Romance à brasileira

Coletânea de ensaios aborda a produção e a recepção de romances em território brasileiro ao longo do período oitocentista
Fernando C. Gil, autor de “Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901)”
28/08/2015

É ainda frequente, mesmo em meios acadêmicos, a ingênua crença de que as formas literárias emergem e se desenvolvem de forma arbitrária e inteiramente espontânea, sem que haja quaisquer relações entre esses processos e as estruturas históricas, sociais e culturais que os viabilizam. Perspectivar desse modo a literatura implica recair em uma leitura fragmentária e naturalizante, incapaz de perceber de que modo os mecanismos de expressão literária — bem como as produções culturais em geral — respondem a demandas epocais particulares, o que acaba por ensejar avaliações anacrônicas, quando não casuísticas. Uma compreensão pertinente das transformações pelas quais passaram as formas literárias exige, por conseguinte, que se considere sua inscrição em um âmbito histórico específico, o que faculta uma análise mais aprofundada do conjunto de fatores que favoreceu a sua emergência.

O volume assinado por Fernando C. Gil, professor da Universidade Federal do Paraná, vem favorecer precisamente esse segundo, e mais profícuo, tipo de procedimento analítico. Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901) compila mais de meia centena de textos que abordam, direta ou indiretamente, a produção e a recepção de romances em território brasileiro ao longo do período oitocentista. Duas observações devem ser feitas, a respeito do título — ambas devidamente comentadas pelo autor no texto prefacial: primeiro, o termo “ensaios” é empregado em sentido lato, uma vez que a obra compila não apenas escritos propriamente ensaísticos, mas também prefácios, artigos críticos, discursos e textos diversos; segundo, entre o material reunido há também escritos sobre teatro e poesia, além de textos historiográficos ou reflexões mais amplas sobre a literatura brasileira, que não obstante abordam questões relevantes para as narrativas romanescas. Com efeito, a heterogeneidade do volume está entre os seus méritos: guiando-se fundamentalmente pela relevância dos textos antologiados, Fernando Gil logra oferecer um vasto panorama dos elementos mais importantes para o entendimento do acidentado percurso trilhado pelo romance, no decorrer de sua aclimatação ao cenário cultural brasileiro. A capa do livro é assinada por Rachel Pavim, que optou pela segura solução de elaborar uma colagem das capas de obras das quais foram extraídos textos compilados, produzindo um instigante efeito estético; o projeto gráfico de Reinaldo Weber é bem-sucedido ao assegurar uma boa legibilidade ao volume — a esse propósito, ressalve-se que a opção editorial por um livro de formato maior talvez fosse mais conveniente, sobretudo em se tratando de uma obra direcionada principalmente a pesquisadores que em geral recorrem a marcações e anotações.

Fernando Gil optou por organizar o material disponibilizado na antologia em quatro seções, amenizando sensivelmente a heterogeneidade dos textos reunidos. As duas seções iniciais têm cunho temático — “as funções do romance” e “o nacional no romance”, essa última a única subdividida em três subseções, o que atesta a importância da nacionalidade nas reflexões oitocentistas em torno do romance: “a representação do nacional e a formação da tradição literária”, “nacionalismo e linguagem” e “nacionalismo e regionalismo”; as outras duas seções, intituladas “o romance na crítica” e “reflexões sobre literatura e romance”, reúnem textos produzidos a partir de uma perspectiva mais crítica ou historiográfica. Não sendo possível tratar minuciosamente dos escritos coligidos nesta recensão, buscarei apenas abordar um par de assuntos entre os que me parecem mais relevantes.

Nacionalismo literário
O mais antigo texto presente na obra é o fundamental Discurso sobre a história da literatura no Brasil, assinado por Gonçalves de Magalhães e originalmente publicado em Niterói: revista brasiliense, em 1836 — no qual já assomam a defesa da especificidade nacional e o necessário enfrentamento das influências estrangeiras, entraves à constituição de uma literatura autenticamente brasileira: “A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa e climatizada no Brasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da Castalia, o trépido sussurro do Lodon e do Ismeno, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira” —, texto com o qual Magalhães procurava lançar-se como vulto fundador; como lemos na versão do discurso posteriormente publicada em livro, a “patriótica ideia” ensejaria o aparecimento da “originalidade do engenho brasileiro”. Os questionamentos em torno desse tema ocupariam ainda muitas páginas, não deixando de acusar a suposta falta de nacionalismo em vozes pátrias — inclusive na obra de Magalhães, acusado por Bernardo Guimarães de imitar os autores românticos: “em lugar de empregar o gênio que lhe coube em sorte para estrear entre nós uma carreira inteiramente nacional, nada mais fez que furtar-nos ao jugo do classicismo português para nos impor outro mais pesado”. Como bem sabemos, a senda aberta por Guimarães, privilegiando o resgate do passado e a valorização do presente como caminhos para a construção de um nacionalismo literário, ensejaria posteriormente seminais reflexões de José de Alencar e Machado de Assis, estas já abordando a especificidade do romance — também presentes no volume organizado por Fernando Gil.

Concomitantemente aos debates em torno do elemento nacional, nosso mundo literário discutia a função social do romance. A Carta a Emília que abre O filho do pescador (1843), de Teixeira e Sousa, já manifesta o desejo de juntar a “moral” às “belezas da literatura”; uma década e meia mais tarde, José de Alencar escrevia para defender As asas de um anjo de acusações de imoralidade, indagando: “Será imoral uma obra que mostra o vício castigado pelo próprio vício; que tomando por base um fato infelizmente muito frequente na sociedade, deduz dele consequências terríveis que servem de punição não só aos seus autores principais como àqueles que concorreram indiretamente para a sua realização?”. De outro lado, são particularmente interessantes as discussões em torno da formação de um público leitor feminino, contempladas no livro por dois escritos do mesmo ano, 1889, ambos assinados por mulheres. Anna Bittencourt, poetisa e romancista, reconhecia a importância do romance para “aquelas que não querem restringir-se à vida insípida e material de donas de casa”, mas afligia-se com o “verdadeiro perigo” de leituras que poderiam comprometer a “moralidade” e o “bem-estar das famílias”, desejando a produção de “romances morais que falem ao espírito e ao coração”; já a professora, poetista e romancista Anália Franco, em texto no qual alude elogiosamente ao artigo de sua contemporânea, revelava especial preocupação com a situação das “raras senhoras que no Brasil se dedicam às letras”, “afrontando os preconceitos da sociedade, a indiferença e o desdém esmagador que votamos às obras de arte, especialmente das nossas patrícias”; nesse cenário, como esperar que as mulheres pudessem escrever os desejados “romances morais e científicos”? Se aos homens se impunha a elevada tarefa de lidar com problemas em torno da expressão literária e da nacionalidade, às mulheres era imprescindível enfrentar o mais mesquinho desafio de combater o legado patriarcal que as condenava ao tolhedor decoro, ao recatado silêncio e à menoridade intelectual — que indiscutivelmente contribuíram para que, entre os quase quarenta nomes que assinam os textos publicados no volume, apenas Anna e Anália representem o gênero feminino.

Ensaios sobre a formação do romance brasileiro: uma antologia (1836-1901)
Fernando C. Gil
Editora UFPR
510 págs.
Fernando Cerisara Gil
É doutor em Teoria da Literatura e História Literária pela Unicamp. Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Paraná. Autor de O romance da urbanização (2a ed.: Editora UFG, 2014) e Do Encantamento à Apostasia (Editora da UFPR, 2006).
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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