“Tenho 40 anos e sinto um esgotamento de mim mesmo em relação à literatura” — disse Michel Laub, em 2013, no projeto Um escritor na biblioteca, realizado pela Biblioteca Pública do Paraná. “Se eu voltar a escrever, certamente será uma coisa diferente, narrar sob a ótica de outra pessoa, ou escrever livros-painéis com vários personagens, em terceira pessoa, não sei.” É admirável perceber como esse projeto se realiza, agora, com o lançamento de Passeio com o gigante, nono romance do autor.
O gato diz adeus (2009) já apresentava uma narrativa em várias vozes, com elementos de romance híbrido, ao incorporar entrevistas de uma “revista escondida […] na gaveta”. Solução de dois estados (2020) amadurece tais experiências formais, construindo-se através de recortes de depoimentos gravados para um filme documentário, com “material pré-editado”, “material bruto” e “extras”.
Em Passeio com o gigante, a forma de base é o teatro. A leitura do livro remete à experiência de assistir a um espetáculo do Teatro da Vertigem. “Você em cima do palco” — lemos nas primeiras linhas — “Luz branca em cima de você”. Davi Rieseman, o personagem em foco, discursa diante de uma plateia. Fragmentos desse discurso são evocados e dissecados, anos depois, no diálogo com o coro — a voz coletiva, que vem das origens do teatro grego.
O discurso de Davi tem uma data: 2018. Tem uma intenção: arrecadar dinheiro para a campanha eleitoral de um grupo político. E um motivo: o apoio ao Estado de Israel. Desse ponto de partida, será investigado um quadro complexo da identidade judaica, em seus braços morais, políticos e culturais. “Vocês já ouviram falar de judaísmo musculoso?” é uma frase de Davi logo no primeiro capítulo. Em elaborada e questionável retórica, ele une o enfrentamento do antissemitismo ao do antissionismo. Confrontado pelo coro, surge uma voz posterior do personagem (em itálico no original): “Não é só doutrina. É a história”. O dilema que se apresenta é: a defesa de uma causa (o Estado de Israel) justifica qualquer aliança, justifica aderir “ao ponto de vista dos assassinos”?
O confronto com o coro ocorre três anos após o discurso de 2018. Estamos num hospital, em meio a um morticínio envolvendo “queda aguda no oxigênio” e intubações. As palavras Bolsonaro e covid-19 não são mencionadas, mas no romance ressoam ecos da história recente: o discurso do ex-presidente no Clube Hebraica do Rio de Janeiro; seus pronunciamentos, já eleito, escarnecendo a pandemia. Poderíamos até incluir, nesse compilado de referências, a participação de Fabio Wajngarten na campanha de 2018, seguida de sua intimação para depor na CPI da Covid em 2021.
A trajetória de Davi, até esse ponto crítico, é a de um rapaz pobre que ascendeu através do casamento, ao assumir o ideário do sogro. Davi tornou-se um líder entre empresários, agindo em causas humanitárias, e é esse capital moral que ele empenha ao entrar na campanha de 2018. As consequências dessa ação se abatem sobre ele em 2021, quando a pandemia atinge sua própria família.
Acessamos a biografia de Davi através de vozes diferentes. O coro evoca seu passado em segunda pessoa:
Vinte anos antes do discurso você era um estudante de direito (…) Vocês começaram a namorar num mundo que hoje é só história.
Davi também recupera sua própria história, com intenções diferentes, conforme a situação. No discurso de 2018, ele remete à família para comover a plateia:
[…] aqui eu falo da minha mãe Rute, da minha esposa Lia, da minha filha Dana […]
Já em 2021, ao enfrentar as consequências de suas escolhas, ele se defende e se justifica:
Eu arrecadei dinheiro para um grupo a favor de Israel, não um grupo com a suástica na bandeira.
A voz de Rute, mãe de Davi, surge então através do coro:
Você ficou lá aguardando o médico, a notícia que ele daria, lembra como foi?
E finalmente, também através do coro, entra a voz de Lia, a esposa dele:
Você não conseguiu dormir por muito tempo, até descobrir o poder de uma pílula.
A polifonia não vem para desacreditar os fatos — que são no geral estáveis — mas sim para reinterpretá-los. O romance se constrói no embate dos pontos de vista, descamando — exaurindo — as escolhas e ações de Davi, em seus valores e prioridades. Também seu papel social é esquadrinhado: ele age por si, ou representa o papel que seus pares esperam que represente? Ele age por acreditar, ou para se manter nesse papel?
No plano das frases, a composição das vozes é notável. Os livros da primeira fase de Laub — entre eles Diário de uma queda (2011), o mais reconhecido — se utilizavam de frases em lista, de fôlego longo, um estilo típico da literatura contemporânea, que visa à fluidez da leitura. O discurso agora é mais variado em pontuação, conectivos, frases nominais, além de expressões frequentes com função fática. O texto é rico nos aspectos de ritmo e melodia. Destacam-se as páginas centrais do volume, em que um evento trágico é marcado visualmente pela disposição dos capítulos.
No depoimento sobre sua escrita, em 2013, Laub reflete que seus livros “testam as ideias até o limite delas”. Ele considera: “Quando falo de um assunto, sempre vou olhar os dois lados e dar voltas em cima daquilo”. A forma dramática, de inspiração teatral, potencializa essa postura. A opção por conflitos no campo social, histórico e moral remete a períodos históricos em que inquietações sociais foram levadas ao palco, para debate público. No caso do Brasil, o teatro moderno de Jorge Andrade, em seu questionamento das oligarquias paulistas, seria um paralelo possível.
Em Passeio com o gigante, é Davi quem encarna as contradições de uma ideia. As outras figuras têm menos nuance: o Velho Uri, o sogro, é a projeção da firmeza; Lia, a esposa, mostra-se quase um símbolo de abnegação. A obra cede a certa polarização entre o masculino (forte/agressivo) e o feminino (compreensivo/generoso).
O “gigante” do título evoca muitos significados. Um grande empresário é um gigante, no jargão do empreendedorismo. O gigante é o inimigo no ringue. O gigante pode ser o Golias enfrentado por Davi.
Há muito tempo eu penso nesse problema, como defender Israel estando no Brasil. O que é um modo de defender os judeus no Brasil, as nossas famílias…
As palavras de Davi, no discurso para empresários em 2018, são comentadas pelo coro: “a história sai da abstração e entra na parte concreta”. Pressionado por todas as vozes, Davi questiona ao final:
No que isso vai nos ajudar, a mim, ao coro de judeus, aos descendentes judeus do coro?
Ao caracterizar o coro como de “mesma origem”, o livro assume um caráter de autocrítica: o personagem se questiona, o autor se questiona, e tal debate se oferece em profundidade ao leitor.
Tal foco pode levar à pergunta: o interesse do livro se restringe à reflexão sobre o sionismo? É nesse aspecto, justamente, que a complexidade da composição revela os espelhamentos entre forma e tema.
Embora a presença judaica no Brasil seja relativamente pequena, em termos demográficos (se comparada a outras migrações), a questão de Israel catalisa manifestações intensas, em que se projetam disputas políticas que ultrapassam aquela terra e aqueles povos. Podemos comparar, apenas como exercício de pensamento, com os brasileiros de origem italiana, que recorrem aos consulados em busca de cidadania europeia: alguém cobra deles um posicionamento em relação ao tratamento dos migrantes e refugiados na Itália? Há algum debate público, no Brasil, sobre como os ítalo-brasileiros se posicionam em relação à atual primeira-ministra da Itália?
Essa invisibilidade parece inacessível aos judeus. Davi provoca o coro:
Muita gente no mundo erra, ou não erra, e segue a vida sem passar pelo que estamos passando aqui.
Ao leitor brasileiro, Passeio com o gigante oferece uma reflexão madura e fundamentada sobre um problema cuja solução o protagonista não conseguirá enxergar. Numa forma literária de composição sofisticada, permite que o leitor ultrapasse os lugares comuns ideológicos.