Tom Perrotta certamente não figura entre os nomes mais badalados do cenário literário atual, mesmo em meio a toda anglofilia vigente, na qual freqüentemente vemos em posição de destaque traduções de autores americanos e ingleses ainda no primeiro livro de qualidade mediana. Mesmo que de sua obra literária tenham surgido dois filmes bons — Election, de Alexander Payne, e Little children, de Todd Field —, seu nome dificilmente consta de listas ao lado de McEwan, DeLillo, Roth e Pynchon, ou mesmo entre os mais novos, como Franzen, Foster Wallace, Lethem, Eugenides, etc., etc.
A leitura de seu romance A professora de abstinência torna possível entender seu relativo sucesso cinematográfico e seu pouco apelo crítico/intelectual: trata-se de um autor claramente interessado muito mais na criação de personagens e em dar um testemunho personalizado (na figura dos tais personagens) de seu tempo do que em dar uma visão crítica deste tempo. Sua linguagem é transparente, imediata, convencional, distante de lirismos, mas grudada nos pensamentos dos personagens, que são gente comum, em nada extraordinários: o tipo de coisa que cria filmes bem sucedidos de crítica, mas que no campo da literatura parece ser insuficiente para causar muita empolgação.
Embora seja verdade que o realismo nunca tenha perdido seu lugar central na fatia maior da ficção literária que recebe mais atenção editorial e de crítica (pensando aqui fora do mundo acadêmico, em que romances freqüentemente servem simplesmente de ferramentas para comprovar idéias prévias), é verdade também que este realismo parece necessitar de pelo menos um pouco mais do que isto, seja um lugar ou conflito-base incomum, ou uma técnica ou lirismo apurados. Estas não parecem ser demandas que afligem o autor de A professora de abstinência, que se satisfaz em escrever um romance sólido, simples, direto, longe de ser um tempo desperdiçado, mas igualmente longe de ser uma leitura imperdível.
Personagens em conflito
O livro conta a história de duas pessoas: Ruth Ramsey, professora de educação sexual em uma escola pública dos EUA que se vê forçada a adotar um novo currículo que prega a abstinência, e Tim Mason, um alcoólatra que consegue se livrar do vício por meio da religião. Os dois se divorciaram de seus primeiros casamentos e têm filhas, estudantes da mesma escola em que Ruth é obrigada a ensinar que camisinha não é 100% segura (e que todos deveriam ficar quietinhos até o dia do casamento) e jogadoras do time de futebol em que Tim é técnico. O conflito principal do livro vem da iniciativa de Tim de rezar em agradecimento cristão após o jogo: Ruth, irritada com a mudança de currículo e vendo nela a influência do ativismo evangélico, interrompe a reza, falando que uma escola pública não é lugar de religião.
A melhor parte do livro sem dúvida fica por conta da caracterização de Ruth e Tim, em especial deste último. A frustração parece ser a tônica da vida dessas duas pessoas — um primeiro casamento fracassado, crianças divididas em dois lares parecendo sempre mais próximas do ex-cônjuge, os sonhos interrompidos. Ruth fica forçada a ensinar obscurantismo e medo para adolescentes, e Tim busca uma vida pacata e comportada mesmo sempre se lembrando de suas aventuras alcoólatras de rock’n’roll. Os esforços e inquietações de Tim trazem as melhores páginas do livro, expressando as dificuldades de uma mente viciada em deixar um estilo de vida que traz dor a si próprio e a todos que o rodeiam.
Parece que existiu na composição do livro algum ímpeto de dar testemunho de seu tempo: seu ano de lançamento é 2007, Bush filho na Casa Branca e o ativismo evangélico dotado de força total nos Estados Unidos. Há aqui o clássico “disputa entre dois mundos”, o laicismo de Ruth contra a religiosidade contínua de Tim, mas o tal testemunho fica prejudicado quando se vê que Tim fica longe de corporificar o típico evangélico ativista, rejeitando (em silêncio) as premissas de sexualidade “purificada” defendida pela classe e no fundo reconhecendo o direito dos outros em seguir outras crenças, ou mesmo não seguir crença alguma. Sua reza na escola foi menos uma vontade de impor sua visão de mundo do que uma genuína vontade de expressar gratidão naquele momento.
Raso
A idéia de expressar uma situação política contextual ao romance que se escreve geralmente tem dois caminhos tradicionais, o do ativismo e o do equilíbrio: ou se defende um lado a todo custo, demonizando o outro o máximo possível, ou se busca retratar a questão buscando ver com alguma imparcialidade os dois lados. O livro de Perrotta parece buscar um meio termo esquisito entre esses dois caminhos, trazendo protagonistas de dois lados, mas fazendo com que um deles não pertença muito bem ao seu próprio lado.
Há certa lerdeza no ritmo da narrativa do livro, que não é de contemplação ou ponderação, é simplesmente o autor querendo caracterizar um pouco mais o ambiente em que se passa a história. Isto acaba se sobressaindo como defeito quando fica claro que Stonehood Heights se encaixaria perfeitamente na descrição de “típica cidadezinha americana” (do tipo conhecido até por quem nunca morou nos EUA), economizando ao leitor o tempo de ver em detalhes exatamente o quão típica ela é. Este lado meio genérico também se espalha na caracterização de todos os personagens que não são Ruth ou Tim, claramente coadjuvantes da história dos dois, dotados de bem menos vida e interesse. Em um romance de 400 páginas, é de se esperar um pouco mais de amplitude ou profundidade.
Como já se disse, não se trata de um autor com trabalho de linguagem ou de lances de lirismo, então a leitura em tradução não fica muito prejudicada. No entanto, ainda se vê alguns poucos momentos em que fica clara uma decisão possivelmente apressada do tradutor, quando aparentemente verte “for pete’s sake”, expressão super comum nos Estados Unidos, por um esquisito “pelo amor de Pedro”, uma transposição literal menos interessante do que seria uma adaptação. Em outros momentos, o tradutor opta por deixar no inglês os apelidos carinhosos do time de futebol, assim como a ironia de Ruth ao perguntar se a banda adolescente de Tim poderia se chamar “Big Buncha Dorks”, em um purismo que faz com que estes momentos destoem do resto do texto.
É louvável a iniciativa do romance em tentar lidar com uma questão forte de seu tempo, mas ainda que o tratamento dado à questão consiga fugir do maniqueísmo caricato (sendo bem-sucedido ao mostrar a importância que a religião pode ter na vida de pessoas passando por dificuldades), seu resultado permanece aquém de uma contribuição significativa ao entendimento ou à percepção desta realidade. Seu lado forte acaba sendo algo que pode estar presente em qualquer livro, sobre qualquer tema: a caracterização psicológica dos protagonistas. E ainda que se trate de uma leitura até que prazerosa, em meio a tantos livros excelentes que aguardam o nosso tempo fica difícil fazer desta resenha uma recomendação enfática.