Ainda que seja inviável definir com base em um critério único os diferentes campos pelos quais transita um escritor, continuam sendo nomeáveis e reconhecíveis os romancistas, poetas, contistas, cronistas, ensaístas, dramaturgos e demais máscaras de escritores às vezes surgidas mesmo em áreas a princípio estrangeiras à literatura, como as artes visuais ou o cinema. Parece, portanto, que esses campos da escritura se definem menos por uma descrição geral do estado de coisas em que se encontram, e mais por uma rede de nomeações que cada artista institui por meio do conjunto de sua obra, inclusive por sua crítica, pelas entrevistas, por sua performance pública, etc.
Pode-se lembrar, por exemplo, dos textos em versos curtos e de sintaxe cortante presentes nos últimos livros de Dalton Trevisan, os quais, compreendidos como contos, constituem forte pregnância estética na obra de um contista que preza pela concisão ou mesmo pela erosão sintática das frases, de que a falésia dos versos é uma imagem surpreendente. Por outro lado, pode-se selecionar, como exercício de leitura, um desses textos em versos de Dalton Trevisan para compor uma antologia de poesia contemporânea e lê-lo lado a lado com os versos dos poetas dos quais chegam obras que buscam deslocar um pouco a poesia.
Em lugar de apontar uma maleabilidade ou uma dissolução conceitual do texto ou dos gêneros literários, este exemplo, se representativo do campo literário, demonstra antes que a forma do texto — ou a sua técnica de composição — não é decisiva para se estabelecer o nome artístico, digamos assim, que o texto possa receber. Pode-se pensar, com alguma razão, que este nome não importa. Ou seja, que pouco importa se, para um mesmo texto, se está diante de um poema, um conto ou mesmo uma performance. Penso, no entanto, que a modificação do nome altera o texto, e o gesto de nomear o texto participa de sua autoria.
Considerando-se, além disso, a maior facilidade de se publicar um texto, seja ou não em livro, e a grande quantidade de obras que surgem em cada campo de escritura, pode-se compreender a difícil equação com a qual uma obra precisa lidar para, ao mesmo tempo, afirmar-se no campo e inscrever nele alguma diferença. É por isso que a alguns leitores parece muito estranho encontrar um romance que se esforce por reconhecer-se como romance, ou um poema que se esforce por reconhecer-se como poema, seja por meio do rigor técnico, da intertextualidade, da metalinguagem, etc.
Em tempo de premiações literárias com as gavetas prontas a receber as obras (romance, conto, poesia), e que se fundamentam antes em critérios jurídicos que em critérios literários (lembre-se as ressalvas temáticas ou morais constantes dos regulamentos das premiações), compreende-se, a contragosto, a carreira bem-sucedida de tais romances ou poemas como que autenticados em cartório. No entanto, em meio a forte debate crítico e à produção à margem do sistema de distribuição editorial de obras significativas, é preciso reconhecer a complexa rede de nomeações e reconhecimento das obras, sobretudo no sentido de que, de um ou de outro modo, transita-se, ainda assim, em campos bem definidos.
Assinatura entre deslocamentos
Essa percepção dos campos da escritura enquanto gestos de nomeação, ou seja, essa compreensão de que a autonomia do artista está antes na enunciação do que no enunciado, é decisiva no percurso de Renato Rezende, que no último ano publicou dois romances, Amarração e Caroço, inseridos numa trajetória até então marcada por livros de poemas, trabalhos em artes visuais — pinturas, vídeos, performances — e intervenções críticas nas artes e na poesia. Não se trata de um artista múltiplo; trata-se de um artista único, como repetidamente tem sido frisado por aqueles que já escreveram movidos por sua obra.
Além de designar a singularidade temática que sua obra apresenta, sobretudo por não abrir mão, nas palavras de Claudia Roquette-Pinto, do “seu contato com alguma coisa que se encontra além da mente, além do discursivo”, o termo “único” enfatiza também que cada linguagem trabalhada pelo artista resulta numa forma nomeável diferente (romance, poema, performance) que, no entanto, são todas enunciadas por Renato Rezende. Esta assinatura, nesta obra, é o ponto de fuga da escritura. Não se trata, portanto, de um artista com diversas facetas, nem mesmo de uma pesquisa estética intensiva em que cada livro procura suplantar o anterior.
Para desenhar melhor esta assinatura, pode-se recorrer aos textos críticos do autor, entre eles o livro em que se dedica a ler a poesia de Guilherme Zarvos, publicado em 2010 no Rio de Janeiro pela coleção Ciranda da Poesia. Sendo um dos fundadores do CEP 20.000, um fundamental encontro de poesia que ocorre mais ou menos mensalmente há duas décadas na cidade do Rio de Janeiro, Zarvos é lido, em chave política, por Renato Rezende com base em seu projeto de intervenção urbana:
A proposta do CEP 20.000 é política no sentido mais originário do termo, ao propor uma nova forma de relacionamento, criação e fruição artística entre os cidadãos da cidade, da pólis. Essa proposta (possivelmente não exclusiva, mas efetivamente tentada pelo CEP) inclui uma mistura democrática de pessoas e de seus produtos artísticos sem a passagem por um crivo seletivo prévio; a promoção de uma indiscernibilidade entre os gêneros artísticos (teatro, performance, música, literatura, etc); a dissolução das fronteiras entre arte erudita e arte popular (poesia culta x poesia falada ou canção); uma fruição coletiva e participativa — antenada com a tendência pós-moderna —, a transposição da barreira entre arte e vida, entre atitude e produção artística.
Ora, nesta leitura, não se reivindica uma politização qualquer da obra abordada, mas antes se valoriza o caráter originariamente político — pois intervém na pólis — de um evento estético, se assim se pode chamar o CEP, o Centro de Experimentação Poética e, ao mesmo tempo, o Código de Endereçamento Postal fundador da cidade, o seu ponto zero, o seu ponto de fuga, endereço inexistente para o qual, no entanto, todo o mapa da cidade aponta. O evento institui, no momento em que acontece, este endereço carioca, em que as pessoas e seus produtos artísticos se misturam, embaralhando o mapa, as ruas todas numa só, por um breve momento.
É também por esta chave de afirmação democrática que em junho de 2012 Renato Rezende faz veicular pela internet um ensaio (publicado no Rascunho #154) no qual, em tom de manifesto, reivindica uma abertura, por parte da crítica de poesia, a diferentes projetos estéticos que se inscrevem no campo da poesia. Procura resistir a uma crítica que, a seu ver, enxerga a história da poesia no Brasil de maneira redutora, pois enfatiza os movimentos que produziram poetas mais consagrados, de modo que vozes singulares de nossa poesia acabam passando despercebidas pelos leitores, e além disso abre-se mão de deslocamentos críticos que podem contribuir para enriquecer o debate e a leitura.
Entre esses deslocamentos, Renato Rezende propõe ainda no mesmo ensaio a maior atenção aos efeitos do movimento neoconcreto sobre a literatura, o qual não admitiu, no desdobramento das obras de seus artistas, fronteiras entre as artes. O efeito disso, para a poesia, é que, em suas palavras, “o poeta, para o bem e para o mal, iguala-se ao artista, e o poema — como objeto de linguagem, mas não obrigatoriamente linguagem verbal — desloca-se dos seus suportes tradicionais”.
Experiência de fala
A melhor realização deste projeto de Renato parece ser, até o momento, o livro Noiva, publicado em 2008. Nele, em textos de difícil classificação, numa experiência de fragmentação do discurso, perece-se assistir à expansão discursiva do poema, em frases ou fragmentos textuais que se espalham na página, por meio de uma experimentação gráfica que chega a produzir, pela negatividade característica de sua obra, trechos como este:
Eu não sou escritor. Não sou poeta. Não sou artista. O artista é aquele que se utiliza da linguagem para criar mensagens, conteúdos, novos significados. Eu sou uma pessoa que se utiliza desesperadamente da linguagem para criar-me a mim mesmo, para outorgar conteúdo e significado a mim mesmo. Quando e se alcançar meu objetivo, não precisarei mais escrever. Não sou um poeta, não sou um escritor, não, não sou um artista. / E às vezes viver é um mar de doçura.
Todo o trecho perde sua força se não se ler o verso seguinte, em seu clichê (“mar de doçura”) que contrasta fortemente com o — também clichê — poeta que não se diz poeta, nem artista, nem escritor. Reivindica-se aí aquela zona “além do discursivo” que já mencionamos; mas também, abre-se aqui um outro campo para a obra de Renato, a investigação da distância entre o clichê do artista e o clichê do vivente, o reconhecimento de que “a transposição da barreira entre arte e vida” não se dá através da linguagem, e sim por sua performatização. Assume-se, no texto, uma enunciação problemática, como na capa do livro Noiva, em que Renato aparece vestido, de costas, como uma noiva. Eis o caroço. No romance Caroço, lê-se o eco da Noiva: “Escrever não me interessa, só me interessa nascer. É preciso nascer, se não nasço, morro. Por isso escrevo”.
À procura de um nome para quem nasceu, para o que nasceu, a escritura expande-se em ficção, romances. Há narrativas, apesar de tudo, nestes romances. Em vez de buscar “outorgar conteúdo e significado a mim mesmo”, nasce-se. “Quem me inventou? O que escrevo vai dar em mim mesma”, afirma o narrador, um homem, em Caroço. Assim é que o gesto de nomeação deriva incessantemente entre os personagens, que ao longo das narrativas de Amarração e Caroço, ora por meio de encontros amorosos, ora devido a uma separação dolorosa, despersonalizam-se, como aliás as próprias obras o fazem, enquanto romances que são.
Desse modo, os personagens dos dois romances podem ser lidos como alegoria do conjunto da obra de Renato, e por isso respondem a uma experiência de nomeação e, ao mesmo tempo, despersonalização: “Ela nasceu já sem nome; e não é grande favor fornecer-lhe um (do fundo do meu corpo escuro vou buscar-lhe um nome)”. Em busca deste nome, arte; em busca deste nome, cidade; em busca deste nome, uma obra pública.
Como aquela que, em parceria com o artista Dirk Vollenbroich, foi realizada em 2011 na fachada de um centro cultural no Rio de Janeiro: as batidas do coração das pessoas que compareceram à performance iluminavam, por meio de um equipamento hospitalar, a fachada do prédio, que acendia e apagava de acordo com o ritmo do corpo de algum dos presentes. O projeto MY HEART IN RIO, como foi batizado, transforma a pulsação do órgão do corpo em pulsão de linguagem, a iluminar, vacilante, a noite da cidade. Esses corações anônimos ainda assim chamavam-se corações, assim como esses romances ainda assim chamam-se romances. E, nesse sentido, é decisivo compreender o lugar de fala que ocupam no conjunto de uma obra e nos problemas contemporâneos.