ritmo em que parece ser igualmente importante a lentidão minuciosa que procura esgotar as impressões colhidas por Strether e desfiadas diante dos olhos do leitor (“Com um rio como aquele o observador sentia-se levar corrente abaixo antes mesmo de pegar nos remos — cujo manejo indolente, aliás, teria servido para compor uma impressão mais completa”) e momentos de ruptura ou impacto, como o que fecha o parágrafo transcrito: “(…) e, ao encostar-se em um poste e seguir contemplando a distância, ele avistou um detalhe que, de chofre, chamou-lhe a atenção.”
Notas e comentários
A edição da Cosac Naify, com um projeto gráfico que parece particularmente afinado com a obra de James, acresce o mencionado prefácio do autor e, após a narrativa, uma análise de Ian Watt, além de uma nota final do tradutor esclarecendo aspectos relativos à confiabilidade do texto apresentado. Ocorre que, em 1903, o livro recebeu uma edição americana e outra inglesa, além de ser publicado em um jornal americano. Ainda que tivesse concebido previamente o modo de estruturação da obra, a certa altura James teria ultrapassado o limite de 10 mil palavras que deveria conter cada episódio publicado no jornal.
Assim, alguns trechos e capítulos foram suprimidos na versão periódica, sendo restituídos ao conjunto, posteriormente. Curioso é que, na edição americana, um dos capítulos tenha sido reordenado fora do seqüenciamento cronológico. Em 1909, aparece a última versão revista pelo autor e que foi incluída na New York Edition de The novels and tales of Henry James. Embora a edição inglesa tivesse apresentado o ordenamento “correto”, James escolheu a edição americana como padrão para preparar a New York Edition, submetendo-a a uma cuidadosa revisão, aparentemente sem notar a ordenação problemática. Leon Edel foi o responsável pela edição atualmente considerada mais confiável (base para esta tradução), em que se tomou a NYE como padrão, com restituição da ordenação cronológica.
Pois aí estamos, como diria nosso Strether: os elementos que acompanham o romance na edição em questão não podem ser considerados adornos ou acréscimos decorativos. O narrador, assim como os recursos propriamente sintáticos tão específicos à prosa de Henry James, encontram-se visibilizados pelo próprio modo de estruturação do volume. Minha hipótese é que a economia com que se ofereceram notas à tradução (recurso útil para comentar escolhas, nuances ou relações com o original) parece compensada pela presença dos demais elementos paratextuais. Poucas notas, neste sentido, contribuem com a fluência da leitura, e o ensaio de Ian Watt, em contrapartida, evidencia aquelas particularidades “técnicas” que, de outro modo (sem que se desmereça o tradutor), tenderiam a ecoar no vazio ou a serem percebidos apenas por seus colegas especialistas em Henry James.
Tal como se oferece, a edição faculta ao leitor comum o acesso a particularidades que fazem de Henry James um romancista incontornável para a compreensão da tradição narrativa do século 20. O mencionado comentário de Watt ao primeiro parágrafo da obra (transcrito nessa página) evidencia algumas dessas particularidades:
James não apreciava a “mera platitude das declarações” envolvida na narrativa em primeira pessoa; em parte, presumivelmente, porque fundiria a consciência de Strether na narrativa e não a isolaria para a inspeção do leitor. Para esse isolamento, urge um método mais expositivo: nenhuma confusão entre sujeito e objeto, como na narração em primeira pessoa, mas um narrador obrigando o leitor a prestar atenção no objeto primordial de James — o estado mental e subjetivo de Strether.
Trata-se de um estado mental que se expõe pela profusão de diálogos evidenciadores de intrincadas relações sociais (e das proveitosas incursões do autor pelo gênero teatral) a que temos acesso unicamente pela perspectiva de Strether, aliás, em contínua revisão à medida que os eventos se vão desdobrando. Colamos nosso olhar ao de Strether, como afirmei anteriormente, mas a perícia técnica de James impõe-nos a distância:
A natureza “multidimensional” da narrativa, com sua contínua sociedade entre três mentes — a de Strether, a de James e a do leitor —, não se declara de modo muito óbvio antes da quarta oração — “o princípio operador que acabei de mencionar…”, mas já ficou tacitamente estabelecida em todos os detalhes de dicção e estrutura, e permanece preponderante. Um motivo para a prosa ficcional de James exigir tanto de nossa atenção é por certo o fato de haver sempre pelo menos três tipos de desdobramento — todos subjetivos; a consciência dos personagens sobre os eventos, a visão do narrador sobre eles e, a reboque, nossa própria percepção sobre essas duas instâncias.
Outra das particularidades do Henry James tardio estaria em histórias que começam sem esclarecimentos sobre o passado dos personagens e situações. As páginas iniciais são percorridas, portanto, com alguns tropeços. Quando chegamos, por outro lado, à página 543 de Os embaixadores, Strether observa uma determinada sacada, em operação que, remetendo-nos a cena anterior, impõe em balanço comparativo de diversos estágios da narrativa. Esses e outros expedientes configuram o peculiar rendimento imposto pelo autor ao gênero romanesco, ora oferecido à auspiciosa “inspeção do leitor” em capa dura e tiragem de 5 mil exemplares.