Quando o segundo milênio dava seus últimos suspiros, a Alemanha fez o que todo mundo fez… Atendendo à necessidade dos registros e cadastros, que é sempre interessante e polêmica, e explorando o fim do milênio na justificativa de preservar a memória — aproveitando, ademais, para armar debates e aquecer as vendas —, a Alemanha resolveu listar e classificar suas obras-primas literárias. O resultado? O melhor romance alemão do século 20 — na opinião de 33 autores, 33 críticos e 33 germanistas dos mais conhecidos e importantes do país, que votaram, cada um, em três títulos — é O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften) do escritor austríaco Robert Musil.
Setenta e seis romances receberam voto. E o romance de Musil apareceu em primeiro lugar, com uma vantagem confortável sobre o segundo colocado: O processo, de Kafka. Pausa para a curiosidade… O terceiro da lista — e não vou promover contendas, apenas mencionar resultados — foi A montanha mágica, de Thomas Mann. Desculpem, mas não posso me furtar ao questionamento; o Doutor Fausto é muito mais romance, embora tenha aparecido apenas em décimo lugar, depois de Os Budenbrook, inclusive, sétimo colocado, e também de Thomas Mann, autor que teve três romances na lista… Em quarto lugar ficou Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin; o quinto colocado foi O tambor, de Günter Grass; o sexto, Aniversários (Jahrestage), de Uwe Johnson, que, com suas 2000 páginas de grande qualidade, continua inédito no Brasil.
Mas voltemos a Musil, primeiro na lista e foco desse texto…
A vida
Robert Edler von MUSIL (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre — quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos — em Genebra, na Suíça, em plena Segunda Guerra Mundial.
Aos dez anos, Musil entrou para a Escola Militar em Eisenstadt, enveredando pela carreira de oficial, o destino involuntário que o pai lhe jogara aos pés. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn; lá, obteve o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart, cursou filosofia e psicologia experimental na Universidade de Berlim, a mesma em que se doutorou em 1908 com uma tese sobre Ernst Mach (1838-1916),[1] físico e filósofo austríaco. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (ou eu impossível de ser salvo, unrettbares Ich), seriam decisivos na formação de vários escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Robert Musil.
De 1914 a 1918, Musil participou ativamente da primeira guerra mundial na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao final dos combates, chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de guerra do moribudo império austro-húngaro (Cruz de Cavaleiro da Ordem de Francisco José). Só a partir de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de sua condição de escritor.
A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou o autor a se mudar para Viena e, mais tarde — depois da anexação, ou da adesão, se preferirem, da Áustria ao nacional-socialismo e de se sentir numa ratoeira, conforme ele mesmo chegou a escrever em seu diário —, para Genebra, cidade em que faleceu em 15 de abril de 1942.
A arte
A publicação da primeira obra de Robert Musil — O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless,) —, escrita em 1903, só foi levada a cabo em 1906 devido ao incentivo do crítico berlinense Alfred Kerr. O sucesso, e também a aprovação da crítica, foram imediatos. No romance, Musil se detém — com admirável agudeza psicológica — na consciência de um estudante de internato às voltas com situações que antecipam de maneira genial e visionária o sadismo e a opressão nazistas. O jovem Törless já principia a análise do conflito existente entre a subjetividade do indivíduo mais sua natureza estética e intelectual e a realidade objetiva de um instituto educacional, sancionada societária e coletivamente; em O homem sem qualidades o mesmo conflito entre eu e entorno se estenderia do mundo restrito de um internato ao universo inteiro. As semelhanças incidentais de O jovem Törless com O ateneu de Raul Pompéia, esse romance brasileiro maior, aliás, são grandes. O filme baseado no Törless, realizado sessenta anos depois da publicação da obra, foi um grande êxito na Alemanha envolvida com a expurgação de um passado tenebroso.
As reuniões, de 1911 — duas novelas —, e Três mulheres, de 1924 — três contos esticados —, foram as outras duas obras ficcionais publicadas por Musil antes de O homem sem qualidades. Nas duas novelas, já se percebe a perseguição de um postulado que só viria a se realizar em toda sua abrangência mais tarde, na obra-prima final, e que o próprio Musil caracterizou nas seguintes palavras: meu objetivo é a “demonstração do espectro moral e, dentro dele, as constantes passagens de algo a seu oposto”. Os três contos evidenciam a lida concentrada com o mistério, que jamais é revelado categoricamente, mas cujo sentido é comunicado de um modo que poderia ser caracterizado como osmótico, através do contato absorto do leitor com o texto, com a poesia das linhas de Musil, com sua estrutura narrativa e sua postura cambiante de narrador, elementos que registram — na obra do autor austríaco — uma das maiores conquistas da ficção do século 20.
O drama Os entusiastas (Die Schwärmer, 1921) e a comédia Vinzenz ou A amiguinha de homens importantes, de 1923, provaram que a pena de Musil também era afiada no teatro. Os entusiastas já mostra um grupo de personagens na busca atávica de uma felicidade que lhes é negada; o conflito entre o possível e o real — que seria desenvolvido ainda mais em O homem sem qualidades — já é tematizado na peça; Thomas, personagem central, professor de sucesso e pesquisador famoso, antecipa o Ulrich da obra máxima, na medida em que já vê no ato de pensar e no senso da possibilidade o caminho para estender e até mesmo transcender o real. Mais que uma comédia, uma farsa, Vinzenz ou A amiguinha de homens importantes mostra mais uma vez o que Novalis já dissera, o que Hugo von Hofmannsthal citara e o que seria questionado por Adorno, mais tarde, em um contexto muito diferente: “Depois de uma guerra infeliz é necessário escrever comédias”. Vinzenz, em sua condição de matemático de seguros e impostor, não passa, aliás, de outra antecipação da figura de Ulrich, o homem sem qualidades. Vinzenz desvenda o mundo das aparências, no qual a realidade dos “homens importantes” é reduzida à sua função profissional especializada e ao poder superestimado do dinheiro; Vinzenz pode muito bem mentir, inclusive, porque logo os fatos, que são, eles mesmos, fantásticos, acabarão se ajustando à sua mentira, dando a mais esse personagem a condição musiliana de grande jogador no meio-campo entre realidade e ficção. O espólio literário de Musil ainda revelaria várias obras de grande qualidade, entre elas o conto O melro (Die Amsel), por exemplo. Sem falar dos Diários (publicados em dois volumes por Adolf Frisé em 1976) e das Cartas 1901-1942 (publicadas também em dois volumes pelo mesmo Adolf Frisé em 1981), com suas páginas carregadas de iluminações e descobertas de altíssima voltagem estética e filosófica.
Até a morte
O homem sem qualidades é a síntese final, tanto da obra quanto da vida de Robert Musil. Todas as obras anteriores do autor são — conforme inclusive já foi sinalizado — uma espécie de preparação ao Homem sem qualidades, e toda sua vida parece ter sido direcionada para a escritura final do romance. Contando apenas o tempo ativo, Musil trabalhou em sua obra-prima durante cerca de 15 anos, de 1927 até o dia da morte. A primeira parte foi publicada em 1930. Logo depois de ter sido lançada a segunda parte — em 1933 —, a obra foi proibida tanto na Alemanha quanto na Áustria. A terceira parte, ainda organizada pelo autor, seria publicada em 1943, na Suíça. A edição de 1952, traria o acréscimo de uma quarta parte, organizada por Adolf Frisé e baseada nas notas deixadas pelo autor.
A ação de O homem sem qualidades transcorre na Áustria imperial, a Kakânia decadente indigitada por Musil. Em um dos momentos altos e abrangentes do romance, um comitê organiza uma “ação paralela” em homenagem aos setenta anos de governo do Imperador Francisco I, da Áustria, a serem comemorados em 1918, o mesmo ano do aniversário de trinta anos do governo de Guilherme II, da Alemanha. A ironia é muita, já que 1918 — o primeiro ano após o fim da segunda guerra mundial — representa o colapso das duas monarquias e sobretudo o fim do império austro-húngaro na condição de potência mundial. Desde logo, portanto, a “ação paralela” adquire antes as feições características de um enterro do que as de uma festividade, ajudando a fazer do romance um vigoroso painel da decadência austríaca, e, por extensão, da existência burguesa no início do século 20. Além disso O homem sem qualidades antecipa, de certa forma, as crises que a Europa viveria apenas na segunda metade daquele mesmo século. A obra é — em suma — o retrato ficcional apurado de um mundo em decadência, a análise mais acurada de seu tempo e ao mesmo tempo antecipatória em relação ao futuro; sutil e profunda, sarcástica e melancólica.
Marcado pelas fortes doses de sátira e humor, O homem sem qualidades parece uma bola de neve de ações e personagens relacionadas, que rola pela montanha do século abaixo, abarcando tempo e espaço, para ao fim engendrar um romance inteiriço, ainda que multiabrangente, pluritemático e panorâmico. Perplexo diante do volume espiritual do romance, o crítico Franz Blei chegou a dizer. “O que há dentro do livro? O mundo contemporâneo inteiro.”
A teia das influências do romance de Musil alcança tão longe que chega a marcar indelevelmente um dos grandes romances alemães do novo milênio, que em breve alcançará tradução no Brasil: A idade do jogo (Spieltrieb), da jovem autora alemã Juli Zeh. A idade do jogo persegue a tentativa de registrar filosoficamente a contemporaneidade, assim como O homem sem qualidades fez com seu tempo; as duas obras se aproximam por serem, ambas, testemunhas de uma época-limiar, em que se passava de um grande modelo orientador a outro. Nesse sentido, aliás, o romance de Juli Zeh é uma das obras ficcionais que melhor interpreta — tanto filosófica, quanto ética e sociologicamente — a situação do mundo contemporâneo. A presença de O homem sem qualidades em A idade do jogo é tão marcante que o romance de Musil chega a ser comentado extensivamente, e chamado por exemplo de a “obra mais monstruosa da história da literatura em língua alemã”, aquela que, compreendida, permite que se compreenda tudo; aquela que, lida, permite ao leitor a noção de que leu tudo e, compreendida, de que compreendeu tudo.[2]
Ulrich
Em agosto de 1913, momento em que a ação do romance principia, Ulrich — o homem sem qualidades — tem 32 anos. Ele faz três grandes tentativas de se tornar um homem importante. A primeira delas é na condição de oficial, a segunda no papel de engenheiro (vide a carreira do próprio Musil) e a terceira como matemático, exatamente as três profissões dominantes — e mais características — do século 20. Os três ofícios são essencialmente masculinos e revelam o semblante de uma época regida pelo militarismo, pela técnica e pelo cálculo que, juntos, acabariam desmascarando o imenso potencial autodestrutivo da humanidade. Depois das três grandes tentativas, Ulrich reconhece que o possível significa, para ele, muito mais do que o real, sempre estereotipado, medíocre e esquemático.
Ulrich — cujo sobrenome é omitido “em consideração a seu pai” —, chegou a se chamar Aquiles, mais tarde Anders (o diferente), e mesmo o título do romance de Musil mudou várias vezes antes da publicação, passando de O espião a O salvador (Der Erlöser) e As gêmeas, títulos que assim como aquele que acabou se impondo dizem muito sobre o romance. O relato acerca da busca “desencantada” de Ulrich lembra a velha busca — ainda sagrada — do Santo Graal. Ulrich quer compreender o “motivo e o mecanismo secreto” de uma realidade que desmorona e para isso se retira à passividade de uma postura apenas contemplativa, que marca também a postura do autor e a postura do romance.
Ulrich se sente um homem sem qualidades porque o mundo contemporâneo inverteu os princípios do humanismo e colocou a matéria no centro da realidade moderna. Na verdade, Ulrich via em si todas as qualidades e capacidades privilegiadas por sua época — exceto a de ganhar dinheiro, da qual também não necessitava —, mas foi obrigado a constatar que a possibilidade de aplicá-las já havia lhe escapado às mãos. “Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem aquele que as vive” e, assim, o personagem se vê confrontado com as contradições centrais do universo contemporâneo: a luta entre causalidade e analogia, entre crença na ciência e pessimismo cultural, entre lógica e sentimento, em suma. No fim, o que resta é a impossibilidade de perpetuar a reconciliação entre eu e mundo, de consumar a “entrada no paraíso”, a ataraxia de Schopenhauer, a placidez ausente de vontade e busca da vita contemplativa.
Todos os personagens de O homem sem qualidades apenas são importantes na medida em que se relacionam com Ulrich, na medida em que são, inclusive, superfícies nas quais ele mesmo se espelha. Todos eles não deixam de configurar, de certo modo, possibilidades e aptidões do próprio Ulrich. Mesmo o assassino de prostitutas Moosbrugger, o símbolo central do descalabro em que se encontra o mundo, é um espelho no qual Ulrich se vê refletido, já que os delírios do homicida não deixam de ser variações extremas das experiências de Ulrich em relação àquela que chama de “outra condição” (anderer Zustand), de sua busca incansável da liberdade do disparate e da vivência original, paradisíaca. Na segunda parte do romance, aliás, Ulrich passa a vivenciar cada vez mais situações de enlevo quase sobrenatural, em que já não logra mais distinguir os limites espaciais e temporais do mundo que o envolve. Mais tarde Ulrich inclusive tenta a “outra condição” junto com Agathe, sua irmã, a “duplicação assombreada de si mesmo na natureza oposta”. O amor mítico-incestuoso entre os dois constitui uma das mais belas e dolorosas histórias de amor da literatura universal.
Um romance ensaístico
A compreensão da realidade característica da obra e do pensamento de Musil é rematadamente satírica e sua índole narrativa marcadamente ensaística.
E é essa índole ensaística do autor, aliás, que lhe concede o instrumentário para arrancar máscaras e fazer sua ficção trabalhar na confluência complexa de dois gêneros fundamentais: o narrativo, reconhecido oficialmente, e o ensaístico, espécie de quarto gênero ilegítimo, que vem ganhando cada vez mais força no universo livresco e se imiscuindo de forma avassaladora também no gênero dramático e lírico.
Em O homem sem qualidades, o romance deixa de ser, definitivamente, uma narrativa de continuidade para se transformar num campo complexo de ações e personagens, rico em relações de toda ordem e totalmente desestruturado; totalmente desestruturado se o personagem-ensaísta não mantivesse, na condição de centro que é, o fio da meada narrativa vigorosamente nas mãos, abordando o mundo através das coisas e pessoas que o tocam, sempre em busca do sentido.
A questão do ensaio chega a ser diretamente tematizada por Musil em O homem sem qualidades. Carregado de crítica — e de uma ironia certeira — o autor inclusive diferencia o romance do feuilleton, um gênero muito semelhante à crônica brasileira e, assim como ela, um parente pobre do ensaio. No romance, um redator-chefe encomenda um feuilleton e pede que ele seja o mais solto e alegre possível, não muito complicado no estilo e que considere as necessidades do círculo de leitores. Ora, é exatamente isso que um ensaio, inclusive aquele desenvolvido por Musil em sua obra, não é! Musil chega a dizer, em outra passagem de O homem sem qualidades, que o ensaio é a forma que a vida interior de um ser humano assume ao ser tocada por uma idéia decisiva… Musil também chega a dizer que Ulrich vive “ensaisticamente” e que o ponto de partida de suas análises é a afeição ou a aversão que sente pelas coisas que o tocam. O ensaio romanesco ou o romance ensaístico de Musil é, portanto, aquilo que todo ensaio deveria ser: fundado no eu, na coragem de confessar, no humor e na brincadeira sagrada com os limites da língua. E de que modo? Mostrando-se profundo onde a crônica — ou o feuilleton — é superficial, atendendo a um impulso interior onde a crônica ouve um pedido exterior, lidando com o sentido onde a crônica apenas toca o fenômeno… Sim, pois se a crônica é escrita para o momento e por isso transparente, leve, concentrada, extrovertida e impressionista, o ensaio de Musil e o ensaio do mundo é (deveria ser) escrito para a eternidade e por isso denso, grave, disperso, introvertido e expressionista.[3]
A índole ensaística de Musil fez dele um escritor “contemplativo”, de “postura clássica”, situado à janela do mundo e atento a seus movimentos (tanto que, em várias situações de suas obras, seus personagens aparecem à janela). Ao utilizar a perspectiva do ensaio para sua abordagem (inclusive apresentando ensaios inteiros no corpo da ficção) e fazer uso livre do discurso falsamente científico, ainda carregado de poesia, Musil dá vida à hibridez de sua narrativa. A frialdade da linguagem, a formalidade da abordagem do narrador são apenas aparentes; uma questão de postura filosófica, por assim dizer. Se, à primeira vista, o olhar do narrador é marcado pelo intelectualismo — frio e impessoal —, logo se descobre que isso é apenas um meio apolíneo contra o perigo dionisíaco do mundo, e que a indiferença gelada da superfície apenas mascara a paixão ardente do interior.
As referências à filosofia em O homem sem qualidades são muitas, aliás. Nietzsche e Emerson, para citar apenas dois filósofos centrais, desfilam em idéias pelo romance inteiro, cujo céu é coberto de nuvens filosóficas; elas voltam a demonstrar aquela tendência avassaladora de Musil e de seu romance à totalidade, o apetite de autor e obra na tentativa de engolir o mundo inteiro em mil páginas. Reforçando derradeiramente a tese do romance ensaístico, Musil chegou a anotar em seu diário quando estava às voltas com a concepção definitiva de sua obra: “Questão principal: uma espécie de biografia das minhas idéias”. Daí, também, o fato de O homem sem qualidades ser a síntese não apenas da obra, mas inclusive da vida de Robert Musil.
A título de arremate
Com sua atitude fundamentalmente irônica diante da sociedade e sempre resoluto no combate à estultice do século — na luta contra “a imensa raça das cabeças medíocres e estúpidas” —, Robert Musil muitas vezes foi compreendido como utopista, ou até místico, por alguns críticos, decididos a dinamitar o vigor de sua obra. O autor, que foi tão corrosivo ao representar o mundo em sua realidade distorcida e deformada na figura simbólica de uma Kakânia caquética, é transformado, assim, num sujeito extravagante e pouco afeito à realidade. Em um leão sem garras nem dentes… Que ele não é!
Já em 1972, Helmut Arntzen — crítico da obra de Musil — dizia que os estudiosos pareciam fazer gosto em apresentar Musil na condição de animal exótico, místico e de movimentos graciosos. Dessa forma, o escritor combativo e heróico — conforme o próprio Musil se compreendia — era transfigurado num metafísico dócil, no homme de lettres que ele sempre renegou, num autor distanciado da realidade, provido de alguns requintes matemáticos na linguagem e de outros tantos talentos psicológicos na análise da alma humana.
A postura “contemplativa” de Musil foi entendida como passiva, a “utopia do ensaísmo” pregada por Ulrich — seu personagem — como uma visão utópica do mundo. Na verdade, Musil fez apenas lutar pela recuperação da atividade de mensurar melhor, quantitativa e qualitativamente, os sentimentos e o “volume espiritual” das relações humanas; sem a ingenuidade do romantismo, mas sem a secura do realismo bruto e de pouco alcance. De quebra, deu nova fisionomia ao sujeito, nova potência ao “eu”, tornando-o estética e radicalmente consciente, ainda que fazendo com que ele perambule no âmbito daquilo que um outro crítico — Wolfgang Lange — chamou de “loucura calculada” ou “suspensão calculada da razão”.
A intuição poética de Musil, enriquecida por seu aguçado espírito científico e por sua índole ensaística, proporcionou ao autor a capacidade de traçar um vasto panorama ficcional de seu país, da Europa e do mundo do século 20. Postado à janela do mundo, Musil examina, em última instância, o valor da inteligência objetiva do homem diante das casualidades mundanas.
O vigor literário de Robert Musil — esse anatomista da alma de um século arruinado — foi tanto que mesmo um escritor “autocentrado” como Thomas Mann foi capaz de escrever, em uma carta dirigida ao próprio Musil: “Não existe nenhum outro escritor alemão vivo de cuja permanência eu tenha tanta certeza!” A realidade, a tão questionada e debatida realidade fragmentária, deu razão inteiriça a Thomas Mann e concedeu a Musil o status inquestionável de um dos escritores mais importantes de todos os tempos. É o gênio, essa qualidade intangível, que anima a possibilidade no sentido de superar a estereotipia, a mediocridade e o esquematismo da realidade… O mesmo gênio sobre o qual Musil anotou, mais uma vez contido, em seus Diários:
“Para um conceito de Gênio
Jamais deveria ter sido dito que um gênio está cem anos à frente de seu tempo. As pessoas sentiram-se tão incomodadas com isso, que de pronto se voltaram contra tudo o que é genial. A afirmativa também gerou e sustentou idiotas. E, no fundo, ela nem chega a ser verdadeira, pelo menos em parte não; pois justamente os indivíduos geniais representam o espírito de seu tempo, ainda que contra a vontade e a consciência deste. Talvez fosse mais correto e mais educativo dizer que o ser humano mediano está cem anos atrás de seu tempo.”[4]
Notas
[1] Ernst Mach inventou também aquele que conhecemos por “número de Mach” ou “número Mach”: o quociente da velocidade dum corpo que se move num fluido pela velocidade do som no mesmo fluido.
[2] Eis, na condição de “tira-gosto”, as primeiras linhas do exórdio do romance, que será publicado pela Record em tradução minha: “E que tal se os bisnetos dos niilistas já tivessem saído há tempo das empoeiradas lojas de artigos religiosos que chamamos de nossas visões de mundo? Se tivessem deixado os depósitos já meio esvaziados dos valores e das importâncias, do útil e do necessário, do genuíno e do correto a fim de retornar às trilhas de caça, na selva, lá onde não podemos vê-los mais, muito menos alcançá-los? Que tal se para eles bíblia, constituição e código penal não tivessem mais validade na condição de manual e livro de regras para um jogo coletivo? Se eles entendessem política, amor e economia simplesmente como competição? Se “o bom” para eles fosse nada mais do que eficiência máxima sob mínimo risco de perda e “o mau”, de sua parte, nada mais do que um resultado subótimo? Se não entendêssemos mais suas razões, porque elas já não existem? / Donde haveríamos de tirar então o direito de julgar, de condenar, e, sobretudo – a quem? O perdedor do jogo – ou o vencedor? O juiz teria então de se tornar árbitro. A cada tentativa de aplicar o aprendido e traduzir lei em justiça, ele se tornaria culpado do último pecado mortal que ainda restou: a hipocrisia”.
[3] Ver mais, bem mais, em Marcelo Backes. Lazarus über sich selbst: Heinrich Heine als Essayist in Versen, Frankfurt a. M., 2005.
[4] Marcelo Backes, A arte do combate. São Paulo : 2003, p. 243. O presente ensaio estende amplamente algumas considerações feitas no livro citado.