Rocambole transexual

Ambientado no Cairo, novo romance de Joca Reiners Terron se debruça sobre a questão do duplo
Joca Reiners Terron, autor de “Do fundo do poço se vê a lua” Foto: Renato Parada
01/07/2010

“Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim, tu vivias… e, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!”
William Wilson, Edgar Allan Poe. Tradução de Oscar Mendes, Editora Nova Aguilar.

Quem jogou o viciante Príncipe da Pérsia em seu PC com tela em preto-e-branco, lá pelos primórdios dos anos 90, há de se lembrar que, no final, o herói deparava-se com uma imagem de si mesmo. A cada golpe que acertava em sua sombra, feria a si próprio, até perder a última vida. A única maneira de vencer era embainhar a espada novamente, quando então o reflexo se fundia ao herói, que finalmente encontrava, e libertava, sua princesa. A inspiração para o final do jogo pode ter vindo das linhas finais do conto William Wilson, que também traça os rumos dos gêmeos William e Wilson neste rocambolesco romance de Joca Reiners Terron.

Do fundo do poço se vê a lua é também a história de uma personalidade partida em busca de sua princesa. A princesa, no caso, é a rainha Cleópatra, conforme a imagem eternizada por Elizabeth Taylor no filme de Joseph L. Mankiewicz. A rainha se torna o objeto de adoração de William, enquanto seu irmão gêmeo, Wilson, dedica-se a fantasias mais, digamos, “normais”, como pelo assassino precoce Billy the Kid e toda a mitologia truculenta dos westerns. O contraste é um velho truque dos jogos de espelho.

A personalidade partida não é apenas a dos gêmeos por serem gêmeos. Partem-se não apenas em dois, ou três, mas talvez em quatro, cinco, ou até mais. O conflito de identidade começa com o nascimento de William e Wilson, gêmeos órfãos de mãe, morta ao parir, criados dentro de um apartamento apertado de São Paulo. O pai é também o único professor dos dois irmãos, uma vez que se recusa a expor seus rebentos aos horrores da educação formal. Crescem, portanto, impregnados pela obsessão do pai com a questão do duplo, do doppelgänger. Os olhos vigilantes do pai também pretendem impedir que se cumpra a sina de todos os duplos, a morte de um deles para que o outro tome seu lugar.

O William e o Wilson de Terron, assim como o William Wilson de Poe, fazem parte de uma longuíssima linhagem de duplos, uma história presente em praticamente todas as mitologias e religiões, desde os sumérios, no embate das deusas irmãs Inanna e Ereshkigal, os gregos Castor e Pólux, na tradição bíblica de Caim e Abel. Em quase todas as histórias, a oposição contrastante entre os duplos oculta o desejo de ser o outro e, por isso, o conflito. Conflito às vezes disfarçado de superproteção. A proteção que esmaga e anula.

Paródia
No mirabolante projeto Amores Expressos — idealizado pela RT/features e promovido pela mesma produtora, em parceria com a Companhia das Letras —, coube a Terron passar um mês no Cairo para contar sua história de amor. O escritor afortunado por esse ambíguo presente estava decidido a contar uma história de amor fraternal. Podia-se esperar que, indo ao Egito, se deixasse levar pelos encantos de suas pirâmides e inventasse uma história baseada num desses mitos, que, dentro da mitologia egípcia, poderia ser inspirada por Osíris e Ísis, irmãos gêmeos que transavam desde a barriga da mãe, ou mesmo Osíris, o sol, e seu outro irmão, Seth, senhor do submundo.

Mas Terron resistiu à tentação óbvia e partiu para a paródia. Wilson, o gêmeo que sofre por ser mulher num corpo de homem, vai, ao longo da história, buscando sua transformação em Cleópatra. A fixação pela personagem de Elizabeth Taylor oculta uma outra ainda mais profunda, pela mãe morta no parto. Uma mãe sem nome, uma subversiva da década de 70, atriz, cujo último papel foi o da rainha que se entregou à picada mortífera da cobra. A formação dos gêmeos se dá no submundo da prostituição e das drogas de São Paulo. Drogas teatrais, inclusive, pois o pai e o “tio” Edgar dedicam-se à arte dramática, chegando a construir um teatro fuleiro (o Monumental Teatro Massachusetts), cujo palco servirá para as encenações exaustivas dos mitos duplos, com os gêmeos nos papéis principais.

Após tragédias, mortes violentas e o “naufrágio” do teatro, cujo desmoronamento lembra a queda da casa de Usher, Wilson, desmemoriado, consegue chegar ao Cairo, onde cumprirá seu destino de ser Cleópatra. O que encontra lá, no entanto, não é muito diferente da sordidez de São Paulo. A cidade do Cairo que Terron nos traz é o retrato da miséria, da decadência e da mediocridade. Em nada parecida com a corte de Cleópatra Elizabeth, com seu glamour hollywoodiano e encontros furtivos com Marco Antônio Richard Burton. Finalmente transexuado após a cirurgia feita em São Paulo, Wilson assume sua verdadeira identidade e consagra-se com uma sublime dançarina do ventre. Naturalmente, sua glória também será a causa de sua perdição.

Enquanto isso, William está oculto. Wilson perdeu a memória e o irmão é uma assombração em suas lembranças vagas. Ainda assim, sua presença é permanente no destino do irmão. Quem narra a história é Wilson e, quando William chega ao Cairo após receber uma carta do irmão, estranhamente esse narrador é capaz de ver pelos olhos dele. A brincadeira de Terron passa a ser esconder Wilson de William, mas transformando Wilson em um narrador onisciente. Onde ele estará? Será que tudo não passa de um caso de psicose e não existem irmãos, mas apenas uma pessoa com dupla personalidade? Tripla? Quádrupla? Quem cometeu os crimes que perseguem a biografia de Wilson Cleópatra? Ele mesmo? Seu duplo? A comédia de erros está instalada.

Uma visita ao Cairo pelo Google Earth nos leva a uma superfície cinza, desolada e indistinta. Tentei percorrer alguns trajetos dos gêmeos pela cidade, mas, ao contrário das áreas nobres do planeta, as imagens do Cairo são um borrão e, para complicar, o nome das ruas está em árabe. A grande metáfora do livro de Terron é o diário de Wilson, que conduz William ao seu encontro. O transexual desmemoriado começa a anotar suas lembranças não num caderno, mas nas margens da biografia de Liz Taylor. O livro está tão velho e surrado, que as palavras já se apagam e o relato manuscrito de William acaba por tomar seu lugar. Bem feito para mim, que ainda dependo de fotografias de uma suposta realidade para me entender com a ficção. A esgrima do simulacro acaba por se mostrar superior à do espadachim real. “Em mim, tu vivias… e, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!”

LEIA ENTREVISTA COM O AUTOR

Do fundo do poço se vê a lua
Joca Reiners Terron
Companhia das Letras
280 págs.
Joca Reiners Terron
Nasceu em Cuiabá (MT), em 1968, e vive em São Paulo (SP). Poeta, prosador e designer gráfico, foi editor da Ciência do Acidente, pela qual publicou o romance Não há nada lá e o livro de poemas Animal anônimo. Também é autor dos volumes de contos Hotel Hell, Curva de rio sujo e Sonho interrompido por guilhotina.
Daniel Argolo Estill

É tradutor e crítico literário.

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